terça-feira, 7 de setembro de 2010

Ruínas*

(Mutações IV)

Esta semana os jornais acreanos noticiaram que finalmente entrou em operação a Alcobrás. Por isso me lembrei de um texto que escrevi há alguns anos atrás que tratava, não só daquela fantasmagórica usina abandonada no meio do mato, como também de seu antecessores os Seringais Itu e Palmares.







A Amazônia, em sua infinita imensidão, sempre foi o lugar dos sonhos dos homens. Indomada, inóspita, misteriosa, lugar dos reinos encantados do El Dorado, do Paititi e das mulheres guerreiras. Por isso os homens que para cá vieram em todos os tempos traziam na bagagem a gana dos aventureiros que teimavam em tornar reais seus sonhos e com isso ganhar fama e riqueza.
Foi assim que me senti ao entrar no impressionante conjunto de ruínas e abandono em que se transformou o Seringal Palmares, mais tarde conhecido como ALCOBRÁS. Poucos metros após passar por uma carcomida e insuspeita porteira vi surgir à minha frente enormes galpões de concreto e metal completamente abandonados, ainda que em surpreendente bom estado; várias carcaças de ônibus e automóveis que pouco ou nunca foram usados; cinco prédios de dois pavimentos que iriam ser usados como vila de operários; toneladas de adubo, calcário e outros produtos químicos se esvaindo aos poucos a cada chuva que lava caudalosamente o chão contaminando as nascentes do Iquiri que, segundo se diz, nasce por ali; tudo fruto da louca idéia de implantar uma usina de álcool em plena floresta amazônica.
Mas, o mais surpreendente de tudo foi perceber a sobrevivência de diversos prédios de madeira (sede, escola, igreja, barracão de mercadorias, queijaria, etc.) que compunham o núcleo de um dos maiores e mais importantes seringais do Vale do Acre, o mais rico dentre todos os vales acreanos no início do século XX.
Era uma visão extraordinária. Encontrar ali, no meio daqueles milhares de pés de cana que teimavam em nascer misturados ao capim e à capoeira, a sede do antigo Seringal Palmares de pé, ainda que de forma precária. Logo a curiosidade substituía a surpresa e tive que vencer, com muito esforço, a altura que me separava do piso de madeira de um legitimo barracão de seringalista, os famosos coronéis de barranco, graças a uma escada que não mais existia.
Inesperadamente ali dentro encontramos poucos, mas consistentes, vestígios de um passado de fausto e glória. Uma grande geladeira “Eletrolux” com pés altos, que a deixavam a mais de dois palmos de altura do chão (mais fácil de limpar do que nossos modelos modernosos, diga-se de passagem), mais parecendo um cofre forte de tão maciça. Fiquei imaginando que deveria ter custado uma fortuna e muito suor para chegar ao interior do interior do Acre.
Logo meu olhar foi atraído para as paredes inclinadas e carcomidas da outrora espaçosa casa cujo estado de ruína não conseguia ocultar a ótima qualidade da madeira com que havia sido construída. O forro saia-camisa tinha sido retirado da maior parte da grande casa, mas ainda resistia em alguns dos quartos, e revelava o capricho dos mestres carpinteiros ao construir a moradia de um dos mais poderosos seringalistas que por aqui se estabeleceram. O banheiro interno da casa, luxo que poucos possuíam no Acre de então, revelava surpreendentes obras de alvenaria e uma carcomida rede de grossos canos de ferro, como que nos alertando que o dono daquela casa não havia poupado esforços e nem despesas para de ter conforto em meio à imensidão da floresta amazônica.
É verdade, a história conta que o velho Honório Alves das Neves construiu, ao longo de anos de árduo trabalho, uma propriedade imensa, quase um país. Os seringais Palmares e Itú somados ocupavam uma enorme área, como a maioria dos outros gigantescos seringais de uma época em que a demarcação era feita em estradas de seringa, ao invés de hectares.
O Itú, à margem do rio Acre, era a porta de entrada do reino do Coronel Honório. Por ali chegavam as mercadorias trazidas pelos vapores que vinham do Amazonas fazendo a linha do rio Acre. Essas mercadorias eram depois distribuídas para dezenas de colocações de seringueiros pelos comboios de burros que cortavam a floresta por estreitos varadouros.
