domingo, 19 de dezembro de 2010

Um certo Chico...*


Semana passada lembramos aqui o aniversário de nascimento de Mestre Irineu. Hoje devemos lembrar que outro homem especial, também nascido no dia 15 de dezembro, nos deixou há 22 anos.

Quando ele nasceu, no dia 15 de dezembro de 1944, o seringal Porto Rico situado nas matas do Xapuri, era mesmo um lugar rico, pois era tempo de Batalha da Borracha. O mundo em guerra precisava do látex acreano e graças a isso os seringais haviam novamente se enchido de gente e de prosperidade.
Aquele menino, nascido dez dias antes do natal, recebeu o nome do seu pai: Francisco Alves Mendes Filho. Mas, como todo menino chamado Francisco, desde cedo virou Chico.
E o menino Chico cresceu no seringal vendo seu pai sair ao amanhecer para entrar na floresta e dela trazer o sustento de sua família. Mais do que o leite de sua mãe, Chico logo percebeu que era o leite colhido das arvores da floresta que alimentava a ele e a todos os seus. Por isso ele era fascinado pelo trabalho de seu pai e sempre que podia o acompanhava pelos varadouros da mata. Chico começou assim a aprender aquele oficio: Caminhar ligeiro pela mata escura usando uma poronga na cabeça pra “alumiar” a estrada estreita e tortuosa, usar uma faca esquisita para rasgar a casca das seringueiras de onde escorria um sangue estranho, branco e viscoso e deixar em cada arvore uma tijelinha de metal pra aparar o látex que escorria generoso.
O menino Chico não conseguia disfarçar o encanto que sentia pela floresta. Toda vez que entrava nela lhe invadia uma sensação de segurança, de conforto, de familiaridade. Assim, nem bem o menino Chico completou dez anos já ia cortar seringa sozinho para ajudar na produção de seu pai. Mas não tinha medo. Sentia que aquela floresta que lhe sustentava nunca lhe faria nenhum mal.
Logo o menino Chico cresceu e quis aprender mais coisas do que lhe podia ensinar seu pai. Descobriu que perto de sua casa morava um homem muito sabido, mas que vivia sozinho e isolado de todos. Seu nome era Euclides Távora e ele era um exilado político que havia fugido para o meio da floresta no tempo da Intentona Comunista.E esse homem tão sabido e sofrido aceitou lhe ensinar a ler e escrever. Mas, na verdade, ensinou muito mais que isso. Juntos ouviam a BBC de Londres e a Rádio Central de Moscou. Conversavam sobre a ganância capitalista, sobre as utopias socialistas e sobre a exploração dos seringueiros pelos patrões. Por isso quando estourou o golpe militar de 64, Chico, agora um rapaz feito, entendeu direitinho o que estava acontecendo no Brasil. E entendeu que seu povo ainda havia de sofrer muito.

Chico começou então a ajudar seu povo. Fazia reuniões, explicava a realidade das coisas e tentava organizar os homens e mulheres da floresta para acabar com a exploração dos patrões. Foi ameaçado e perseguido por causa disso. Pela primeira vez Chico soube o que era sentir medo, o que era ter que se esconder dos jagunços, o que era ter que andar sempre acompanhado de outros companheiros para se proteger. Mas nada, nem ninguém, seria capaz de fazê-lo desistir daquela luta que estava só começando.
Logo outros seringueiros perceberam que sem organização e união não iam conseguir nada. Decidiram então criar em Brasiléia o primeiro Sindicato de Trabalhadores Rurais do Acre e Chico se tornou seu primeiro Secretario Geral. Mas os tempos estavam ficando mais e mais difíceis. A terra estava sendo invadida por fazendeiros que vinham do sul do país para “derribar” a floresta e substitui-la pelo gado. Os novos donos da terra não queriam saber de reconhecer os direitos dos seringueiros. Famílias inteiras foram expulsas das colocações onde moravam há décadas.
Trocar a floresta pelo boi eis a nova idéia de desenvolvimento que iludia a muitos. Mas sem floresta aqueles homens e mulheres não sabiam viver. Os que não queriam lutar por seus direitos e partiam para as cidades só encontravam miséria e descaso. Era preciso defender a floresta como quem defende a própria vida, então. E pela primeira vez, os seringueiros organizados conseguiram empatar a derrubada da mata e impedir que outro seringal virasse pasto.
Logo, a idéia se espalhou. Outros sindicatos surgiram, a igreja se juntou à luta dos seringueiros em defesa da floresta e nas cidades muitos jovens começaram a perceber que alguma coisa diferente estava acontecendo nas matas acreanas. Chico foi eleito vereador e como resultado do seu trabalho foi preso e torturado, em segredo, sem que ninguém pudesse ajuda-lo.
A luta dos trabalhadores crescia e com ela crescia também a violência dos novos donos da terra. Wilson Pinheiro, o corajoso Presidente do STR de Brasiléia foi assassinado covardemente. Ivair Higino e muitos outros seringueiros também tombaram sob a sanha dos jagunços e pistoleiros. Mas nada, nem ninguém, seria capaz de fazer Chico desistir da defesa de seu povo.
As populações indígenas do Acre, que conheciam como ninguém a opressão, se juntaram aos seringueiros fortalecendo a resistência. Chico ajudou então a fundar no Acre o Partido dos Trabalhadores e a CUT. Além de liderar a organização do 1º Encontro Nacional dos Seringueiros onde propôs a formação da Aliança dos Povos da Floresta para impedir a extinção de seus modos de vida tradicionais.
E tanto fizeram que, finalmente, o mundo “civilizado”, começou a prestar atenção àquela luta de homens simples em defesa da floresta. E Chico se tornou o porta-voz de seu povo. Foi ao estrangeiro, falou aos ambientalistas, capitalistas e banqueiros e recebeu diversos prêmios, entre eles o “Global 500” da ONU.
Começavam a se tornar possíveis os sonhos de Chico e de seus companheiros. Em lugar de fazendas ou seringais, reservas extrativistas. Em lugar de um desenvolvimento que transformava a floresta em terra arrasada, desenvolvimento sustentável. Ao mesmo tempo, porém, cresciam as ameaças de morte contra Chico. Mas nada, nem ninguém, seria capaz de fazê-lo desistir...
É que o Chico, agora homem do mundo, não esquecia do menino Chico que sentia tanta segurança e tranqüilidade quando percorria os varadouros da floresta sozinho ou com seu pai. E com essa certeza no coração Chico prosseguiu...
Mas seus inimigos eram muitos ... e poderosos ...
E assim... Ao entardecer do dia 22 de dezembro de 1988, dois dias antes do natal, Chico foi baleado e morto na porta dos fundos de sua casa ... e os povos da floresta choraram ...
Mataram Chico, o homem, mas não conseguiram matar seu espírito e sua luta...
Os inimigos de Chico foram derrotados por sua morte. As idéias que Chico defendeu impregnaram os corações dos homens de bem desse mundo e sua voz se fez ainda mais forte. Hoje são muitos Chicos. Seu espírito nos guia e haverá de nos proteger quando nos varadouros mais escuros sentirmos medo. É que o espírito de Chico ali estará nos lembrando que a floresta é nossa casa, nossa vida, nossa mãe e assim será para sempre...

* Texto originalmente escrito para as homenagens dos 15 anos da morte de Chico Mendes.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Das nascentes... Alumiar.



Durante a semana passada tivemos as comemorações do dia de Nossa Senhora da Conceição, a Rainha da Floresta, primeira padroeira e protetora de Rio Branco. Por isso tivemos festas em todos os centros daimistas do Acre. Nesta semana, no dia 15 de dezembro comemora-se mais um aniversário de Mestre Irineu. Vai ter mais festa.



Quando Raimundo Irineu Serra criou a doutrina do Daime imprimiu na sociedade acreana uma marca, um novo traço, cultural. Marca que sintetizou contribuições indígenas, amazônicas, afro-brasileiras, européias, ocidentais, orientais, numa só corrente de pensamento.
Estavam atados, então, os laços de uma nova expressão cultural brasileira. Uma síntese nova, mas, ao mesmo tempo, antiga, milenarmente arraigada nas consciências nativas e caboclas do Acre. Isso tudo, parecendo que foi anteontem, em pleno alvorecer do século XX.
Raimundo Irineu Serra, apenas mais um jovem negro nordestino-maranhense a tentar a sorte no Eldorado Amazônico, como tantos outros, teve um encontro (ou foi encontrado), com (por) um destino excepcional. Através desse homem - ainda quase um menino, mas grande e forte o suficiente para chamar a atenção à primeira vista - foram reunidos conhecimentos culturais e espirituais das três grandes raízes brasileiras. Formou-se assim uma identidade comunitária, ética, religiosa e social única, totalmente original, que, a partir do mais interior da vasta e profunda floresta amazônica, ganhou o Brasil e o mundo. E espalhou em seu caminho um novo ponto de vista, uma explicação da realidade diversa, uma radical mudança de perspectiva. O olhar de quem olha de dentro da floresta, a partir das nascentes, pros rios que se dirigem ao mar distante.Mestre Irineu possibilitou assim que uma comunidade, negra, cabocla, trabalhadora, variada, se constituísse em torno de um novo fundamento espiritual, ousada e surpreendentemente, de forma independente e autônoma. Uma comunidade que cresceu, se diversificou e se disseminou ainda mais com o surgimento de dois outros mestres da Ayahuasca amazônica, Daniel Mattos e Gabriel Costa, nesta mesma região do Acre-Rondônia-Bolívia-Peru, entre as décadas de 40 e 70.

