domingo, 31 de julho de 2011

Machu Picchu – Um século (I)


(ou: Mistérios da alma humana)

No dia 24 de julho de 1911 Hiram Bingham chegava a Machu Picchu. Um acontecimento que, sem que o explorador pudesse desconfiar, determinaria boa parte de minha vida, como deve ter feito com muitos outros antes e, ainda fará, depois de mim.

Se chamava “Cidadelas Perdidas”, se não me falha a memória, aquele livro em dois volumes que encontrei num sebo. Dentro de um deles uma narrativa, em especial, me encheu de sonhos e desejos. Eu era mais que um menino e menos que um rapaz então. Ainda podia passar noites inteiras lendo livros extraordinários que me faziam viajar por todas as partes do mundo e por todos os tempos possíveis entre o passado e o futuro.
Aquele capítulo que nunca consegui esquecer tratava da descoberta de Machu Picchu pelo norte-americano Hiram Bingham, em 1911. A narrativa daquela tensa subida por altas montanhas que roubava o fôlego dos exploradores, das dificuldades que a densa floresta das escarpadas encostas impunha, das dúvidas que assaltavam a expedição a cada dificuldade do longo e improvável caminho, fazia minha imaginação ver tudo como se estivesse acontecendo diante de meus olhos.
Mas nada nesta fantástica história era superior ao exato momento em que Hiram Bingham finalmente viu diante de si a mítica e lendária cidade perdida encravada entre dois cumes da “montanha velha” (tradução de Machu Picchu, em Quechua). Senti, como ele, naquele momento meu coração disparar e ser invadido por uma forte vertigem, coisa extremamente perigosa pra quem está “atrepado” naquelas alturas de mais de 2.400 metros.


Até hoje não consigo saber o que era maior então. A paisagem impressionantemente monumental, com o rio Urubamba serpenteando aos pés daqueles altos picos que ousavam desafiar o céu. A sensação de ter realizado uma extraordinária descoberta que iria rápida e permanentemente maravilhar todo o mundo, estabelecendo uma nova série de mistérios a serem desvendados. Ou a absurda consciência de que nada que Hiram Bingham fizesse depois seria maior ou mais importante do que aquela descoberta, aquele exato momento em que a vida de um homem deixa de ser ameaçada pela iminente possibilidade do fim e se torna eterna como as próprias montanhas que o cercavam então.
Acho muito difícil que, mesmo considerando o notório pragmatismo norte-americano, Hiram não tenha compreendido naquele instante porque os Incas consideravam as montanhas, não apenas sagradas, mas como os próprios deuses em si.
Lembro nitidamente que foi neste momento da leitura que decidi duas coisas definitivas para a minha própria vida: um dia eu iria a Machu Picchu e, não tinha jeito, eu ainda seria arqueólogo. Hoje, escrevendo esse artigo, fico muito feliz por já ter feito ambas as coisas (não exatamente da forma como imaginei naquela época), mas essas são outras histórias que vão ter que ficar pros próximos artigos.



Entretanto, não posso deixar de ressaltar aqui que, um século depois daquele momento extraordinário, ainda não se sabe exatamente o que foi Machu Picchu. Já se disse que era uma fortaleza secreta, um retirado e restrito templo para as escolhidas do Inca, o mausoléu de Pachacutec (o maior dos Incas e hipotético construtor da cidade) cuja múmia teria sido retirada dali pouco depois da chegada dos espanhóis à Cuzco, o refúgio do último Inca depois da fulminante destruição do Império pelos espanhóis, estratégico local de supervisão da produção de diferentes povos submetidos ao Império Inca, importante centro religioso, político, etc.
A mais recente teoria em discussão dá conta de que Machu Picchu teria sido um centro de peregrinação. A extremidade de um caminho sagrado que se iniciava na Ilha do Sol no meio do Lago Titicaca e terminava em seu famoso templo central. Vai saber. Mais que sua infinita beleza, talvez a principal característica de Machu Picchu seja mesmo essa propriedade de, através de seus inesgotáveis e indecifráveis mistérios, continuar desafiando o que há de mais profundo em nossa alma.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

O PODER DO SILENCIO*


31 anos desde que a morte de um homem mudou o curso da história. Seu nome: Wilson Pinheiro. Um homem alto, determinado, de fala mansa e rara, mas de olhar poderoso.

