segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Sobre a Beleza e o Caos


“Rio 40 graus.
Cidade Maravilha,
Purgatório da Beleza e do Caos”
(Fernanda Abreu)


Poucas cidades do planeta têm o privilégio de serem conhecidas mundo a fora por sua beleza. Este é o caso do Rio de Janeiro. A cidade maravilhosa que tem o privilégio de reunir a beleza das montanhas - que recortam o horizonte de forma inusitada - com o encanto do mar, numa sucessão extraordinária de praias, cada uma mais bonita do que a outra. Para qualquer leitor mais distraído pode até parecer que o destino de um lugar como esse só pode ser o de se tornar o paraíso na terra.
Mas, como todos vimos na semana passada, através dos jornais e TVs, não é bem isso que acontece. E assistimos assustados às imagens de uma violenta guerra urbana que, ainda por cima, apresenta reais possibilidades de se espalhar para outros estados e cidades brasileiras. Mas como as coisas chegaram a esse ponto? Eis uma resposta que não pode ser obtida de forma breve, só um olhar mais profundo poderá ser capaz de nos dar pistas sólidas sobre este intrigante paradoxo.
Afinal, não podemos esquecer que o Rio de Janeiro sempre foi um território de grandes e aberrantes contrastes. Enquanto a Corte Real portuguesa e todos os seus agregados ocuparam os melhores espaços disponíveis na cidade, sobrou para os escravos e trabalhadores livres ocupar as áreas das encostas dos morros. Assim se configurou uma cidade em que a “periferia”, entendida como o espaço ocupado pelas camadas mais pobres, não estava longe e nem apartada, mas no interior mesmo dos bairros das classes médias e elites.

No Rio de Janeiro, sempre houve uma clara distinção entre o asfalto e a favela. Uma distinção que não resultou numa segregação radical. Pelo contrário, afinal, os moradores das favelas trabalhavam nas casas dos ricos, ao mesmo tempo em que a burguesia consumia o samba, o jogo do bicho e os modos e gírias da malandragem carioca que era produzida no fértil espaço popular dos morros. Com mais uma característica adicional que não deve ser desprezada. Existe no Rio um espaço em que todos se encontram e convivem: a praia.
Por exemplo, lembro de certa ocasião em que estava junto com alguns amigos da faculdade aproveitando o fim da tarde na praia, que é o esporte predileto dos cariocas, quando se aproximaram uns três ou quatro meninos (não lembro mais ao certo) entre 7 e 12 anos. O normal seria então que a própria diferença de idade impedisse qualquer tipo de relacionamento entre a gente. Mas a conversa daqueles meninos era diferente. Eles já estavam envolvidos com o tráfico e o mais velho deles, que era o líder do pequeno bando, nos contou, depois de algum tempo de conversa, que já tinha matado um homem e participado de diversos roubos e assaltos. O que lhe fazia ter consciência de que sua vida seria muito breve. Mas isso não lhe importava, já que ele só queria viver intensamente o tanto que pudesse. Ficamos assim, durante algumas horas, nós universitários, ouvindo aqueles meninos que já eram muito mais vividos e maduros que nós, nos ensinando sobre a beleza e o caos da vida. E é assim que, naturalmente, crescem juntos os cariocas, independente de classes sociais, cor ou credo.


Ou seja, o problema do Rio não é a proximidade do morro e do asfalto, nem a mistura entre os moradores de ambos. Diria mesmo que a situação só não é pior graças a essa característica tão própria da cidade maravilhosa. Os problemas enfrentados pelos cariocas estão muito mais relacionados à omissão e corrupção dos governos do que a qualquer outra coisa. E é essa a principal reflexão que precisa ser feita sobre os recentes acontecimentos da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão.
Qualquer pessoa que conheça minimamente o Rio de Janeiro sabe que há muito tempo toda a estrutura governamental está falida e corrompida. A polícia do Rio se tornou uma das mais corruptas do mundo. Não há ocasião em que a polícia aborde um cidadão para fazer cumprir a lei, mas sim para lhe tomar dinheiro a qualquer custo. A situação chegou a tal ponto que a população passou a ter mais medo da polícia do que da bandidagem.
E a mesma condição submete os mais diversos gestores públicos e agentes políticos. Afinal, já faz tempo que a contravenção (jogo do bicho, maquinas caça níqueis, etc.), o tráfico de drogas e as milícias abastecem políticos com gordas propinas que bancam e/ou turbinam candidaturas e gestões governamentais e tornam a sociedade refém de uma situação, pelo menos aparentemente, sem retorno.

Entretanto, já faz tempo também que a sociedade carioca resiste e reage. O Movimento pela Paz, a nova política das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) e a mobilização da opinião pública são evidentes sinais de que finalmente as coisas estão mudando. Mas tenho a sensação de que só isso não basta. Está passando da hora da sociedade brasileira ter uma profunda discussão sobre a questão das drogas. Está mais do que provado que só proibição, repressão e criminalização não constituem soluções verdadeiras.
Nunca deu certo simplesmente proibir o consumo desta ou daquela substancia. Seria muito mais coerente tratar o problema das drogas em nossa sociedade como um caso de saúde pública, como é feito com o consumo de tabaco, que vem diminuindo sensivelmente nos últimos anos graças a uma política de esclarecimento e sensibilização. Mas neste ponto, parece que ainda não estamos prontos e nem maduros o suficiente para abrir mão da enorme carga de preconceito que trazemos em nossas consciências de maneira a regularizar a situação dos consumidores de drogas e tira-los do submundo do crime. Enquanto isso não acontece vamos seguir assistindo a uma sangrenta guerra nas ruas da mais linda cidade do mundo e vendo nossos meninos matando e morrendo por nada.





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