terça-feira, 29 de março de 2011

História política recente da Ayahuasca (V)

As instituições responsáveis pela construção da uma proposta de inventário (FGB, FEM, IPHAN, MinC) estão trabalhando através da identificação de três grandes “campos ayahuasqueiros” e da convicção de que o inventário deve ser orientado e realizado pelas próprias comunidades... 1 - O “Campo Originário” da Ayahuasca é o mais antigo de todos. Algumas informações indiretas da arqueologia tentam situar sua origem por volta de 2.000 antes do presente. Mas esses estudos ainda são superficiais e inconclusivos. O fato é que suas práticas se encontram em plena vigência, entre dezenas de grupos indígenas da Amazônia. (até aqui, trecho do artigo passado) Na verdade, existe um grande “arco panamazônico” de ocorrência do uso da Ayahuasca, que começa ao sul, na Bolívia, segue a leste, por Rondônia, Acre, Amazonas e Roraima, e a oeste, pelo Peru, Equador, Colômbia e Venezuela. No Panamá, por conseguinte, fecha-se a extremidade norte do “arco ayahuasqueiro”. Esta é, exatamente, a região dos formadores da bacia Amazônica, ponto de contato entre os Andes e as terras baixas do grande “Rio de Las Amazonas”. Região de uma floresta muito variada, a mais rica em biodiversidade dentre todas as outras configurações bióticas de floresta, área de povos tribais de diferentes troncos lingüísticos que estabeleceram uma extensa rede comercial e cultural que conectava, desde os povos do Altiplano Andino, até os grupos indígenas das florestas da “Montaña” e das “Terras Baixas”. Em síntese, pode-se dizer que o “Campo Originário” é milenar e mega-diverso: multilinguístico, plurinacional, panamazônico, com origem e rota de difusão ainda desconhecidas, mas, indubitavelmente responsável pela criação e transmissão deste sofisticado conhecimento para a sociedade contemporânea e pós-moderna em que vivemos. Por outro lado, as diferentes experiências indígenas terão que ser avaliadas, não só em suas características originais, mas também em relação aos impactos e mudanças que essas práticas culturais vêm sofrendo atualmente. É inevitável, portanto, o reconhecimento das marcas dos últimos cinco séculos de pressão e opressão contra os milenares conhecimentos mágico-espirituais ameríndios. 2 - O “Campo Tradicional” (ou tradicionalista) da Ayahuasca surgiu na Amazônia Ocidental - tríplice fronteira entre o Brasil, a Bolívia e o Peru – a partir do início do século XX. Seus “mestres fundadores” operaram, não sem problemas e grandes dificuldades, é bom que se diga, a transposição das práticas ayahuasqueiras dos grupos indígenas originários para o mundo dos “cariús”, os “não-índios”, neste caso, brasileiros da Amazônia Ocidental. Entre 1912 e 1920, Raimundo Irineu Serra e os irmãos Antonio e André Costa, todos negros maranhenses, aprenderam a usar a ayahuasca e agregaram, a ela, um profuso conjunto de símbolos e ritos cristãos e afro-brasileiros. Começava, assim, a tradução do uso individual e esporádico de caboclos amazônicos para uma utilização coletiva, com caráter religioso e curativo, em uma sociedade que vivia sem a presença do governo, da igreja ou da medicina formal. Enquanto os irmãos Costa seguiram uma experiência religiosa isolada - que terminou por volta dos anos 40, na cidade de Brasiléia, alto rio Acre - Irineu Serra, a partir de 1935, e também outro negro maranhense chamado Daniel Mattos, algum tempo mais tarde, deram início ao estabelecimento de um trabalho religioso - como rezadores, curadores e orientadores espirituais - na periferia rural de Rio Branco, capital acreana. Com o tempo, formaram-se, em torno destes dois mestres fundadores, comunidades de trabalhadores que passaram a professar uma religião cabocla, marcadamente cristã, mas também difusamente indígena, negra e espírita: o Alto Santo de Mestre Irineu e a Barquinha de Mestre Daniel. Começava, assim, uma longa história de resistência contra varias formas de opressão socioeconômica e preconceito, em que se alternaram episódios de intolerância e momentos de reconhecimento e legitimação por parte das autoridades constituídas. Uma trajetória cultural intensamente vivida no Acre, não só pelos “daimistas” como por toda a sociedade local, nas últimas nove décadas (e se alguém achar isso muito pouco, é importante lembrar que o próprio Acre tem apenas cento e seis anos de existência). Paralelo a isso, em Rondônia, ao final dos anos cinquenta e início dos sessenta, Gabriel Costa, baiano de origem, soldado da borracha por imposição, viveu um processo muito semelhante ao dos dois mestres já citados, entretanto, com matrizes simbólicas e rituais bem distintas, apesar dos possíveis contatos que aconteceram entre Gabriel e Irineu. Surgia, assim, a União do Vegetal, terceiro tronco ayahuasqueiro deste conjunto de manifestações caboclas, brasileiras, amazônicas. Nesta abordagem, consideramos que o período formativo das práticas rituais desse campo ayahuasqueiro (iniciado em 1912), encerrou-se em 1971, ano em que morreram os Mestres Irineu e Gabriel (Daniel já havia morrido em 1958) e que, por uma estranha coincidência, foi também o ano em que Acre, Rondônia e a própria Amazônia brasileira haveriam de mudar radical e definitivamente graças aos processos sócio-econômicos desencadeados pela Ditadura Militar. Desde então, consolidou-se o “campo tradicional” da ayahuasca, constituída por todas as comunidades tradicionalistas, estritas seguidoras das doutrinas do Daime ou Vegetal, como estabelecidas por seus três “mestres fundadores”: Irineu, Daniel e Gabriel. Um campo que vem crescendo, de forma consistente, nos últimos anos, mas sem fazer dessa expansão um objetivo em si. (semana que vem o ultimo artigo da série). Obs: Esta série de artigos integra um texto que será publicado no livro do Seminário das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca, realizado em 2010.