Por um mês procuramos, em vão, sinais de sua voz. Nada.
Nenhum papel de pão manuscrito, nenhum documento do Sindicato, nenhuma entrevista nos jornais, nenhuma frase solta e memorizada pela multidão que seguia os passos daquele homem de evidente coragem.
Foi por vozes alheias que começamos a conhecer a história de Wilson. Sobram relatos do dia 21 de julho de 1980, quando três balas desferidas pelas costas puseram fim a sua vida. O primeiro dos líderes da floresta a morrer sem razão, por uma causa. Mas não o ultimo a pagar com a vida para que outros pudessem continuar vivendo de acordo com suas tradições culturais. Foram esses relatos da morte, da comoção popular, do enterro, da indignação, da dor e das juras de vingança, publicadas nos jornais acreanos e repetidas nas entrevistas feitas com as pessoas que participaram dessa história, que nos fizeram começar a ouvir o som da voz daquele homem calado.
Não pudemos evitar um calafrio na espinha ao conhecer a história do homem enterrado com uma moeda na boca para evitar a fuga de seus assassinos. Os signos populares são poderosos. Às vezes a sina de um homem pode ser sintetizada em um único gesto.
Não pudemos, tão pouco, evitar um enjôo desagradável ao ler matérias do jornal oficial que diziam que a culpa da malfadada “tensão social” vivida pela população acreana naqueles anos terríveis era dos agitadores, dos subversivos, dos comunistas que só queriam conflagrar a multidão para destruir a ordem vigente.
Se bem entendemos essa história, era o povo que estava tentando manter a ordem das coisas de um Acre invadido por pessoas que pouco sabiam da gente que vivia do que a floresta tinha pra oferecer, que só se interessavam por tirar o máximo possível no menor tempo possível. Quem subvertera a ordem natural das coisas havia sido o então chamado “Capitalismo Selvagem”, o Governo Militar, o Governo Biônico Estadual, para os quais só contavam índices econômicos favoráveis e um povo manso que obedecesse prontamente o que lhe era determinado. Era preciso progredir, desenvolver nosso país subdesenvolvido (outra palavra da moda na época). Afinal de contas “Esse é um país que vai pra frente” e “O Brasil, (é) o país do futuro”.
Naquela época eram eles que falavam, Wilson calava, mas agia. Usava sua enorme força vital para conduzir o povo em uma marcha pacífica pelo “empate” com o progresso. Talvez até soubesse que não podia vencê-los. Eles possuíam a polícia, as forças armadas, o capital, a justiça, tudo ao seu lado. E o povo o que tinha? Somente determinação e coragem frente à força bruta. Mas, se não se podia vencer os opressores, se pudesse ao menos “empatar” eles. E lá iam, mulheres e crianças à frente, impedir mais uma derrubada. Centenas de Wilsons, anônimos, calados, transformando suas ações em uma voz que gritava.