Foi um longo processo, mas, aos poucos, a doutrina do Daíme, Santo Daíme, ou Vegetal, dependendo de quem fala, foi vencendo os preconceitos e sendo compreendida e aceita pela sociedade regional. Mas não foi fácil, muito pelo contrário, a elaboração de um corpo doutrinário, com procedimentos, fardas, instrumentos musicais e princípios éticos se configurou, em grande medida, como um processo de resistência cultural frente a uma sociedade fortemente conservadora e católica.
Surgia assim um conjunto de novas referências, símbolos e histórias que são extremamente diversificadas desde suas origens. Dos ritos indígenas foram colhidos cantos, o toque do maracá, usos espirituais (divinatórios e curativos), modos de colher o cipó e a folha, de preparar o chá, uma forma de se relacionar com a floresta que transcende o amor e alcança a mais pura fé. Do mesmo modo como ainda se faz em muitas tradições indígenas amazônicas e andinas que há milhares de anos conhecem o uso a Ayahuasca.
Dos ritos afro-brasileiros emergiram os trabalhos com entidades espirituais, incluindo a possibilidade, mas não a necessidade, de incorporação. Ao lado de um forte sincretismo, realizado já no nordeste escravista, com símbolos e santos católicos.
Dos ritos católicos se integraram a iconografia, o simbolismo, as santidades centrais dos trabalhos, a tradição histórica e espiritual característica de toda nossa sociedade cristã ocidental. Bem como, numa outra extremidade ainda, integrando caminhos, conceitos e preceitos do espiritismo kardecista. Vemos assim se formar um imenso e sofisticado circulo de influencias, referências, origens, simbologias, fórmulas mágicas, num fenômeno sócio-cultural semelhante àqueles que ocorreram em outras regiões do Brasil, tais como: a Umbanda, o Candomblé, as Casas das Minas, as Juremas, que retraduziram comportamentos ancestrais em segmentos sociais historicamente excluídos da riqueza do país. Entretanto, evidentemente, no caso das doutrinas caboclas da Ayahuasca há uma predominância amazônica, florestal, indígena, que não existe em nenhuma outra manifestação religiosa brasileira. As doutrinas da Ayahuasca - com toda a força estética, ética e espiritual, que lhe são próprias e específicas - configuraram-se a partir de um longo processo de resistência e de afirmação social, e se consolidaram como fenômeno sócio-cultural característico da Amazônia Ocidental brasileira no ultimo século.
Estava assim criado o cenário a partir do qual - nos anos 70 e 80, depois da partida terrena de Mestre Irineu - o Daime se tornou conhecido no Brasil inteiro, passando a se estabelecer em diversos grandes centros urbanos e a disseminar algumas das características culturais reunidas pelo Mestre Irineu em sua original doutrina cabocla, amazônica, florestal.

Foi apenas uma questão de tempo para que, ainda nos anos 90, os centros do Daime/Vegetal (ou simplesmente da Ayahuasca) - originados das doutrinas dos três mestres fundadores: Irineu, Daniel e Gabriel - se espalhassem por vários países, dos Estados Unidos à Europa, e passassem a influenciar milhares de pessoas mundo a fora, a partir de seus singelos princípios, fundamentalmente ligados à nossa floresta e seus modos de vida originais.
E foi assim que, desde os anos 20, os novos códigos culturais sintetizados e revelados através de Mestre Irineu, passaram a influenciar, de uma ou de outra maneira, comportamentos e significados da sociedade amazônica, mas também do Brasil e do mundo inteiro.
Música, simbologia, ética, conhecimento, espiritualidade, elementos de nossa vida cotidiana que hoje possuem fortes marcas impressas por essa manifestação cultural originalmente amazônica, caracteristicamente brasileira. É preciso reconhecer: Há muitos e importantes motivos para festejarmos e reverenciarmos a luz que nos foi trazida e legada pelo Mestre desde a infinita profundidade da floresta, onde nasce.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Sobre a Beleza e o Caos


“Rio 40 graus.
Cidade Maravilha,
Purgatório da Beleza e do Caos”
(Fernanda Abreu)


Poucas cidades do planeta têm o privilégio de serem conhecidas mundo a fora por sua beleza. Este é o caso do Rio de Janeiro. A cidade maravilhosa que tem o privilégio de reunir a beleza das montanhas - que recortam o horizonte de forma inusitada - com o encanto do mar, numa sucessão extraordinária de praias, cada uma mais bonita do que a outra. Para qualquer leitor mais distraído pode até parecer que o destino de um lugar como esse só pode ser o de se tornar o paraíso na terra.
Mas, como todos vimos na semana passada, através dos jornais e TVs, não é bem isso que acontece. E assistimos assustados às imagens de uma violenta guerra urbana que, ainda por cima, apresenta reais possibilidades de se espalhar para outros estados e cidades brasileiras. Mas como as coisas chegaram a esse ponto? Eis uma resposta que não pode ser obtida de forma breve, só um olhar mais profundo poderá ser capaz de nos dar pistas sólidas sobre este intrigante paradoxo.
Afinal, não podemos esquecer que o Rio de Janeiro sempre foi um território de grandes e aberrantes contrastes. Enquanto a Corte Real portuguesa e todos os seus agregados ocuparam os melhores espaços disponíveis na cidade, sobrou para os escravos e trabalhadores livres ocupar as áreas das encostas dos morros. Assim se configurou uma cidade em que a “periferia”, entendida como o espaço ocupado pelas camadas mais pobres, não estava longe e nem apartada, mas no interior mesmo dos bairros das classes médias e elites.

No Rio de Janeiro, sempre houve uma clara distinção entre o asfalto e a favela. Uma distinção que não resultou numa segregação radical. Pelo contrário, afinal, os moradores das favelas trabalhavam nas casas dos ricos, ao mesmo tempo em que a burguesia consumia o samba, o jogo do bicho e os modos e gírias da malandragem carioca que era produzida no fértil espaço popular dos morros. Com mais uma característica adicional que não deve ser desprezada. Existe no Rio um espaço em que todos se encontram e convivem: a praia.
Por exemplo, lembro de certa ocasião em que estava junto com alguns amigos da faculdade aproveitando o fim da tarde na praia, que é o esporte predileto dos cariocas, quando se aproximaram uns três ou quatro meninos (não lembro mais ao certo) entre 7 e 12 anos. O normal seria então que a própria diferença de idade impedisse qualquer tipo de relacionamento entre a gente. Mas a conversa daqueles meninos era diferente. Eles já estavam envolvidos com o tráfico e o mais velho deles, que era o líder do pequeno bando, nos contou, depois de algum tempo de conversa, que já tinha matado um homem e participado de diversos roubos e assaltos. O que lhe fazia ter consciência de que sua vida seria muito breve. Mas isso não lhe importava, já que ele só queria viver intensamente o tanto que pudesse. Ficamos assim, durante algumas horas, nós universitários, ouvindo aqueles meninos que já eram muito mais vividos e maduros que nós, nos ensinando sobre a beleza e o caos da vida. E é assim que, naturalmente, crescem juntos os cariocas, independente de classes sociais, cor ou credo.


Ou seja, o problema do Rio não é a proximidade do morro e do asfalto, nem a mistura entre os moradores de ambos. Diria mesmo que a situação só não é pior graças a essa característica tão própria da cidade maravilhosa. Os problemas enfrentados pelos cariocas estão muito mais relacionados à omissão e corrupção dos governos do que a qualquer outra coisa. E é essa a principal reflexão que precisa ser feita sobre os recentes acontecimentos da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão.
Qualquer pessoa que conheça minimamente o Rio de Janeiro sabe que há muito tempo toda a estrutura governamental está falida e corrompida. A polícia do Rio se tornou uma das mais corruptas do mundo. Não há ocasião em que a polícia aborde um cidadão para fazer cumprir a lei, mas sim para lhe tomar dinheiro a qualquer custo. A situação chegou a tal ponto que a população passou a ter mais medo da polícia do que da bandidagem.
E a mesma condição submete os mais diversos gestores públicos e agentes políticos. Afinal, já faz tempo que a contravenção (jogo do bicho, maquinas caça níqueis, etc.), o tráfico de drogas e as milícias abastecem políticos com gordas propinas que bancam e/ou turbinam candidaturas e gestões governamentais e tornam a sociedade refém de uma situação, pelo menos aparentemente, sem retorno.

Entretanto, já faz tempo também que a sociedade carioca resiste e reage. O Movimento pela Paz, a nova política das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) e a mobilização da opinião pública são evidentes sinais de que finalmente as coisas estão mudando. Mas tenho a sensação de que só isso não basta. Está passando da hora da sociedade brasileira ter uma profunda discussão sobre a questão das drogas. Está mais do que provado que só proibição, repressão e criminalização não constituem soluções verdadeiras.
Nunca deu certo simplesmente proibir o consumo desta ou daquela substancia. Seria muito mais coerente tratar o problema das drogas em nossa sociedade como um caso de saúde pública, como é feito com o consumo de tabaco, que vem diminuindo sensivelmente nos últimos anos graças a uma política de esclarecimento e sensibilização. Mas neste ponto, parece que ainda não estamos prontos e nem maduros o suficiente para abrir mão da enorme carga de preconceito que trazemos em nossas consciências de maneira a regularizar a situação dos consumidores de drogas e tira-los do submundo do crime. Enquanto isso não acontece vamos seguir assistindo a uma sangrenta guerra nas ruas da mais linda cidade do mundo e vendo nossos meninos matando e morrendo por nada.





domingo, 14 de novembro de 2010

Bolívia: A Balada de Bruno e Bernardino *

(2ª Parte)
Em 11 de setembro de 2008, um terrível massacre aconteceu na cidade de Porvenir. Curiosamente, esta história, aparentemente tão distante, tem muitos vínculos com a história do Acre, apesar de nosso tradicional desprezo em relação ao que acontece logo ali.



A propósito do massacre de Porvenir,
uma homenagem ao Povo Takana.
por Pablo Cingolani
Os Takana eram os senhores da selva. (...) Elcuai, o líder do povo, os guiava sempre em busca de Caquiawaca, a montanha encantada, a qual “Se vê, mas nunca se pode chegar”. (...)