domingo, 20 de março de 2011

De novo, velhas histórias!

(ou: O eterno retorno e a volta dos que não foram.)

Extra! Extra! O plantão extraordinário do Miolo de Pote, abalado pelas ultimas noticias que circularam na imprensa local e nacional, interrompe a série sobre a ayahuasca para repercutir o que não pode, não deve, ser ignorado...

Esta semana se tornou estranhamente significativa por conta de uma série de recorrências históricas. Mais estranhas ainda porque são acontecimentos aparentemente desconectados entre si. Porém, se olharmos com mais atenção, talvez seja possível encontrar fios históricos insuspeitos, que certamente encerram interessantes significados. Vejamos pois.



Leio com espanto a recente notícia de conflitos, rebelião e quebra-quebra generalizados no canteiro de obras da Usina do Madeira. Não consegui evitar então a imediata regressão a um tempo em que se tentou construir uma ferrovia naquela mesma região com resultados, de certa forma, bastante semelhantes. Voltemos, portanto, ainda que brevemente, há um século.
Graças a um certo Tratado de Petrópolis, assinado em 1903, se empreendeu a construção, entre 1907 e 1912, de uma ferrovia que viabilizasse o comércio da borracha, ultrapassando os obstáculos impostos pelas cachoeiras do rio Madeira. Uma obra notoriamente difícil de ser realizada. Tanto que, na década de 70 do século XIX, tentativas anteriores já haviam fracassado de forma retumbante. Tratava-se de uma construção tão perigosa que ganhou o singelo apelido de “Ferrovia do Diabo” e deu origem à lenda de que havia cobrado a vida de um trabalhador para cada dormente ali fincado.
Quantas e quantas notícias passaram então a circular nos jornais brasileiros sobre as inúmeras revoltas que aconteceram durante a construção da Madeira-Mamoré? Revoltas que começavam ainda nos navios que traziam homens de várias partes do mundo para trabalhar na obra (chineses, alemães, ingleses, barbadianos, etc.), muitos dos quais se recusaram a desembarcar, devido à assustadora fama da ferrovia. Além, é claro, das diversas revoltas que eclodiram em seus canteiros de obras, motivadas pelas péssimas condições de trabalho, pela falta de suporte adequado para os trabalhadores, pelas febres e doenças variadas que dizimavam dezenas de vidas a cada dia. Mas esses fatos tem exatos cem anos e fazem parte de um longínquo passado de um Brasil que já não é mais o mesmo.