E, da culminância da dor, a vingança. Morte trocada. Para um Wilson morto, uma outra morte, um Nilão, culpado ou não, um deles. Era tudo que ainda podiam fazer se quisessem sobreviver. Aceitar de braços cruzados a morte de Wilson significaria a derrota e a condenação à morte de muitos outros homens de um povo submetido ao terror instituído. Existe razão possível na guerra?
As versões estão lá, para todos verem. Quem perder algum tempo lendo as matérias publicadas no “Varadouro”, no “Nós Irmãos”, na “Gazeta do Acre”, no “O Rio Branco” e no “O Jornal” poderão constatar a mobilização popular que se espalhava por todos os vales - de Boca do Acre até Assis Brasil, de Sena Madureira até Cruzeiro - contra a invasão dos “paulistas”. Quem se der ao trabalho ler as páginas daqueles jornais conhecerá o descaso oficial para a captura dos assassinos de Wilson e depois a fúria com que os assassinos de Nilão foram perseguidos, presos e torturados. Manchetes que não precisariam ter sido publicadas, se nossos governantes fossem sensatos e esse um país justo.
Anos se passaram desde então. A luta continuou e as manchetes dos jornais seguiram estampando notícias de crimes de encomenda, de conflitos eminentes, de empates vitoriosos e de ações públicas insuficientes. Outros homens tombaram antes que a floresta acreana e os modos de se viver dela pudessem ser salvos. Poucos culpados foram presos por seus crimes. Mas o povo venceu. No que era possível, mas venceu. Reservas extrativistas foram demarcadas, o povo da floresta fez uma aliança que mostrou a todos a existência de uma população que só queria tranquilidade e justiça pra tocar sua vida. A voz de Wilson e de seu povo havia sido forte o suficiente para se fazer ouvir longe.
O Acre nunca mais seria o mesmo então. O povo das cidades também havia assistido à chegada de milhares de famílias expulsas de suas casas, presenciado a miséria que explodia em suas invasões periféricas e ouvido as vozes que se levantaram de dentro da floresta. Os educados filhos da cidade também tiveram que ver tudo o que acontecia em Xapuri, Brasiléia, Boca do Acre, Quinari, Tarauacá.
Mais uma vez a voz que vinha do interior seria expressa por vozes estranhas ao povo que falava. Era a vez das monografias acadêmicas, das dissertações de mestrado, das teses de doutorado. O que era coragem e sabedoria popular foi promovido à ciência, multiplicando títulos, abordagens, recortes epistemológicos - economia, história, sociologia, antropologia - expressões e palavras estranhas ao povo que de sujeito havia sido transformado em objeto.
Diferente das manchetes de jornais que não deveriam ter sido escritas, alguns dos novos títulos revelavam o aprendizado da sociedade com o que havia de mais antigo e inovador nela mesma, a voz do povo. “Ocupação recente das terras do Acre” (1982); O sertanejo, o brabo e o posseiro” (1985); “Conflitos pela terra no Acre” (1987); “Os ‘Imperadores do Acre’ – uma análise da recente expansão capitalista na Amazônia” (1988); “Seringueiros e Sindicato: Um povo da floresta em busca de liberdade” (1991); “Capital e trabalho na Amazônia Ocidental” (1992); entre tantos outros publicados nos corredores das UNBs, UFACs, UFMGs, PUCs.
Isso sem falar nas livrarias dos shopping-centers repletas de livros sobre a devastação da Amazônia, sobre a vida e a morte de Chico Mendes, sobre ecologia. Será possível que a sociedade de consumo rápido e desenfreado tenha realmente ouvido aquela voz que silenciou na boca de Wilson Pioneiro? Talvez nunca saibamos ao certo.
O que parece certo é que o Acre continuou seu caminho, tentando construir um destino próprio. Porque aqui existiu uma voz que nunca foi escrita, da qual não se registrou o timbre e nem restou nenhuma frase, mas que não deixou de ser repetida e ouvida por florestas e cidades dessa Amazônia Ocidental desde então. A voz de um homem alto e determinado, de fala mansa e rara, dono de um olhar e um silêncio poderosos.

* Adaptado de texto publicado na Revista Wilson Pinheiro – 20 anos depois; Rio Branco, FEM, julho de 2000.

sábado, 16 de julho de 2011

A Porta do Acre

(ou: Que correntes nos prendem ao passado? – III)

Esta semana completaram-se 112 anos desde que Galvez proclamou a criação do Estado Independente do Acre. Por isso fecho hoje o ciclo de republicação de artigos que tratam de Porto Acre, ou “Cidade do Acre” como lhe chamou o então Presidente da Republica acreana, sobre o exato local em que tudo aconteceu num ensolarado e memorável 14 de julho.