Os Incas de Cuzco respeitaram a cultura dos Takana. Moradores da selva baixa que cobre os vales dos grandes rios que desembocam no maior de todos (o rio Beni) foram intermediários entre os recém chegados desde as terras altas e outras nações e povos das terras baixas. Os Takana viviam na porta de entrada de um grande Reino. Os Moxo eram um estado exemplar que se estendia pelas planícies de inundação. (...) uma relação bastante harmônica entre os povos das terras altas e seus pares das terras baixas. A palavra guerra recém apareceu nas crônicas quando quem as escreveu, chegou desde a outra margem do Oceano para invadir este lugar do mundo.
* * *
Foi uma noite com fogo, com coca e bebida em Ixiamas. Noite negra na Amazônia, noite de fim do mundo, (...) Até que alguém empunhou (...) um violão, e começou a tocar e, sobretudo, a cantar. (...) Jamais havia escutado algo tão triste, porém, ao mesmo tempo, tão altivo, tão orgulhoso e tão sentido.
Quando encarei o homem para perguntar-lhe o que estava tocando, me respondeu: musica Takana. Quando quis averiguar seu nome, proclamou, como uma flecha cortando o vento da história e do esquecimento, que se chamava Racua e que um antepassado seu estava enterrado no cemitério do povoado.
* * *
Os espanhóis tiveram que enfrentar os Takana que estavam confederados para impedir que se apoderassem de seu território. (...) Vencidos pelas armas, mandaram os religiosos. (...) porém, sobretudo, morriam com as doenças que lhes inoculavam os estrangeiros.
Assim passaram anos, décadas, séculos, até que a selva mudou, dessa vez para sempre: (...) Como parte do devastador efeito do mercado mundial(...) a febre pela extração do caucho levou milhares de forasteiros para a floresta.
* * *
“(...) Como a mão de obra era tão preciosa, se buscava prender aos trabalhadores através do sistema de dividas... As construíam de tal maneira que os índios sempre tinham grandes dívidas, de modo que na realidade eram escravos. Os trabalhadores se vendiam transferindo suas dividas para outras pessoas. Como sabiam que não podiam pagar as dividas por si mesmos, ao serem comprados recebiam alguma compensação. Tanto nas heranças, como nos caso de falência, os trabalhadores eram então contabilizados como bens.” Erland Nordenskiöld: Explorações e Aventuras na América do Sul. APCOB-Plural, La Paz, 2001, págs. APCOB-Plural, La Paz, 2001, pp 340-341 340-341.
“Se é uma triste verdade que os selvagens receberam muitas ofensas anteriores, até ver seus filhos arrebatados pelos cristãos, também é fato que este ultimo escândalo acontecerá com frequência (se refere a ataques de índios aos barracões de seringais) se não se pensar em corrigir a ferocidade dos selvagens (...) O selvagem é uma fera que quando está incomodada ataca sem limite. E uma fera tem que ser caçada...” Editorial de La Gaceta del Norte, 1889, n º 19. Tomado de Pilar Gamarra: Orígenes históricos de la goma elástica en Bolivia en Historia, N° La Paz, 1990, pág. Extraído de Pilar Gamarra: origens históricas da banda de borracha na Bolívia em História, n º La Paz, 1990, pg. 553.
* * *
O caucho fez essa Bolívia nascida em 1825 recordar que seus territórios só terminavam no rio Purus. Bruno Racua, Takana de Ixiamas, como seu parente cantor que me levou a visitar-lhe no cemitério, foi um dos recrutados que foi levado a força para os seringais.. Alguns dizem que havia nascido em 1870 e que foi por sua própria vontade para a Guerra do Acre, a guerra que foi feita contra os brasileiros pelo território onde cresciam as arvores de caucho.
A história pessoal dos “invisíveis” sempre se perde nos meandros do passado. Se hoje recordamos de Bruno Racua é porque ele se transformou em herói nesta luta, apesar, inclusive, da maioria dos historiadores republicanos, que não citam seu nome. O filho de Nicolas Suarez – que os poderosos de ontem e de hoje chamam de “O Rei do Caucho” e promotor da “Civilização” e do “Progresso”, quando não foi mais do que um invasor dos territórios ancestrais dos povos indígenas, aos quais massacrou e explorou sem misericórdia – narrou assim ao desenlace do estratégico Combate do Bahia, em 11 de outubro de 1902: “Então se chamou a um índio ixiameño, cujo nome não me recordo, lhe entregamos um arco e uma flecha provida de uma mecha impregnada de querosene; e esta foi lançada sobre os tetos de folhas de palmeiras ressecadas pela ação do sol, dois minutos depois as chamas obrigavam a desalojar edifícios e trincheiras tomadas pelas chamas, obrigando à derrota aos apavorados que dias antes haviam ultrajado a soberania nacional...”. Filho de Nicolas Suarez: A Campanha do Acre, 1928. Tomado de Saavedra, Carlos P.: Pando, el último paraíso. Tirado de Saavedra, Carlos P., Pando, o último paraíso. Ed. Franz Tamayo, Cobija, 2001, pág. Ed Franz Tamayo, Cobija, 2001, pg.169 169.
Graças ao “índio cujo nome não recordo”, Nicolas Suarez pode conservar seus seringais e seguir explorando aos irmãos de Racua. Bolivia pode conservar algo mais importante: a soberania até o rio Acre, em cujas margens se acha hoje a cidade de Cobija (a antiga barraca chamada Bahia), capital do Departamento de Pando, desde onde partiram os assassinos que faz alguns dias assassinaram ao outro parente de Dom Bruno, o dirigente campesino Bernardino Racua.
Se a história foi suficientemente ingrata ao esquecer a Bruno Racua, um herói nacional indígena (agradeço o esclarecimento de Wilson García Mérida, em comunicação pessoal); hoje a história não só se repete como drama para os novos condenados da selva, mas se encena uma absurda prova de desprezo com o destino do assassinato de Bernardino Racua.
* * *



“Mataram Bernardino Racua. Lembra dele? Estava no I Fórum Amazônico, era o bisneto de Bruno Racua. Me sinto impotente, triste e cheia de raiva” – uma companheira me escreveu e alertou angustiada – “Mataram os feridos no hospital e há mais feridos do outro lado do rio... foi um massacre.”Já começam a aparecer os testemunhos das execuções do que já é conhecido como o “Massacre de Porvenir” e que gente tão criminosa como os que empunharam as armas, porém utilizando teclados ou microfones, que pretendem encobrir o que aconteceu como se tivesse sido apenas um “enfrentamento”, as mesmas canalhadas que se utilizaram sob o império e o terror da Doutrina de Segurança Nacional. Pois, lhes dizemos: foi a continuidade do genocídio contra os povos indígenas e os camponeses amazônicos que começou no século XVI, chegou ao seu auge assassino nos anos do caucho e se perpetua até os dias de hoje.
Os executores das matanças mudam, porém os mortos seguem sendo os mesmos. Todos os que não perderam a sensibilidade frente aos dramas humanos, as atrocidades que tem que sofrer sempre os pobres e os humildes, devemos exigir que se esclareçam estes fatos e que os responsáveis materiais e intelectuais recebam julgamento e o castigo que são merecidos.
É muito duro escrever sobre isto, sobre uma nova dezena de mártires, que se somam a essa lista anônima e interminável das vitimas da opressão e da injustiça. Porém, nesta terrível hecatombe, porque talvez seja um símbolo, deveríamos recordar a Bernardino, o bisneto de Bruno, aquele que legou a todos os bolivianos este canto da pátria e, malditos paradoxos, aos assassinos de seu bisneto, aquilo que eles consideram sua fazenda e seu prestigioso poder. Deveríamos recordá-lo como o que foi, como o que eram também seus companheiros baleados: indígenas e camponeses amazônicos, trabalhadores de toda a vida, extrativistas que se internavam na floresta para colher castanha, amantes da floresta e seus protetores porque ela lhes deu, cada ano, o pão para seus filhos, gente humilde, gente boa, gente digna.


Se algo mudou na Bolívia nestes últimos anos é que a consciência social já não suporta estes atos violentos de absoluto desprezo pela vida dos mais desprotegidos e até mesmo à condição humana e que, por isso, não podem ficar impunes porque foi um genocídio, crime contra a humanidade, algo impossível de esquecer e de perdoar.
Entretanto, apesar do choro e da dor, oxalá a justiça encontre seu curso. Bernardino haverá de ter chegado junto a Bruno e, desde o cume do Caquiawaca, seguirão nos ensinando e amparando com sua memória.

* Publicado em 13 de setembro de 2008 em www.bolpres.com

domingo, 7 de novembro de 2010

Bolívia: A Balada de Bruno e Bernardino

(1ª Parte)*

Há algum tempo publiquei aqui nesta coluna uma das mais importantes passagens da história acreana. O Combate do Igarapé Bahia - vencido pelos bolivianos, teve como resultado a fixação da fronteira onde hoje estão Brasiléia e Cobija - cujo personagem central foi um índio Ixiameño chamado Bruno Racua, aquele mesmo da escultura em bronze que até hoje parece atirar flechas incendiárias sobre nós brasileiros.Entretanto, enquanto procurava imagens na internet para ilustrar o artigo, achei um texto que contava a história de um outro líder morto no massacre ocorrido em Porvenir, em 2008, entre os partidários de Evo Morales e o Governador de Pando Leopoldo Fernandez. A história de Bernardino Racua, bisneto de Bruno, tampouco deve ser ignorada ou esquecida, por isso peço licença ao seu autor para trazer este belo texto para cá, em livre tradução do espanhol.