Quanto ao Palmares a história era diferente. Tratava-se de um seringal de centro que ocupava uma vasta área de terra firme e que, além de rico em seringueiras e castanheiras, possuía grandes campos naturais que possibilitavam o estabelecimento da pecuária. Um ramo de atividade econômica complementar à exportação da borracha que teve grande importância no vale do rio Acre, e que permanece praticamente ignorado por quantos escreveram as histórias mais antigas do Aquiry.
Isso se dava em razão de que, desde que foram implantados, os seringais acreanos sempre necessitaram de um abastecimento regular de carne fresca. A alimentação baseada somente em produtos enlatados que vinham da Europa industrial para alimentar as correntes de dependência econômica da borracha e as bocas de milhares de homens que viviam internados naquelas matas brutas, provocava a debilidade orgânica dos seringueiros e a consequente diminuição de sua produtividade. Por isso era necessário fornecer-lhes carne fresca, seja através da caça, seja através do gado de corte, que só podia ser obtido naquela época nos campos bolivianos. Já que caçar desviava a atividade dos seringueiros do corte da seringa foi articulada, desde as ultimas décadas do século passado, a importação de gado boliviano. Essa rede comercial conseguiu manter-se ativa até mesmo durante o período revolucionário que marcou a passagem do século e continuou em funcionamento pelas décadas subsequentes.
Porém, o estabelecimento do comercio de gado entre os criadores bolivianos e os seringalistas brasileiros criou necessidades específicas que precisavam ser atendidas. Depois da longa caminhada das manadas trazidas dos campos do Beni, ao norte da Bolívia, atravessando centenas de quilômetros de mata bruta - rasgada somente por estreitos varadouros entrecortados por inúmeros igarapés e rios - os bois que conseguiam suportar a longa travessia chegavam ao Acre magros e enfraquecidos, sendo necessário, portanto, engorda-los para o consumo. Era ai que entravam em ação os campos naturais do Gavião, da Cobra, os Campos do Capatará, os Campos Esperança, as Missões e os Campos do Palmares. Nestas áreas o gado magro ficava invernado para engordar o suficiente até seu abate e a subsequente realização dos lucros dos envolvidos nessa atividade.
Graças a isso o Palmares foi um seringal especial. Além de fornecer as tradicionais pelas de borracha e latas de castanha, produzia também, carne, leite, couro, queijo, e todos os produtos extraídos da atividade pecuária.
O velho Honório Alves construiu assim uma enorme fortuna que deixaria aos seus herdeiros, especialmente ao Dr. Carlos, que dela usufruiu ao longo de toda a vida, até morrer na mais absoluta miséria, ou, segundo nos disse um velho seringueiro nascido e criado nas terras do Palmares, “na pedra fria”.
Quanto à ALCOBRAS - aquelas enormes carcaças metálicas ainda visíveis por quantos percorrem a BR-317 no rumo de Xapuri e que um dia pretendeu produzir álcool, para na verdade somente produzir rombos nas contas bancárias e nos cofres públicos – seria, na verdade, assunto suficiente para outro artigo dessa coluna.
Basta-nos agora ver aquelas ruínas estranhas que reúnem em sua tristeza: casas da melhor madeira de lei - de uma floresta que testemunhou uma época de riqueza e conforto graças ao leite generoso de suas arvores - e prédios de alvenaria, ferro e amianto que não resistiram à realidade avassaladora da floresta e apodrecem com sua modernidade e tecnologia ao sabor das abundantes chuvas do inverno amazônico. Assim passamos a compreender que essa Amazônia maravilhosa não foi construída somente por sonhos românticos e felizes, mas em grande parte, por sonhos em ruínas.

* Artigo adaptado de texto publicado na revista Outras Palavras, Coluna Histórias das Margens, em setembro de 2000.

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