O atual visitante de Porto Acre pode até não perceber a enorme importância desta cidade para a história acreana. Aos olhos do viajante, Porto Acre deve parecer apenas mais uma vila de poucos moradores. Pacata e lenta como só as cidades do interior sabem ser. Mas, sob as aparências que se apresentam aos olhos de quem acaba de chegar, aqui existe um lugar que resistiu ao tempo, como seus fundadores resistiram através de uma guerra para ficar neste lugar. Afinal de contas, foi aqui que a história do Acre começou.
É verdade que existem no Acre outros povoados ainda mais antigos, como Rio Branco e Xapuri, mas quando eles foram criados às margens do rio “Aquiri”, território dos índios Apurinã, sequer existia um lugar que pudesse ser chamado de “Acre”. Por isso o patrimônio histórico de Porto Acre é um dos mais significativos do nosso Estado, apesar de toda a destruição causada pelo tempo e pelos homens.
Só pouquíssimas casas de arquitetura mais tradicional, resistem nas ruas de Porto Acre. E, ainda por cima, essas duas ou três residências são evidentemente bem mais recentes que toda aquela história que fez a fama, o nome e a existência dessa cidade.
Do mesmo modo, poucos habitantes dali guardam a memória de tudo que se passou entre aqueles barrancos altos. Afinal, já lá se vai muito tempo desde que tudo aconteceu. Os revolucionários que não morreram de bala durante a guerra, morreram depois de morte morrida. Seus filhos, também já se foram e seus netos não ficaram por aqui e estão por ai, espalhados pelo mundo. Nada que não seja completamente normal nesse país de solene e notória falta de memória.



Mas nada disso importa. O patrimônio de Porto Acre é de uma natureza diferente da maioria dos lugares que se tornaram conhecidos por seus conjuntos arquitetônicos raros, singulares e ricos. Ele está ali, diante dos que não sabem vê-lo. Porque o patrimônio histórico e cultural de Porto Acre está inscrito em sua própria paisagem.
Naquele lugar, o alto do barranco está ali, a curva e o estirão do rio estão ali. Olhando com bastante atenção quase se pode ver ainda a grossa corrente atravessada de uma margem à outra impedindo a passagem dos revolucionários acreanos.
Mas não só. O patrimônio de Porto Acre ainda está oculto também no interior das casas e da terra, sob a forma de objetos, garrafas, “cascas” de balas, pequenas letras de chumbo do jornal “El Acre” já encontradas ou por encontrar.
Todos os meninos dessa cidade, de quando em vez, acham os tesouros de um passado distante que sabem já passou há muito, mesmo sem saber avaliar quanto. Sabem também os meninos que aqueles tesouros não valem dinheiro. Quando muito valem um cupom na rifa de Seu Artur, ou uma história bem contada que os encha de imagens e orgulhos momentâneos. Sentem os meninos que apesar de não ter valor em dinheiro, os tesouros de Porto Acre valem muito e ainda podem brincar com eles, indiferentes ao passar do tempo.




Não, Porto Acre, não está esquecida. Por menos evidente que seja, Porto Acre não esqueceu de si mesma. Pode-se dizer, talvez, que está adormecida num sono longo e profundo, mas desperta um pouco cada vez que revela suas paisagens e/ou pequenos pedaços de história ocultos.
Não! Porto Acre, não é uma cidade fácil de ser conhecida. É preciso, porém, conhece-la. Não apenas como a conhecem os velhos de memória antiga, ou os livros de história, mas como a conhecem os meninos que pulam do barranco em facadas primorosas rumo às águas barrentas e que, no final da tarde, vêem o curso do rio desde o alto do barranco e se lembram que aqui começamos a ser quem somos.
Porque, ao subir o rio, uma vez passado o porto, uma porta se abre e se sabe, chegamos ao Acre.

*Adaptado de artigo publicado na Revista “Galvez e a Republica do Acre”, pela Fundação Elias Mansour, em 1999, por ocasião do centenário do Estado Independente do Acre.


OBS: Já que o artigo de hoje trata mesmo de aniversário, quero aproveitar para, mesmo muito atrasado, dar Parabéns!!!! ao Ronaldo “Spock”, diagramador do Página 20 que toda semana fica esperando meu costumeiro atraso em enviar o material da coluna, por seu aniversário na semana passada.
Sem ele, não existiria Miolo de Pote. Por isso, é importante ressaltar que ele, como poucos hoje em dia, tem a grandeza de, mesmo permanecendo invisível para quem lê a coluna, nunca deixou de se empenhar para que nossos artigos saiam bem nos jornais de domingo. Assim, por uma questão de justiça e de gratidão quero aproveitar o artigo de hoje para homenagear esse amigo e fundamental “sócio” da coluna.