A propósito do massacre de Porvenir,
uma homenagem ao Povo Takana.
por Pablo Cingolani

Os Takana eram os senhores da selva. Há muitos estudos etnohistóricos que provam sua gravitação e influencia. Elcuai, o líder do povo, os guiava sempre em busca de Caquiawaca, a montanha encantada, a qual “Se vê, mas nunca se pode chegar”. Jawaway é o dono dos animais, especialmente dos que andam em bando e servem como alimento: é necessário sempre pedir sua permissão e honrá-lo, já que, de outra maneira, as cutias e os porcos desapareceriam e se poderia passar fome.


Os Incas de Cuzco respeitaram a cultura dos Takana. Moradores da selva baixa que cobre os vales dos grandes rios que desembocam no maior de todos (o rio Béni) foram intermediários entre os recém chegados desde as terras altas e outras nações e povos das terras baixas. Os Takana viviam na porta de entrada de um grande Reino. Os Moxo eram um estado exemplar que se estendia pelas planícies de inundação. Viviam ali centenas de milhares de pessoas que haviam desenvolvido um singular complexo de manejo das águas, que permitiu o surgimento de uma potente economia agrícola, que se traduziu em prosperidade para toda a gente. E uma fama que se estendeu, para além dos pântanos e das montanhas.
Guamán Poma, conta como o Inca Uturunco - o Rei Jaguar – não só trouxe a folha de coca das selvas para disponibilizá-la nos Andes, mas também que se casou com uma princesa Takana, ou Moxeña, quem sabe. O certo é que, nesses tempos, havia algo que agora não há, ou se esqueceu ou se perdeu entra a confusão e o horror que chegavam: uma relação bastante harmônica, uma comunidade respeitável, entre os povos das terras altas e seus pares das terras baixas. A palavra guerra recém apareceu nas crônicas quando quem as escreveu, chegaram desde a outra margem do Oceano para invadir este lugar do mundo.

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Foi uma noite com fogo, com coca e bebida em Ixiamas. Noite negra na Amazônia, noite de fim do mundo, faz anos, quando se chegar a Ixiamas se fazia distante, difícil. A conversa fluía, o companheirismo também, no compasso dos grilos e das rãs. Até que alguém empunhou um violino, ou um violão, e começou a tocar e, sobretudo, a cantar. Conhecia os “buris” de Apolo, de santa Cruz do Vale Ameno, desses lados do Machariapu e do Tuichi. Porem estes cantos, ou essa musica, o metal da voz, seu tom, eram outra coisa, de outra dimensão, outra profundidade. Jamais havia escutado algo tão triste, porém, ao mesmo tempo, tão altivo, tão orgulhoso e tão sentido.
Quando encarei o homem para perguntar-lhe o que estava tocando, me respondeu: musica Takana. Quando quis averiguar seu nome, proclamou, como uma flecha cortando o vento da história e do esquecimento, que se chamava Racua e que um antepassado seu estava enterrado no cemitério do povoado.

* * *

Os espanhóis tiveram que enfrentar os Takana que estavam confederados para impedir que se apoderassem de seu território. A guerra cruel, como a chamou o próprio Adelantado Alvarez de Maldonado, que fizeram os nativos aos usurpadores durante a segunda metade do século XVI, foi um brilhante exemplo de resistência anti-colonial bem sucedida. Ali surgiram os primeiros nomes dos heróis que a história oficial sempre negou: Tarano, o Cacique dos Toromonas; Arapo, o Cacique dos Uchupiamonas. Todos eram Takana e tão valentes e ardorosos no combate que impediram que os invasores se assentassem no sul da Amazônia por muito tempo. Na realidade, nunca conseguiram.
Vencidos pelas armas, mandaram os religiosos. Os frades exploraram o lado sensível e bondoso dos habitantes da selva e os seduziram, começando um trabalho de “zapa”, que persiste até hoje, para abolir sua cultura, para que esqueçam sua Caquiawaca e seu Jawaway, para que deixem de ser eles mesmos. Fundaram missões – em 1721, a de Ixiamas – para reduzir-los, civilizar-los e controlar-los. Os Takana não foram dóceis como pretendiam os missionários e se refugiavam nos montes, porém, sobretudo, morriam com as doenças que lhes inoculavam os estrangeiros.



Assim passaram anos, décadas, séculos, até que a selva mudou, dessa vez de verdade e para sempre: ao norte do mundo, uma árvore da Amazônia havia adquirido um valor inusitado para seu uso e para fabricar diversas coisas para os povoadores desses países que se situavam a milhares de quilômetros da selva. Como parte do devastador efeito do mercado mundial, que sempre esteve de uma ou outra maneira globalizado pelos impérios da vez, a febre pela extração do caucho conduziu milhares de forasteiros para a floresta. Esta ação se traduziu em pesadelo que até hoje segue ocultado e silenciado e pior, persiste, como demonstram os fatos vividos em Porvenir faz alguns dias: o primeiro grande momento de genocídio dos povos indígenas amazônicos. Os Takana não escaparam a essa fúria e ambição capitalista que “resultou em perseguição (correrias) aos indígenas, que praticamente foram exterminados por matanças, trabalho escravo e mudança de famílias inteiras aos seringais do norte” (Díez Astete, Álvaro e Murillo, David: Pueblos indígenas de Tierras Bajas. Caracteristicas principales. MDSP-VAIPO-PNUD, La Paz, 1998, pág.201).
(Continua...)





* Publicado em 13 de setembro de 2008 em www.bolpres.com

“Chove lá fora e aqui...”

Tem dias em que nossa alma está tal qual o mundo lá fora. O Toinho Alves tem razão quando diz que os dias e noites de junho-julho são os mais belos do ano. Mas tenho que confessar: amo esses dias de início do inverno. Quando a chuva volta a encharcar a terra sedenta e ressecada. Nesses dias a melancolia do céu reflete, à perfeição, a melancolia que sempre morou em meu coração e, aqui e acolá, volta a transbordar.Em dias assim, só os amigos podem nos salvar. Por isso, hoje, pedi socorro à Galeano, intérprete de tantas vozes silenciosas em nossas veias abertas...

Mundo
Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus.
Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.
- O Mundo é isso – revelou. – Um montão de gente, um mar de fogueirinhas.
Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo.


Celebração da voz humana/1
Os índios Shuar, chamados de Jíbaros, cortam a cabeça do vencido. Cortam e reduzem, até que caiba, encolhida, na mão do vencedor, para que o vencido não ressuscite. Mas o vencido não está totalmente vencido até que fechem sua boca. Por isso os índios costuram seus lábios com uma fibra que não apodrece jamais.

Crônica da cidade do Rio de Janeiro.
No alto da noite do Rio de Janeiro, luminoso, generoso, o Cristo Redentor estende os braços. Debaixo desses braços os netos dos escravos encontram amparo.
Uma mulher descalça olha o Cristo, lá de baixo, e apontando seu fulgor, diz, muito tristemente.
- Daqui a pouco, já não estará mais aí. Ouvi dizer que vão tirar Ele daí.
- Não se preocupe – tranqüiliza uma vizinha. – Não se preocupe: ele volta.
A polícia mata muitos, e mais ainda mata a economia. Na cidade violenta soam tiros e também tambores: os atabaques, ansiosos de consolo e de vingança, chamam os deuses africanos. Cristo sozinho não basta.
Dizem as paredes/2
Em Buenos Aires, na ponte da Boca:
Todos prometem e ninguém cumpre. Vote em ninguém.
Em Caracas, em tempos de crise, na entrada de um dos bairros mais pobres:
Bem vinda, classe média.
Em Bogotá, pertinho da Universidade nacional:
Deus vive.
Embaixo, com outra letra:
Só por milagre.
E também em Bogotá:
Proletários de todos os países, uni-vos!
Embaixo, com outra letra:
(Último aviso)
A noite/3
Eu adormeço às margens e uma mulher: eu adormeço às margens de um abismo.



Celebração das contradições/2
Desamarrar as vozes, dessonhar os sonhos: escrevo querendo revelar o real maravilhoso, e descubro o real maravilhoso no exato centro do real horroroso da América.
Nestas terras, a cabeça do Deus Elegguá leva a morte na nuca e a vida na cara. Cada promessa é uma ameaça; cada perda, um encontro. Dos medos nascem as coragens; e das dúvidas, as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possível, e os delírios, outra razão.
Somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia.
Nessa fé, fugitiva, eu creio. Para mim, é a única fé digna de confiança, porque é parecida com o bicho humano, fodido mas sagrado, e à louco aventura de viver no mundo.

A paixão de dizer/2
Esse homem, ou mulher, está grávido de muita gente. Gente que sai por seus poros. Assim mostram, em figuras de barro, os índios do Novo México: o narrador, o que conta a memória coletiva, está todo brotado de pessoinhas.

A uva e o vinho
Um homem dos vinhedos falou, em agonia, junto ao ouvido de Marcela. Antes de morrer, revelou a ela o segredo:
- A uva – sussurrou – é feita de vinho.Marcela Pérez-Silva me contou isso, e eu pensei: se a uva é feita de vinho, talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é.
Trechos de “O livro dos abraços”, Eduardo Galeano, 2005. Ilustrações de Danilo de S´Acre.

domingo, 24 de outubro de 2010

O Cavaleiro da digna figura

Há pessoas que a gente conhece ao longo de toda uma vida e nunca consegue conhece-la realmente. Por outro lado, há aqueles que bastam um breve contato para que se tenha a mais completa consciência de sua inteireza e retidão. Pois, mais uma vez, o Acre me presenteou com a imensa honra de conhecer um desses homens.

