domingo, 19 de dezembro de 2010

Um certo Chico...*


Semana passada lembramos aqui o aniversário de nascimento de Mestre Irineu. Hoje devemos lembrar que outro homem especial, também nascido no dia 15 de dezembro, nos deixou há 22 anos.

Quando ele nasceu, no dia 15 de dezembro de 1944, o seringal Porto Rico situado nas matas do Xapuri, era mesmo um lugar rico, pois era tempo de Batalha da Borracha. O mundo em guerra precisava do látex acreano e graças a isso os seringais haviam novamente se enchido de gente e de prosperidade.
Aquele menino, nascido dez dias antes do natal, recebeu o nome do seu pai: Francisco Alves Mendes Filho. Mas, como todo menino chamado Francisco, desde cedo virou Chico.
E o menino Chico cresceu no seringal vendo seu pai sair ao amanhecer para entrar na floresta e dela trazer o sustento de sua família. Mais do que o leite de sua mãe, Chico logo percebeu que era o leite colhido das arvores da floresta que alimentava a ele e a todos os seus. Por isso ele era fascinado pelo trabalho de seu pai e sempre que podia o acompanhava pelos varadouros da mata. Chico começou assim a aprender aquele oficio: Caminhar ligeiro pela mata escura usando uma poronga na cabeça pra “alumiar” a estrada estreita e tortuosa, usar uma faca esquisita para rasgar a casca das seringueiras de onde escorria um sangue estranho, branco e viscoso e deixar em cada arvore uma tijelinha de metal pra aparar o látex que escorria generoso.
O menino Chico não conseguia disfarçar o encanto que sentia pela floresta. Toda vez que entrava nela lhe invadia uma sensação de segurança, de conforto, de familiaridade. Assim, nem bem o menino Chico completou dez anos já ia cortar seringa sozinho para ajudar na produção de seu pai. Mas não tinha medo. Sentia que aquela floresta que lhe sustentava nunca lhe faria nenhum mal.
Logo o menino Chico cresceu e quis aprender mais coisas do que lhe podia ensinar seu pai. Descobriu que perto de sua casa morava um homem muito sabido, mas que vivia sozinho e isolado de todos. Seu nome era Euclides Távora e ele era um exilado político que havia fugido para o meio da floresta no tempo da Intentona Comunista.E esse homem tão sabido e sofrido aceitou lhe ensinar a ler e escrever. Mas, na verdade, ensinou muito mais que isso. Juntos ouviam a BBC de Londres e a Rádio Central de Moscou. Conversavam sobre a ganância capitalista, sobre as utopias socialistas e sobre a exploração dos seringueiros pelos patrões. Por isso quando estourou o golpe militar de 64, Chico, agora um rapaz feito, entendeu direitinho o que estava acontecendo no Brasil. E entendeu que seu povo ainda havia de sofrer muito.

Chico começou então a ajudar seu povo. Fazia reuniões, explicava a realidade das coisas e tentava organizar os homens e mulheres da floresta para acabar com a exploração dos patrões. Foi ameaçado e perseguido por causa disso. Pela primeira vez Chico soube o que era sentir medo, o que era ter que se esconder dos jagunços, o que era ter que andar sempre acompanhado de outros companheiros para se proteger. Mas nada, nem ninguém, seria capaz de fazê-lo desistir daquela luta que estava só começando.
Logo outros seringueiros perceberam que sem organização e união não iam conseguir nada. Decidiram então criar em Brasiléia o primeiro Sindicato de Trabalhadores Rurais do Acre e Chico se tornou seu primeiro Secretario Geral. Mas os tempos estavam ficando mais e mais difíceis. A terra estava sendo invadida por fazendeiros que vinham do sul do país para “derribar” a floresta e substitui-la pelo gado. Os novos donos da terra não queriam saber de reconhecer os direitos dos seringueiros. Famílias inteiras foram expulsas das colocações onde moravam há décadas.
Trocar a floresta pelo boi eis a nova idéia de desenvolvimento que iludia a muitos. Mas sem floresta aqueles homens e mulheres não sabiam viver. Os que não queriam lutar por seus direitos e partiam para as cidades só encontravam miséria e descaso. Era preciso defender a floresta como quem defende a própria vida, então. E pela primeira vez, os seringueiros organizados conseguiram empatar a derrubada da mata e impedir que outro seringal virasse pasto.
Logo, a idéia se espalhou. Outros sindicatos surgiram, a igreja se juntou à luta dos seringueiros em defesa da floresta e nas cidades muitos jovens começaram a perceber que alguma coisa diferente estava acontecendo nas matas acreanas. Chico foi eleito vereador e como resultado do seu trabalho foi preso e torturado, em segredo, sem que ninguém pudesse ajuda-lo.
A luta dos trabalhadores crescia e com ela crescia também a violência dos novos donos da terra. Wilson Pinheiro, o corajoso Presidente do STR de Brasiléia foi assassinado covardemente. Ivair Higino e muitos outros seringueiros também tombaram sob a sanha dos jagunços e pistoleiros. Mas nada, nem ninguém, seria capaz de fazer Chico desistir da defesa de seu povo.
As populações indígenas do Acre, que conheciam como ninguém a opressão, se juntaram aos seringueiros fortalecendo a resistência. Chico ajudou então a fundar no Acre o Partido dos Trabalhadores e a CUT. Além de liderar a organização do 1º Encontro Nacional dos Seringueiros onde propôs a formação da Aliança dos Povos da Floresta para impedir a extinção de seus modos de vida tradicionais.
E tanto fizeram que, finalmente, o mundo “civilizado”, começou a prestar atenção àquela luta de homens simples em defesa da floresta. E Chico se tornou o porta-voz de seu povo. Foi ao estrangeiro, falou aos ambientalistas, capitalistas e banqueiros e recebeu diversos prêmios, entre eles o “Global 500” da ONU.
Começavam a se tornar possíveis os sonhos de Chico e de seus companheiros. Em lugar de fazendas ou seringais, reservas extrativistas. Em lugar de um desenvolvimento que transformava a floresta em terra arrasada, desenvolvimento sustentável. Ao mesmo tempo, porém, cresciam as ameaças de morte contra Chico. Mas nada, nem ninguém, seria capaz de fazê-lo desistir...
É que o Chico, agora homem do mundo, não esquecia do menino Chico que sentia tanta segurança e tranqüilidade quando percorria os varadouros da floresta sozinho ou com seu pai. E com essa certeza no coração Chico prosseguiu...
Mas seus inimigos eram muitos ... e poderosos ...
E assim... Ao entardecer do dia 22 de dezembro de 1988, dois dias antes do natal, Chico foi baleado e morto na porta dos fundos de sua casa ... e os povos da floresta choraram ...
Mataram Chico, o homem, mas não conseguiram matar seu espírito e sua luta...
Os inimigos de Chico foram derrotados por sua morte. As idéias que Chico defendeu impregnaram os corações dos homens de bem desse mundo e sua voz se fez ainda mais forte. Hoje são muitos Chicos. Seu espírito nos guia e haverá de nos proteger quando nos varadouros mais escuros sentirmos medo. É que o espírito de Chico ali estará nos lembrando que a floresta é nossa casa, nossa vida, nossa mãe e assim será para sempre...

* Texto originalmente escrito para as homenagens dos 15 anos da morte de Chico Mendes.

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