PARABÉNS!!!!!!! E SAUDAÇÕES RUBRO-NEGRAS (pra não perder o costume)!!!!

domingo, 10 de julho de 2011

Que correntes nos prendem ao passado? (II)

(ou As muitas correntes de Porto Acre)

Recentemente um amigo me questionou sobre a veracidade do famoso episódio do corte da corrente durante o combate de Porto Acre. Por isso, hoje, vamos ver o que dizem, e/ou contradizem, algumas fontes históricas sobre esse acontecimento.

O ultimo grande combate da Revolução Acreana ocorreu em Porto Acre, entre os dias 15 e 24 de janeiro de 1903, e configurou-se na historiografia acreana como decisivo uma vez que Puerto Alonso (nome boliviano daquele povoado) era o centro das ações do exército boliviano no Acre.
Segundo as descrições que nos chegaram daquele episódio, os bolivianos estavam aquartelados em uma praça fortificada com alambrados de arame e trincheiras na parte alta do povoado. E, como medida complementar de defesa, atravessaram uma longa e grossa corrente de ferro de uma margem à outra do rio Acre para impedir a passagem de vapores brasileiros pela cidadela fortificada, evitando o abastecimento do exército revolucionário acreano. Para possibilitar a vitória sobre os bolivianos era imprescindível cortá-la e livrar a passagem dos vapores.
O próprio comandante das tropas insurgentes, Cel. Plácido de Castro, em suas memórias denominadas “Apontamentos sobre a Revolução Acreana” narrou assim o episódio: “Urgia que fizéssemos descer o navio ‘Independência’, a cujo bordo tínhamos borracha, com a qual devíamos comprar munições... Os bolivianos, plagiando Humaytá, tinham collocado uma corrente para vedar a passagem. Uma das extremidades dessa corrente, porém, estava em terreno que já havíamos conquistado. Entretanto, foi difficilimo cortar essa corrente... Ás seis horas da manhã, collocados todos nos seus postos, verificado o entricheiramento da casa de machinas, feito com 30.000 Kilos de borracha, mandei suspender ferro...A passagem foi feita garbosamente, debaixo de uma estrondosa salva de balas.”



O que chama a atenção nessa descrição de Plácido de Castro é o caráter secundário que ele deu ao corte da corrente em si, remetendo a ação principal à passagem do vapor Independência feito sob fogo cerrado, inclusive de um pequeno canhão d os bolivianos.
Vejamos agora o que o Coronel Azcui, boliviano que documentou e descreveu as campanhas do Acre, nos conta sobre o mesmo caso. “El 18 de enero a merced de una densa niebla el Affuá pudo burlar la vigilancia de los que lo aguardaban y pasar a Caquetá apitando fuertemente. Las gruesas cadenas que hiciera poner el delegado para impedirle el paso habían sido cortadas en los dias anteriores.”
Cabe ressaltar que Affuá era o nome que os bolivianos davam ao vapor que lhes foi tomado pelos acreanos e rebatizado como vapor Independência. Mas, curiosamente, também Azcui não se dedicou a descrever o corte da corrente em si, concentrando-se em citar a passagem do vapor pelo porto como um dos lances decisivos do combate.
De onde veio então a épica descrição do corte da corrente de Porto Acre ? É preciso considerar que se trata de uma das histórias mais populares dentre os que gostam e contam a história das revoluções acreanas. Só nos resta então recorrer ao clássico e principal historiador da Revolução Acreana, Leandro Tocantins, que tratou a questão da seguinte maneira: “Os bolivianos, repetindo a tática de Humaitá, na Guerra do Paraguai, colocaram uma grossa corrente, de lado a lado do caudal. Os homens do Batalhão franco-atiradores ficaram incumbidos de serrá-la, quase inteiramente mergulhados, para livrarem-se dos projetis. O primeiro grupo não conseguiu realizar a tarefa, e só uma segunda tentativa, às ordens do italiano Ernesto Aosta, engajado às forças de Plácido, logrou o sucesso desejável: a corrente partiu-se meio a meio, desaparecendo nas abundantes águas do repiquete e sob contínuo fuzilar do inimigo.”
O curioso dessa descrição feita por Tocantins é que não constam outras fontes de onde ele teria encontrado essas informações sobre o corte da corrente, até porque as fontes que ele utilizou para descrever o combate de Porto Acre são aquelas que já citamos acima, que não descrevem o corte em si.