Certo dia, inesperadamente, apareceu lá no mais belo seringal urbano de todo o mundo, o Parque Capitão Ciriaco, jóia preciosa de Rio Branco, uma mocinha muito interessada na história da acreana. Pediu-me para lhe dar uma entrevista e foi com muito prazer que topei falar do pouco que sabia sobre o tema de seu interesse.
Aos poucos, a mocinha foi se soltando e pra minha sorte começou a chover e a ventar bastante, o que provocou, como de praxe, uma falta de energia. O jeito então foi emendar a conversa/entrevista na varanda, bem de acordo com as melhores tradições acreanas. E como a chuva não nos deixaria ir embora mesmo, o fim da entrevista marcou o início de uma outra conversa na qual fiquei sabendo que aquela interessada pesquisadora era a jornalista Jannice Dantas, minha parceira, já que também é colunista/colaboradora deste jornal.
Conforme ela ia ganhando confiança foi que fiquei sabendo que ela sobrinha-neta (se não me falha a memória) do ex-governador Wanderlei Dantas e o que se seguiu então foi completamente surpreendente para mim. Jannice começou a desfiar uma interpretação inteiramente diferente de tudo que havia ouvido antes sobre o governo do Dantinha. Um governante que tantas vezes tem sido demonizado pela nossa história como aquele que trouxe os pecuaristas e madeireiros para o Acre e assim teria provocado aquele turbilhão de acontecimentos trágicos que resultou numa guerra entre os povos da floresta e os “paulistas” que nos invadiam.
Repentinamente passei de entrevistado a entrevistador. Surpreso por uma nova e distinta interpretação acerca do papel desempenhado por Dantinha, no contexto da Ditadura Militar, como um tema que merece uma maior atenção e novas interpretações menos pressionadas por contextos ideológicos e mais preocupada com as profundas motivações sociais dos diferentes fenômenos políticos que atingiram o Acre nos últimos cinqüenta anos. Mas, esse é um outro assunto e merece um miolo de pote exclusivamente sobre ele.
O certo é que nesta inesperada conversa ao pé da varanda, há meia luz do entardecer chuvoso, ouvi muitas e importantes histórias, dentre as quais, uma outra que me chamou especial atenção. Essa dizia respeito ao avô de Jannice, o Sr José Higino, acreano de Tarauacá. E tamanha foi a admiração que Jannice revelou em sua breve fala que fui tomado pela necessidade de conhecê-lo o mais breve possível.
Felizmente, a oportunidade não se fez esperar. Logo me encontrava, por arte de uma dessas inesperadas tramóias do destino, diante daquele antigo acreano. E não posso aqui me esquivar de descrever, ainda que sucintamente, a forte impressão que o Sr. José Higino me causou logo à primeira vista. Tratava-se de um homem alto, esguio, de gestos elegantes, voz grave e pausada de um jeito muito especial e singular. Diria mesmo que se tratava de um cavaleiro andante daqueles das histórias das cruzadas. Mas, diferente do famoso cavaleiro da triste figura, Dom Quixote de La Mancha, que se tornou famoso por seus delírios e fantasias, Seu José Higino, na verdade, exalava grande dignidade pessoal associada a uma delicada sensibilidade que inspirava, de imediato, completa confiança.
E foi assim que pude conhecer mais um grande escritor acreano que logo me presenteou com um exemplar de seu extraordinário livro “A luta contra os astros”. Emocionante saga familiar ambientada em uma Tarauacá que não mais existe, a não ser na memória dos mais antigos, com seus característicos personagens, ruas, usos, costumes, lendas urbanas e florestais. Um livro que li daquele jeito, num só fôlego, e que se inscreve exemplarmente na melhor das tradições da literatura épica/trágica que tão fortemente caracteriza os romances amazônicos desde há mais de um século.
Mas um livro ainda mais importante porque descreve com grande propriedade e qualidade literária a luta de um jovem acreano que, contra todas as circunstancias de uma vida sofrida e difícil no longínquo e tutelado Território Federal do Acre, insistiu em seguir o que dizia seu próprio coração. Assim, não foi muito difícil perceber que em grande medida, aquele romance era em grande parte autobiográfico e dessa forma capaz de revelar a fonte e a força de toda a dignidade que se podia ler nos olhos límpidos de Seu José Higino.
Pronto, foi o bastante para que eu me tornasse mais um dos fãs deste homem que em nossos breves e poucos encontros (muitos menos do que eu gostaria, na verdade) me ensinou lições fundamentais para toda a vida, que eu espero estar à altura de honrar. Dentre as quais, quero destacar ao menos uma. É que Seu José Higino passou por tantas, tão grandes e importantes funções ao longo de sua vida, que se pode dizer, sem medo de errar, que ele soube dar uma contribuição inestimável e incomensurável à formação da sociedade acreana, sobre as quais não vou repetir o que os jornais locais já escreveram ao longo da semana. Mas, pra mim, os moinhos de vento de Seu José Higino, verdadeiro cavaleiro de digna figura, eram de outra natureza. Eles não eram feitos de ilusão e de vaidade, mas antes de inteireza de princípios e de caráter. Não por coincidência, exatamente o que vi nos olhos da Jannice na primeira vez em que ela me falou sobre ele.
Às vezes é melhor abdicar de tentar explicar certos sentimentos e sentidos e apenas ouvir o que nos diz aquela bela e inesperada canção.

“Tua verdade fazendo história (...)
Tua ausência fazendo silêncio
em todo lugar(...)
Só enquanto eu respirar
Vou me lembrar de você”
O Teatro Mágico

Em Tempo
E já que o tema central do artigo de hoje, ainda que pesaroso, é, de certa forma, uma homenagem à vida e à dignidade acreanas. E graças também ao fato de que nem tudo nessa vida são tristezas, graças a Deus, não posso deixar de registrar aqui que, neste fim de semana, Xapuri está em festa. É que completou 80 anos a Dona Euri, matriarca do clã Figueiredo, um dos mais tradicionais da antiga Princesinha do Acre. Um clã do qual faz parte a doce e guerreira Eurilinda que nos últimos anos tem sido uma grande e fundamental companheira de lutas no complexo campo/ofício da gestão cultural. Por isso quero publicamente estender minhas homenagens não só à Dona Euri, mas à toda sua família e à própria Xapuri, que assim confirma seu singular destino de gerar filhas e filhos iluminados e muito importantes para todo o Acre. E, ao mesmo tempo constatar, enternecido, que mais uma vez se cumpre a sina e a felicidade acreanas de ter como seus esteios fundamentais grandes mulheres. Sem dúvida nenhuma: Abençoado é o Acre... da Rainha o Reinado.

Uma cidade em guerra*

Nesta ultima sexta-feira, 15 de outubro, um importante acontecimento da história acreana passou incólume, sem que quase ninguém dele se lembrasse. Mas sou capaz de apostar que ao menos o pessoal da nossa romântica “Confraria da Revolução” lembrou, porque essa é a natureza da memória, se alguém lembra, isso, por si só, já é suficiente para tornar qualquer acontecimento história.
As primeiras chuvas de outubro chegaram, como chegam todos os anos às margens dos rios acreanos, e encontraram uma terra varrida por tempos de guerra. A ameaça do domínio estrangeiro agora era uma realidade. O sangue tingia as águas que anunciavam o inicio do inverno amazônico. Na cidade, que mais tarde seria conhecida como Rio Branco, a população assistia atemorizada ao primeiro grande combate do exército formado por centenas de seringueiros e o exército regular boliviano. O resultado deste combate iria determinar os rumos da guerra e do próprio Acre daí por diante.

15 de outubro de 1902. Fazia 11 dias desde que começaram as lutas na Volta da Empreza. Agora, não se tratava mais de simples emboscadas nos varadouros e barrancos do Acre. Dessa vez era guerra de verdade. Os militares bolivianos haviam derrotado - pouco menos de um mês antes, em 18 de setembro - os mal armados e mal treinados seringueiros-soldados de Plácido de Castro, que se constituíam ainda num arremedo de exército. Com isso, a Volta da Empreza (Rio Branco) se tornou domínio boliviano e junto com Puerto Alonso (Porto Acre) passou a se constituir numa de suas praças fortes.
Era preciso reagir logo uma vez que a notícia da derrota havia se espalhado rapidamente pelos rios acreanos e poderia levar seringalistas e seringueiros a desmobilização, pondo fim à recém iniciada Revolução. Por isso, o comando revolucionário do exército acreano, reunindo cerca de trezentos homens, decidiu atacar o inimigo ainda no dia 05 de outubro.
A inferioridade numérica dos bolivianos, que não passavam de 180, era compensada pela presença de extensas trincheiras e pelo alambrado que protegiam o acampamento principal boliviano. Isso tornou a luta muito penosa. Os acreanos não podiam atacar diretamente as fortificações, sob pena de serem fragorosamente derrotados. A única forma de conquistar as trincheiras inimigas seria escavando trincheiras que em zigue-zague, lentamente se aproximavam das posições bolivianas.
Foram dias terríveis para ambos os lados em luta. Os mortos que tombavam nas trincheiras não podiam ser removidos por causa das balas que a todo o momento cortavam o ar pesado do campo de batalha. Logo a decomposição dos corpos tornou a permanência dentro das trincheiras, meio alagada pela chuva, insuportável.
Porém, a cada dia, a vitória acreana ficava mais evidente. O grande temor boliviano era de que o boato que circulava nas linhas de combate fosse verdadeiro. Dizia-se que os acreanos, cujas posições estavam a apenas seis metros da ultima linha de trincheiras bolivianas estavam prestes a executar o ataque final, onde não utilizariam armas de fogo, mas tão somente armas brancas. E não havia boliviano que não conhecesse a terrível fama das peixeiras dos cearenses, que eram manejados com extrema destreza e, em tempos de guerra, crueldade.
Diante disso tudo, no dia 15 de outubro, o Coronel Rozendo Rojas, comandante das forças bolivianas, finalmente se decidiu pela rendição.
Assim, a velha Volta da Empresa, hoje Rio Branco, voltou a pertencer aos acreanos, para nunca mais voltar a ficar sob domínio boliviano. Esta foi a primeira grande vitória do exército revolucionário acreano, justamente naquela que viria se tornar a maior e mais importante cidade acreana, a futura capital do Acre e centro do desenvolvimento regional de toda a Amazônia Ocidental... Coincidências... Apenas coincidências e reminiscências de um tempo já muito longínquo...
* Adaptado de artigo publicado no Jornal Estado do Acre, em 15 de outubro de 2001.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Eram os Deuses Arqueólogos? (II)

A pesquisa arqueológica que vem sendo realizada no Acre continua demonstrando vícios de origem que comprometem fortemente a credibilidade de seus resultados frente à comunidade científica. Apesar de possível, a essa altura uma correção de rumos parece de todo improvável, o que é verdadeiramente uma pena.