Mas não é que, hoje (quinta-feira), leio a notícia de que os alegados motivos para o quebra-quebra promovido por trabalhadores no canteiro de obras de Jirau é que “Os trabalhadores se queixam das condições de trabalho oferecidas na obra e exigem aumento salarial. Acusam ainda o consórcio ESBR (Energia Sustentável do Brasil) --formado pelas empresas Chesf, Eletrosul, Suez e Camargo Corrêa--, responsável pela obra, de não oferecer infraestrutura adequada para tratar um surto de malária que atinge o canteiro de obras.” (UOL-notícias). Oxê, coisa estranha, sô.
E diante de tanta coincidência só nos resta esperar que a Hidrelétrica do Madeira, prevista para ficar pronta em 2012, não tenha um destino semelhante ao da Ferrovia Madeira-Mamoré que foi inaugurada em 1912. Aquele ano que foi exatamente o ultimo do 1º Ciclo da Borracha Amazônica – ciclo econômico colapsado, a partir de 1913, por conta das plantações inglesas de seringueiras na Malásia - fazendo com que a tão sonhada ferrovia entrasse em um longo e sofrido processo de decadência que se arrastou até seu melancólico fechamento, em 1972. Não, isso não é possível, afinal, como dizia o velho Marx, a história não se repete jamais.


Por outro lado, leio aqui e acolá no vasto universo da internet, preocupantes notícias de que o governo peruano estaria trazendo indígenas da região da montaña (região da floresta sub-andina), para as florestas da fronteira peruana com o Acre, colocando em risco os povos isolados que ainda perambulam por ali. E, imediatamente, minha memória saltou para a segunda metade do século XIX, ao lembrar das inúmeras histórias de caucheiros peruanos trazendo índios das beiras do altiplano pra dizimar os índios “brabos” que habitavam por aqui, com o início do 1º Ciclo da Borracha. E sou obrigado a reconhecer que os “altos interesses” da Republica do Peru (traduzidos sob a forma de madeiras nobres, petróleo e hidrelétricas), bem seriam capazes de fazer com que se reeditassem práticas de um século e meio atrás. Um período dramático da história amazônica, quando povos inteiros foram dizimados e desapareceram para sempre. Seria mesmo possível tal absurda repetição de tão tristes histórias em plena civilização planetária do século XXI? Não, o velho Marx, senhor da consciência da sociedade capitalista, não poderia estar errado. A história não se repete.