Daí serem necessárias algumas perguntas, tais como: porque aqueles que estiveram presentes ao combate não descreveram o corte da corrente, apesar de afirmarem ambos que ela foi cortada com muita dificuldade? Porque, como afirma Tocantins, a corrente teria sido cortada no meio do rio Acre cheio pelo repiquete se os acreanos dominavam a margem onde estava presa a tal corrente e seria muito mais fácil simplesmente soltar sua extremidade durante a noite? Se o corte da corrente foi tão repleto de lances heróicos por parte de acreanos e bolivianos não deveria ter sido tratado com mais relevo por parte daqueles que testemunharam os acontecimentos? Como Tocantins soube de detalhes não contados pelos protagonistas do episódio? Essas perguntas só poderiam ser respondidas imediatamente com especulações pouco fundamentadas.
Entretanto, não podemos desconhecer que existem diversos livros que trataram a Revolução Acreana de forma ficcional que propositalmente exageraram certos episódios para realçar o caráter épico da conquista do Acre. Além do que, não devemos ignorar tão pouco que, desde o fim da revolução acreana passaram a circular inúmeros relatos orais daqueles que lutaram efetivamente na guerra do Acre, ou por parte de seus descentes que ouviram contar sobre, e que nos legaram versões variadas sobre passagens que nunca foram registradas pela historiografia tradicional (lembrando, ainda, que alguns desse relatos chegaram a ser publicados em jornais acreanos dos anos 10 e 20 do século passado).
De onde surgiu, então, a lenda sobre o heróico corte da corrente no meio do rio Acre por um grupo de voluntários que tinham consciência que se tratava de uma missão suicida é, ainda hoje, um mistério que talvez nunca seja efetivamente confirmado ou negado. Porque assim é a natureza da história: imprecisa, contraditória e, por isso mesmo, fascinante.

* Adaptado de artigo publicado no Jornal “O Acre”, em dezembro de 1997.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Que correntes nos prendem ao passado? (I)

(ou, As muitas correntes de Porto Acre)*

Por estes dias, em razão do que ando contando no programa de rádio “Papo ou História?!”, um amigo me perguntou por que dizem que a corrente de Porto Acre foi serrada dentro do rio Acre durante a Revolução Acreana, se teria sido muito mais prático tê-la serrado na margem do rio. Como também já tive a mesma duvida lembrei que escrevi sobre isso antes...

Há alguns anos a imprensa noticiou a surpreendente descoberta de uma grande e pesada corrente de ferro às margens do Rio Acre, na altura do Novo Andirá, já em território do Amazonas. Essa corrente de mais de setenta metros de comprimento jazia soterrada, desde sabe-se lá quando, nas barrancas do Rio Acre, sendo revelada pela alagação.
De imediato levantou-se a possibilidade de ser a famosa corrente que foi serrada em Porto Acre, durante o combate que selou definitivamente o domínio brasileiro do Acre, nos idos de janeiro de 1903. A essa noticia seguiu-se uma intensa movimentação no sentido de trazer a tal corrente para Porto Acre, independente de ser a original ou não. Até que, depois de várias tentativas e muita burocracia, uma parte dela foi entregue à prefeitura de Porto Acre e passou a integrar o acervo da Sala-Memória. E qual não foi nossa surpresa, na ocasião, ao nos depararmos, ali em Porto Acre, não com uma, mas com duas correntes que nos levaram a refletir sobre os caminhos que a história percorre durante sua construção.
A primeira era aquela corrente de ferro que concretamente jazia enrolada na porta da Sala-Memória, como que desafiando nossa capacidade de decifrar sua autenticidade. A outra, mais sutil, era uma corrente formada de opiniões, sentimentos e recordações que continuam nos chegado do passado, distante ou não, e que muitas vezes não percebemos, como se esta outra corrente também estivesse enterrada no barranco da memória e só após uma grande alagação pudesse ser reconhecida, num desafio à nossa capacidade de romper o cerrado véu do presente.