Há algum tempo atrás publiquei aqui nesta coluna uma síntese do trabalho que vem sendo desenvolvido por equipes multidisciplinares na região do norte da Bolívia, mais especificamente nas regiões do Llano de Mojos, Complexo de Baures e Itenez.
No artigo “As Zanjas Circundantes da Amazônia Boliviana e a paisagem cultural pré-histórica”, publicado neste jornal em 20 de julho do corrente ano, menciono como um dos aspectos mais notáveis e positivos daquela pesquisa o fato de que seus autores não tentam de antemão determinar a origem, a natureza e as funções dos sítios arqueológicos com estruturas de terras. Pelo contrário, levantam mais de uma dezena de hipóteses para possíveis utilizações de estruturas de terra geométricas, que também caracterizam aqueles sítios, à semelhança do caso acreano, bem como buscam informações sobre seus métodos construtivos, vinculação cultural e correlações regionais.
Exemplo radicalmente distinto do que temos visto nas pesquisas que vem sendo realizadas aqui no Acre e amplamente divulgadas na imprensa local e internacional. Em nosso caso os pesquisadores envolvidos escolheram o caminho de afirmar teorias deterministas em que suas hipóteses se sobrepõem às informações efetivamente obtidas pela pesquisa.
Por exemplo, no 2º Encontro Internacional de Arqueologia Amazônica – EIAA, recentemente realizado em Manaus, a coordenadora do projeto ora em andamento no Acre, Denise Schann, se esforçou para caracterizar que os sítios geométricos do Acre, que ela também chama de geoglífos, mesmo sem explicitar porque, tinham função eminentemente ritual, cerimonial, simbólica. Entretanto sua apresentação falhou redondamente por não reunir informações suficientes para embasar sua abordagem, pelo simples motivo que não as tem e, ao mesmo tempo, vem se recusando sistematicamente a considerar informações obtidas por outras equipes de pesquisa que não a sua.
Ora, é preciso considerar que é perfeitamente possível que os sítios geométricos do Acre tivessem função cerimonial ou simbólica. Mas também é bastante provável que tivessem outras funções, muitas das quais já foram aqui nesta coluna fartamente mencionadas, tais como: estruturas defensivas, agrícolas, hidráulicas, etc. Não é possível, portanto, no atual estágio das pesquisas, afirmar de forma taxativa que os sítios acreanos foram isso ou aquilo.
Eu mesmo já mencionei aqui a referencia que o relatório de William Chandless, o primeiro a descrever esse tipo de ocorrência no Acre em meados do século XIX, faz ao uso destes círculos de terra na realização de festas pelos grupos indígenas que ele contatou durante sua viagem de mapeamento do rio Acre. O que claramente remete a um uso ritual.
Entretanto, não é possível ignorar informações de outros viajantes e exploradores bolivianos, peruanos e europeus que se referiram às aldeias fortificadas entre os índios Tahuamanu dos rios Abunã e Madre de Dios. E nem, tampouco, afirmações de pesquisadores respeitados como Ondemar Dias Jr, que foi o primeiro a encontrar e pesquisar os sítios geométricos do Acre, que menciona em seus trabalhos a ocorrência contemporânea entre índios Kurina de estruturas de terra utilizadas para fins agrícolas.
Assim, Denise Schann se contenta com uma única referencia de Antonio Pereira Labre, explorador que percorreu as terras acreanas no final do século XIX – portanto, bem depois de Chandless, quando os seringais já se espalhavam pelos rios acreanos e a ocupação indígena da região já estava sensivelmente conturbada – no qual ele narra o encontro com índios Araona (que na época ocupavam parte das terras do vale do Acre, mas hoje só existem na Bolívia) no qual observou que eles cultuavam deuses que tinham formas geométricas. Pronto, foi o bastante para que a pesquisadora sugerisse de forma categórica que os sítios geométricos do Acre tinham uma função eminentemente ritualística de culto à deuses também geométricos.
Curiosamente, há cerca de oito anos atrás, baseado em diversos documentos e informações étnicas, lingüísticas e arqueológicas levantei a hipótese que os sítios geométricos do Acre estivessem relacionados à povos de língua Aruak, o que, aliás, também é aventado por pesquisadores que vem trabalhando na Bolívia. Mas isso não impediu que o arqueólogo finlandês Marti Parssinen, um dos pesquisadores associados à Denise Schann, questionasse minha abordagem dizendo que os dados ainda não eram suficientes para uma afirmação dessa natureza e importância.
Mas não me surpreenderia que Marti Parssinen também não assinasse em baixo da afirmação superficial de Denise Schann, já que ele, em uma demonstração de absoluta coerência científica, não usa o termo geoglífos para os sítios acreanos - termo que, aliás, já vem sendo questionado por vários pesquisadores da comunidade internacional, como eu avisei que iria inevitavelmente ocorrer – mas sim a denominação “earthworks” que equivale em inglês à denominação “estruturas de terra” utilizadas por Ondemar Dias Jr desde seus pioneiros trabalhos da década de 70. Da mesma forma que Marti Parssinen, não ignora em seus artigos as datações que obtivemos para os sítios do Acre, nas pesquisas realizadas entre 1992 e 2002, que recuam sua construção e ocupação até três mil anos atrás.
Muito diferente do que Denise Schann faz, já que ela prefere ficar com uma única datação obtida em um contexto arqueológico perturbado, para afirmar que os sítios acreanos tem 1.000 anos, simplesmente porque isso se encaixa melhor à sua teoria de ocupação da Amazônia, que praticamente ignora uma possível ligação dos sítios acreanos com os sítios do norte da Bolívia, mas inclui uma improvável conexão com o Xingu (e com grupos de língua Aruak, é bom que se diga), onde o norte-americano Heckenberger, que atualmente é o arqueólogo da moda no Brasil, faz pesquisas. O que é estranho, apesar de sintomático. Começo a desconfiar que haja uma inusitada conexão entre antigos deuses geométricos e certos deuses arqueólogos, donos de uma insuspeita capacidade de desvendar segredos e mistérios do nosso passado, num empolgante enredo mais digno de um novo filme de Indiana Jones do que de uma pesquisa científica consistente.

Recortes aleatórios da política

Já que hoje é dia de eleição que tal darmos uma olhada em alguns acontecimentos antigos da história política acreana, ainda na época em que nem havia eleições para o Governo do Território Federal, pinçados das páginas dos jornais.

Empreza, 11 de julho de 1907 - Anniversário do Exm° Sr. Prefeito do Departamento - O Capitão Domingos Jesuino de Albuquerque Junior.
O Acre - Órgão dos interesses Acreanos, 28 de julho de 1907, Cidade de Xapury

A PASSAGEM DO GOVERNO NO PALÁCIO RIO BRANCO.
Verificou-se, às 7,30 da manhã, o ato da passagem da administração do Território que não se revestiu de grande solenidade. O Governador Hugo Carneiro tomando da palavra declarou ao 1. Vice - governador João Câncio Fernandes.
O ACRE- Orgão Official, 6 de julho de 1930, Rio Branco.

O INTERVENTOR DO ACRE
Está confirmada a alvissareira notícia de haver sido nomeado para o cargo de Interventor deste Território o distinto advogado Dr. Francisco de Paula Assis Vasconcelos, grande proprietário de seringais nesta região, onde tem residência efetiva desde 1913.
... Nomeação feita sob indicação do invicto revolucionário General Juarez Távora,...
O ACRE - Orgão Official, 30 de Novembro de 1930, Rio Branco

O NOVO INTERVENTOR FEDERAL NO TERRITÓRIO.
Desde o dia 21 deste mês acha-se o Território sob o governo do exmo. Sr. Dr. José Moreira Brandão Castelo Branco Sobrinho, nomeado Interventor Federal pôr ato de 15 de agosto último do exmo. Sr. Dr. Getúlio Vargas. Magistrado aposentado com mais de 25 anos de serviços prestados à Justiça acreana, cidadão possuidor de adamantinas qualidades cívicas, morais e intelectuais (...).
O ACRE - Orgão Official, 30 de setembro de 1934, Rio Branco

O NOVO INTERVENTOR DO ACRE .
Consoante estava esperado chegou na manhã de 14 do corrente a esta capital, a bordo da chata Nictheroy, o novo Interventor Federal no, exmo. Sr. Dr. Manoel Martiniano Prado, nomeado para esse importante cargo pôr ato de 11 de fevereiro último, do exmo. Sr. Presidente da República.
O ACRE - Orgão Official, 1935, Rio Branco

GOVERNADOR EPAMINONDAS MARTINS.
Na noite de quinta feira, realizou-se um animado baile popular com distribuição dos doces e gelados aos convivas, no alojamento das praças, no Quartel da F.P.T.A ., achando-se ali presentes o exmo. Sr. Dr. Epaminondas Martins, Governador do Território, cercado de altas autoridades judiciárias e militares, além de todos os auxiliares de sua administração, famílias e elevado número de pessoas, representantes de várias classes sociais.
O ACRE - Orgão Official, 11 de abril de 1937, Rio Branco

O ACRE VAI RECEBER O SEU NOVO GOVERNANTE. (COM FOTO)
Pelo avião da Condor de quinta-feira próxima, 21 do corrente, chegará a esta capital o senhor Capitão Oscar Passos, nomeado Governador do Território do Acre, pôr ato de 24 de julho último, do Exmo. Sr. Presidente da República.
O ACRE - Orgão Official, 18 de agosto de 1941, Rio Branco

OBRAS E REALIZAÇÕES.
S. Excia. o Sr. Governador Silvestre Coelho dá início ao plantio da seringueira.
“Aquele que plantar seringueira será meu amigo, porque está trabalhando pelo desenvolvimento do Acre.”
O ACRE - Orgão Official, 21 de fevereiro de 1943, Rio Branco

“CREIO NO ACRE E NOS ACREANOS”
Assim falou o Major Guiomard dos Santos ao ser empossado no Governo do Território.
A posse do major Guiomard dos Santos revestiu-se de grande solenidade, com a presença de grande massa popular.
O ACRE - Orgão Official, 23 de maio de 1946, Rio Branco

TEM NOVO GOVERNADOR O TERRITÓRIO DO ACRE.
O Ten. Cel. Amilcar Dutra de Menezes, nasceu a 30 de agosto do ano de 1908, contados pois, 42 anos de idade. (...) É reformado no posto de Tenente Coronel.
O ACRE - Orgão Official, 8 de abril de 1951, Rio Branco

A mensagem na qual o Exmo. Sr. Dr. João Kubitschek de Figueiredo, comunica ao povo acreano, (Rio - 25 de março de 1953), que se exonerou do cargo de Governador deste Território, causou surpresa e grande pesar em todos os círculos sociais desta capital.
O ACRE - Orgão Official, 29 de março de 1953, Rio Branco


José Augusto discursando para a população em frente ao palácio Rio Branco, 01 de março de 1963, Ac.: CDIH/UFAC

PROMULGADA A CONSTITUIÇÃO ACREANA E EMPOSSADO O GOVERNADOR CONSTITUCIONAL. PROF. JOSÉ AUGUSTO DE ARAÚJO.
No dia 1° deste mês em Rio Branco, capital do Estado do Acre, realizou-se a promulgação da Constituição Acreana e a posse do governador eleito, Prof. José Augusto de Araújo.
O JURUÁ, 10 de Março de 1963.

sábado, 25 de setembro de 2010

Eram os Deuses Arqueólogos? (I)

Semana passada aconteceu em Manaus o segundo EIAA, Encontro Internacional de Arqueologia Amazônica. Graças à reunião de pesquisadores de todo o Brasil que atuam nas mais diversas áreas da Amazônia, bem como de alguns dos principais pesquisadores estrangeiros, foi possível, além de atualizar as informações sobre as pesquisas em curso, perceber claramente os tortuosos caminhos que a arqueologia vem traçando em nosso país e no mundo atualmente.


A arqueologia é um ramo do conhecimento muito especial. Possui uma trajetória algo diferente da maioria das outras ciências contemporâneas. Com o advento do evolucionismo darwiniano e as missões de busca por nossos ancestrais nos vales da África, Europa e Ásia, a arqueologia logo se confundiu com as ciências da natureza.
Os estudos de antropologia física dos hominídeos, associados à definição de tipos taxonômicos para classificação de artefatos pré-históricos - fortemente baseados nos métodos utilizados para definição de gêneros, famílias e espécies de seres vivos - bem como a necessidade de considerar as culturas pré-históricas em estrita relação com os ambientes onde se desenvolveram, contribuíram decisivamente para essa aproximação.
Entretanto, a arqueologia é, ao mesmo tempo, a ciência responsável por estudar a trajetória das sociedades humanas ao longo de sua existência, antes do advento dos documentos escritos. E neste sentido a arqueologia é história, e, por isso, integra também o corpo de conhecimentos das ciências sociais e humanas.
Esta essencial ambigüidade da arqueologia ora favorece esta ciência com um vasto instrumental que percorre quase todas as ciências da natureza e quase todas as ciências humanas. Ora a torna refém de praticas cientificistas que aprisionam a pesquisa em uma pretensa e anacrônica neutralidade que dificulta a apropriação dos avanços desta ciência pela sociedade de modo geral.
Às vezes, chego a ter a impressão que alguns arqueólogos chegam a sentir certo prazer em manter essa postura de distanciamento. É como se estes fossem verdadeiros semi-deuses, detentores de um conhecimento inacessível aos mortais comuns. Uma postura que mesmo entre as ciências da natureza já foi ultrapassada há muito tempo, já que as forças produtivas baseadas na biotecnologia e a necessidade de adequação de nossa sociedade às radicais mudanças ambientais e climáticas contemporâneas se encarregaram de transformar o caráter e a aplicação que esses desenvolvimentos científicos adquirem perante a sociedade em geral.
É claro, mas não custa ressaltar, que não quero generalizar, nem tampouco desconhecer a grande quantidade de arqueólogos que possuem forte compromisso social e profundas preocupações e práticas humanistas. Mas também não posso deixar de reconhecer que, infelizmente, em nosso país ainda existem muitos arqueólogos que se colocam nessa condição de cientistas neutros (como não tivessem nenhuma responsabilidade) diante dos graves problemas e questões políticas que afligem a sociedade pós-moderna globalizada.

Nem precisamos ir muito longe para compreender as conseqüências dessa postura assumida por parte da comunidade arqueológica brasileira. Uma notória dificuldade em transmitir os resultados das pesquisas de forma compreensível, sem derrapar para imagens do tipo “Indiana Jones”, “Eram os Deuses Astronautas”, ou “Civilizações misteriosas perdidas no coração da floresta”; um condicionamento acrítico em relação às políticas publicas já definidas para a prática arqueológica em nosso país ou às exigências das empresas responsáveis pelas grandes obras de infra-estrutura que, por força da legislação ambiental, são obrigadas a realizar a chamada “arqueologia de contrato”; uma injustificável ausência de posicionamento político claro em relação à questões muito contundentes, tais como: os graves problemas sociais e culturais enfrentados pelos povos indígenas da Amazônia e da América Latina, a ocupação urbana desordenada e a especulação imobiliária, responsáveis pela destruição de boa parte de nosso patrimônio arqueológico, e assim por diante.
Devo confessar que, para mim que hoje atuo mais no campo da gestão pública do que da pesquisa acadêmica, essas constatações causaram um profundo estranhamento.

Em Tempo:Deu gosto de ver a força e o prestígio que a candidatura da Marina tem em Manaus. Chega a ser impressionante o fato de que todos os taxistas com quem tive a oportunidade de conversar foram unânimes em afirmar que vamos ter segundo turno entre a Dilma e a Marina. E como todos sabem, nenhuma categoria profissional é melhor porta voz do pensamento de uma cidade que seus taxistas...

sábado, 11 de setembro de 2010

Antigas novidades da política acreana

(Mutações V)

Esta talvez seja uma das campanhas políticas mais chatas que eu já vivi. Não tem comício, nem showmício. Não tem os tradicionais bêbados no pé do palanque, nem camisa e nem boné com que carregar as cores de nossos candidatos. Mas, como as coisas não podem mesmo mudar tão rápido, ainda podemos assistir tragicômicos episódios em forma de socos e pontapés na tv, montes de dinheiro na caixa de papelão e tradicionais rivalidades sem as quais a política não teria a menor graça.



Estava eu entretido com as obrigações de todo dia no velho seringal urbano em que trabalhamos nós da cultura de Rio Branco, quando me chega de visita um dos antigos senhores acreanos que de quando em vez aparecem pra trocar uma prosa. Afinal, nada mais característico da cultura acreana do que praticar a boa e tradicional arte de lembrar e contar o lembrado.
Pois me disse ele que esta semana esteve num badalado evento social que reuniu a fina flor da rapiocagem local, como diria outro amigo acreano também antigo, e o que viu por lá o fez lembrar de um causo que lhe foi contado faz muito, muito, muito tempo...
É que, como todo mundo sabe, na época do Acre Território, lá pelos idos dos cinqüenta, a política acreana era dominada por Guiomard Santos e Oscar Passos. E os dois generais/caciques políticos, donos do PSD e PTB respectivamente, infalivelmente acabavam também sendo os donos absolutos das duas únicas vagas de deputado federal que o Acre tinha no Congresso Nacional.
Assim, neste tempo, o Acre todo se dividia entre Pessedistas e Petebistas, como antes já haviam se dividido entre os legionários e os construtores (também conhecidos como corocas e urucubacas). E a disputa era por demais acirrada, muitas vezes chegando às raias da insensatez. Aliás, bastante diferente do que podemos observar na atual política acreana???!!!
Ocorreu então que, no meio de uma dessas acirradas campanhas, Oscar Passos decidiu minar as forças de Guiomard em seu próprio reduto eleitoral. E a bordo de seu indefectível jipe o petebista veio até a longínqua colônia do São Francisco. Naquela época, uma verdadeira aventura já que o caminho de terra não facilitava a vida de ninguém. Pense na ladeira do São Francisco, agora pense numa dificuldade monstra.
E em pleno reduto guiomarista, que era a “colonha” São Francisco, Oscar Passos desandou a destratar seu adversário político: “Porque o Guiomard está louco. Onde já se viu querer transformar o Território Federal em Estado. Será que ele não sabe que sem o dinheiro do governo federal o Acre tá lascado? Isso é uma verdadeira doidice...”
E tantas Oscar Passos disse e redisse que um dos moradores da Colonha ficou verdadeiramente indignado e logo decidiu: “Não. Isso não pode ficar assim. Meu cumpadre Guiomard precisa saber disso. Vou lá na cidade falar com ele... Ele precisa saber o que essa féla da mãe anda falando dele...” E lá se veio o pobre homem, patinando no barro, horas a fio, já que, diferente do General Oscar Passos, jipe ele não tinha. Mas mesmo diante de tantas dificuldades, vinha munido de tamanha indignação que não se permitia esmorecer.