Quando chegamos a Porto Acre, para a solenidade de recebimento da corrente recém encontrada, era consenso de que não se tratava daquela famosa corrente de 1903. Segundo as informações dos antigos moradores de Porto Acre, especialmente de Seu Vicente, a corrente original tinha ficado muitos anos guardada no salão principal da Mesa de Rendas. Até que, em 1929, o governador Hugo Carneiro mandou desmontarem aquele prédio e trouxe para Rio Branco tudo o que estava lá: o piano, as telhas portuguesas que cobriam o prédio e até hoje cobrem o Palácio Rio Branco e, é claro, a histórica corrente da revolução. Dai por diante o destino da corrente original se perdeu. Dizem que uma parte dela hoje adorna a piscina de abastado senhor residente em Porto Velho, enquanto que outra parte estaria em Manaus. O certo é que não se sabe o paradeiro da corrente histórica.
Quanto à segunda corrente que mencionamos no inicio, importa saber que ela não é de ferro, mas que seus elos são formados pela própria paisagem atual de Porto Acre e pelos sentimentos de seus moradores. Qualquer pessoa que, hoje, chegue à nossa pequena cidade histórica descobre que ela ainda guarda algumas das características que possuía no início do século XX.
Se algo significativo mudou é que, em 1903, Puerto Alonso, Cidade do Acre ou Porto Acre, era uma das principais cidades da Amazônia Ocidental – era o olho do furacão onde se decidiria o destino de nosso estado - e hoje é, apenas, uma pacata cidade do interior onde os dias escorrem lentos como as águas rasas do rio Acre no verão.
Se, por um lado, isso pode causar certa tristeza naqueles que vivem de esperar um desenvolvimento que demora a chegar, por outro, nos traz a esperança de podermos ver ali preservados da sanha destruidora dos espaços urbanos, os recantos que guardam nossa história. Ou seja, Porto Acre, deveria ser hoje uma linda cidade turística que serviria, quando pouco, para nos lembrar e aos nossos filhos de tudo o que já passamos pra chegar até aqui.
Foi essa exata sensação, elo da corrente, que nos passou Seu Artur, o responsável pelo funcionamento da Sala-Memória de Porto Acre. Cuja vida é dedicada a cuidar de cápsulas de balas oxidadas, garrafas coloridas, velhos e carcomidos fragmentos de rifles usados nos combates da Revolução Acreana, sem nenhuma recompensa além da satisfação de preservar o pouco que sobrou daqueles tempos. E foi essa também a lição (outro elo) que nos deu Seu Vicente que, forçando a memória já quase apagada pelos problemas de saúde próprios de sua idade avançada, nos contou que morreram tantos homens no corte da corrente, quanto nas trincheiras do combate principal de Porto Acre. Sem conseguir conter as lágrimas e o nó na garganta que lhe assaltaram assim que começou a lembrar.



Da mesma matéria, ainda, foi forjada a indignação do jovem Veridiano que, durante a solenidade, lembrou a irresponsabilidade de alguns políticos que estiveram à frente da administração municipal que, além de demolirem os antigos prédios, foram capazes de passar o trator no local onde ainda podiam ser vistas as trincheiras onde lutaram e morreram tantos homens.
Ao final, me vi obrigado a reconhecer que ali realmente existe (resiste) uma outra corrente original, com elos mais duradouros do que ferro e que só podem ser vistos por aqueles que olham a cidade invisível que existe sob a Porto Acre atual. Uma cidade imaginária onde ainda estão intactos o Palácio de Galvez, o Chalet do Bom Destino, a Igrejinha de Ferro, o varadouro revolucionário, a corrente que um dia foi atravessada e cortada no rio Acre, as trincheiras e as muitas outras marcas de uma revolução ainda inacabada.
Talvez, ainda chegue um dia em que a corrente de ferro desaparecida e a corrente imaterial da memória estejam novamente reunidas em Porto Acre. Pois, não consigo esquecer que, existem tantos lugares - como Machu Pichu, Ouro Preto e São Miguel das Missões, por exemplo - que encontraram o desenvolvimento econômico e social na preservação de sua originalidade, que se torna impossível evitar a pergunta: Porque, afinal, Porto Acre não pode também?
Enquanto isso não acontece, só nos resta lutar pela preservação dessa outra corrente formada pelas lágrimas de seu Vicente, pela indignação do Veridiano e pela paixão do Seu Artur, por compreender que nem mesmo a passagem dos séculos é capaz de destruir a identidade íntima de um povo.

* Adaptado de artigo publicado no Jornal “O Acre”, em dezembro de 1997.