Mal chegado no centro da cidade o homem rumou direto pro Hotel Chuí, que então era a casa de todos eles quando estavam no Acre, Guiomard, Oscar e tantos quantos faziam da política no distante Acre seu modo de vida. Logo foi informado que Guiomard se encontrava salão do Hotel.
Qual não foi a surpresa do homem ao se deparar com Guiomard sentado à mesa, num conversê danado, com o Oscar Passos. O pobre homem não podia acreditar no que seus olhos viam, tanta era a risadagem dos dois generais/caciques. E mais abismado ainda ficou ao pescar um trecho da conversa dos dois, justo na hora em que Oscar dizia ao seu arquiinimigo:
- Pois é tive lá no seu reduto, no São Francisco, disse poucas e boas do teu projeto e descasquei pra cima de ti... Há, Há, Há!!!
Ao que de bate pronto respondeu Guiomard Santos, em meio à outra grande risada:
- Tem problema não. Saiba que ainda ontem eu estive lá no Quinze (reduto forte de Oscar Passos) e falei muito pior de ti...
E logo estavam os dois se rindo juntos... diante do atônito homem exausto pela difícil caminhada até ali e, pior, enfurecido pela cena que estava presenciando. Não lhe restou outra alternativa, então, senão se aproximar da mesa dos poderosos generais e descascar pra cima de ambos, que era a única forma de não perder de todo a viagem...
Pois bom (como diria Seu Agnaldo Moreno, outro ferrenho pessedista)! Esta semana, ao chegar ao lançamento do novo livro de um dos principais jornalistas do Acre atual, nosso antigo amigo logo se lembrou da história brevemente contada acima, ao perceber tradicionais adversários políticos acreanos ali reunidos em animadas rodas de conversa. Quem quer que os vissem assim, inadvertidamente, em meio a tanto conversê e risadagem, não poderia imaginar que esses mesmos políticos protagonizam tantas e tão profundas brigas diárias na atual disputa eleitoral.
Eu, de minha parte, fiquei embatucado e me perguntando: Será isso bom ou ruim???? Confesso que não sei responder... Só sei que a cultura política acreana sempre foi e ainda é assim...

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Ruínas*

(Mutações IV)

Esta semana os jornais acreanos noticiaram que finalmente entrou em operação a Alcobrás. Por isso me lembrei de um texto que escrevi há alguns anos atrás que tratava, não só daquela fantasmagórica usina abandonada no meio do mato, como também de seu antecessores os Seringais Itu e Palmares.







A Amazônia, em sua infinita imensidão, sempre foi o lugar dos sonhos dos homens. Indomada, inóspita, misteriosa, lugar dos reinos encantados do El Dorado, do Paititi e das mulheres guerreiras. Por isso os homens que para cá vieram em todos os tempos traziam na bagagem a gana dos aventureiros que teimavam em tornar reais seus sonhos e com isso ganhar fama e riqueza.
Foi assim que me senti ao entrar no impressionante conjunto de ruínas e abandono em que se transformou o Seringal Palmares, mais tarde conhecido como ALCOBRÁS. Poucos metros após passar por uma carcomida e insuspeita porteira vi surgir à minha frente enormes galpões de concreto e metal completamente abandonados, ainda que em surpreendente bom estado; várias carcaças de ônibus e automóveis que pouco ou nunca foram usados; cinco prédios de dois pavimentos que iriam ser usados como vila de operários; toneladas de adubo, calcário e outros produtos químicos se esvaindo aos poucos a cada chuva que lava caudalosamente o chão contaminando as nascentes do Iquiri que, segundo se diz, nasce por ali; tudo fruto da louca idéia de implantar uma usina de álcool em plena floresta amazônica.
Mas, o mais surpreendente de tudo foi perceber a sobrevivência de diversos prédios de madeira (sede, escola, igreja, barracão de mercadorias, queijaria, etc.) que compunham o núcleo de um dos maiores e mais importantes seringais do Vale do Acre, o mais rico dentre todos os vales acreanos no início do século XX.
Era uma visão extraordinária. Encontrar ali, no meio daqueles milhares de pés de cana que teimavam em nascer misturados ao capim e à capoeira, a sede do antigo Seringal Palmares de pé, ainda que de forma precária. Logo a curiosidade substituía a surpresa e tive que vencer, com muito esforço, a altura que me separava do piso de madeira de um legitimo barracão de seringalista, os famosos coronéis de barranco, graças a uma escada que não mais existia.
Inesperadamente ali dentro encontramos poucos, mas consistentes, vestígios de um passado de fausto e glória. Uma grande geladeira “Eletrolux” com pés altos, que a deixavam a mais de dois palmos de altura do chão (mais fácil de limpar do que nossos modelos modernosos, diga-se de passagem), mais parecendo um cofre forte de tão maciça. Fiquei imaginando que deveria ter custado uma fortuna e muito suor para chegar ao interior do interior do Acre.
Logo meu olhar foi atraído para as paredes inclinadas e carcomidas da outrora espaçosa casa cujo estado de ruína não conseguia ocultar a ótima qualidade da madeira com que havia sido construída. O forro saia-camisa tinha sido retirado da maior parte da grande casa, mas ainda resistia em alguns dos quartos, e revelava o capricho dos mestres carpinteiros ao construir a moradia de um dos mais poderosos seringalistas que por aqui se estabeleceram. O banheiro interno da casa, luxo que poucos possuíam no Acre de então, revelava surpreendentes obras de alvenaria e uma carcomida rede de grossos canos de ferro, como que nos alertando que o dono daquela casa não havia poupado esforços e nem despesas para de ter conforto em meio à imensidão da floresta amazônica.
É verdade, a história conta que o velho Honório Alves das Neves construiu, ao longo de anos de árduo trabalho, uma propriedade imensa, quase um país. Os seringais Palmares e Itú somados ocupavam uma enorme área, como a maioria dos outros gigantescos seringais de uma época em que a demarcação era feita em estradas de seringa, ao invés de hectares.
O Itú, à margem do rio Acre, era a porta de entrada do reino do Coronel Honório. Por ali chegavam as mercadorias trazidas pelos vapores que vinham do Amazonas fazendo a linha do rio Acre. Essas mercadorias eram depois distribuídas para dezenas de colocações de seringueiros pelos comboios de burros que cortavam a floresta por estreitos varadouros.
Quanto ao Palmares a história era diferente. Tratava-se de um seringal de centro que ocupava uma vasta área de terra firme e que, além de rico em seringueiras e castanheiras, possuía grandes campos naturais que possibilitavam o estabelecimento da pecuária. Um ramo de atividade econômica complementar à exportação da borracha que teve grande importância no vale do rio Acre, e que permanece praticamente ignorado por quantos escreveram as histórias mais antigas do Aquiry.
Isso se dava em razão de que, desde que foram implantados, os seringais acreanos sempre necessitaram de um abastecimento regular de carne fresca. A alimentação baseada somente em produtos enlatados que vinham da Europa industrial para alimentar as correntes de dependência econômica da borracha e as bocas de milhares de homens que viviam internados naquelas matas brutas, provocava a debilidade orgânica dos seringueiros e a consequente diminuição de sua produtividade. Por isso era necessário fornecer-lhes carne fresca, seja através da caça, seja através do gado de corte, que só podia ser obtido naquela época nos campos bolivianos. Já que caçar desviava a atividade dos seringueiros do corte da seringa foi articulada, desde as ultimas décadas do século passado, a importação de gado boliviano. Essa rede comercial conseguiu manter-se ativa até mesmo durante o período revolucionário que marcou a passagem do século e continuou em funcionamento pelas décadas subsequentes.
Porém, o estabelecimento do comercio de gado entre os criadores bolivianos e os seringalistas brasileiros criou necessidades específicas que precisavam ser atendidas. Depois da longa caminhada das manadas trazidas dos campos do Beni, ao norte da Bolívia, atravessando centenas de quilômetros de mata bruta - rasgada somente por estreitos varadouros entrecortados por inúmeros igarapés e rios - os bois que conseguiam suportar a longa travessia chegavam ao Acre magros e enfraquecidos, sendo necessário, portanto, engorda-los para o consumo. Era ai que entravam em ação os campos naturais do Gavião, da Cobra, os Campos do Capatará, os Campos Esperança, as Missões e os Campos do Palmares. Nestas áreas o gado magro ficava invernado para engordar o suficiente até seu abate e a subsequente realização dos lucros dos envolvidos nessa atividade.
Graças a isso o Palmares foi um seringal especial. Além de fornecer as tradicionais pelas de borracha e latas de castanha, produzia também, carne, leite, couro, queijo, e todos os produtos extraídos da atividade pecuária.
O velho Honório Alves construiu assim uma enorme fortuna que deixaria aos seus herdeiros, especialmente ao Dr. Carlos, que dela usufruiu ao longo de toda a vida, até morrer na mais absoluta miséria, ou, segundo nos disse um velho seringueiro nascido e criado nas terras do Palmares, “na pedra fria”.
Quanto à ALCOBRAS - aquelas enormes carcaças metálicas ainda visíveis por quantos percorrem a BR-317 no rumo de Xapuri e que um dia pretendeu produzir álcool, para na verdade somente produzir rombos nas contas bancárias e nos cofres públicos – seria, na verdade, assunto suficiente para outro artigo dessa coluna.
Basta-nos agora ver aquelas ruínas estranhas que reúnem em sua tristeza: casas da melhor madeira de lei - de uma floresta que testemunhou uma época de riqueza e conforto graças ao leite generoso de suas arvores - e prédios de alvenaria, ferro e amianto que não resistiram à realidade avassaladora da floresta e apodrecem com sua modernidade e tecnologia ao sabor das abundantes chuvas do inverno amazônico. Assim passamos a compreender que essa Amazônia maravilhosa não foi construída somente por sonhos românticos e felizes, mas em grande parte, por sonhos em ruínas.

* Artigo adaptado de texto publicado na revista Outras Palavras, Coluna Histórias das Margens, em setembro de 2000.