Mas... Para que também não me acusem de estar sendo excessivamente mal-humorado, ou pessimista, não posso deixar de contar que não consegui conter um sorriso (quase riso) quando li, no início da semana, a notícia do protesto de uma deputada estadual sobre a farra carnavalesca dos marinheiros do navio-hospital em Cruzeiro do Sul.
Entretanto, antes que me julguem erradamente, tenho que esclarecer que meu sorriso (quase riso) não foi devido à atuação da deputada, cuja preocupação com o atendimento (mal) feito às pressas da população em função da extremada vontade de brincar o carnaval juruaense dos marinheiros, é legitima e compreensível.
É que não consegui evitar a imediata lembrança que essa matéria despertou. Falo do fato de que foi exatamente Cruzeiro do Sul o principal palco de uma das mais animadas e originais manifestações carnavalescas de toda a história do Acre: a “Marujada”. Uma brincadeira, difundida pelos Senhores Bianêz, Aldenor, entre vários outros, ao longo de muitas décadas, na qual, além de cantarem um vasto repertório de marchinhas carnavalescas, os brincantes representavam um motim ocorrido no navio que, depois de dominado pelo comandante, terminava em uma enorme festa dos marinheiros felizes por chegar ao porto, à terra firme, ao final de sua longa viagem pelos rios amazônicos.
Neste caso, parece que essa recente notícia dos marinheiros de Cruzeiro do Sul é a prova definitiva de que a história pode se repetir sim, senão como farsa, mas, pelo menos, como festa. Afinal, brincar é preciso, como navegar, viver é que não é preciso.
Ao contrário das histórias dos trabalhadores do Madeira e dos índios das fronteiras. Estas, sim, nos obrigam a admitir, ainda que com tristeza e pesar, que Marx tinha mesmo razão. A história realmente não se repete jamais, apenas continua sendo a mesma velha e injustificável história de uma humanidade, por tantas vezes, incompreensível.

Obs: Eu sei que deveria ter dado continuidade à serie de artigos sobre a história da ayahuasca, em respeito àqueles que a estão seguindo. Porém, não consegui resistir ao inesperado e avassalador assalto de tantas novas(?) noticias. Assim, peço desculpas aos improváveis leitores desta coluna... garantindo voltar, na próxima semana, àquela história que ainda me faz acreditar que haja algum sentido para a humanidade.

segunda-feira, 14 de março de 2011

História política recente da Ayahuasca (IV)


Marca cultural da Amazônia, impressa no tecido do mundo. Conhecimento antigo, engendrado durante milhares de anos... Presente da floresta à humanidade...

Eis o breviário, o plenário, o calendário, o seminário...
(artigos passados).


Psicotria viridis, foto de Thiago Silva (Blog daflorestadejuramidam.blogspot)





Eis o inventário...
Enquanto aqui no Acre nós seguíamos discutindo os rumos da vida. O IPHAN - a quem coube dar andamento ao pedido feito pelas comunidades tradicionais ao Ministro da Cultura - submeteu todo o farto material bibliográfico que enviamos à sua Câmara Temática do Patrimônio Imaterial. Nosso pedido teria que receber um parecer técnico antes de ser submetido ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, a quem cabe a deliberação pelo registro ou não do “Uso ritual da Ayahuasca” como patrimônio imaterial da cultura brasileira.
E como era de se supor, já que isso faz parte do “modus operandi” do IPHAN, foi solicitada a realização de um inventário das manifestações culturais ayahuasqueiras para que o processo possa ser corretamente apreciado pelo Conselho. Afinal não se trata apenas de registrar e pronto. É preciso saber o que registrar. A música que permeia todas as diferentes tradições? O feitio do chá, os fardamentos, a rica iconografia e seu inerente simbolismo?
Necessário responder, enfim, quais expressões culturais caracterizam as comunidades ayahuasqueiras. Quais são seus elementos comuns e suas diferenças. Mas, também, em que livro estes bens culturais devem ser registrados? No livro dos lugares, no dos saberes, no das celebrações ou no livro das formas de expressão, como consta da legislação vigente. E uma vez respondido isso tudo, ainda há que se responder quais as salvaguardas necessárias para garantir a proteção, manutenção e a promoção deste patrimônio cultural e que deverão passar a ser obrigações do estado brasileiro. Caso a solicitação seja aprovada, é claro.
Diante dessa infinidade de questões e definições necessárias para o registro da Ayahuasca se torna evidente que a realização do Inventário sobre o uso cultural, ou ritual, da Ayahuasca só é possível a partir de uma ampla e efetiva participação das comunidades ayahuasqueiras, que são as principais interessadas e afetadas por essa ação.



Banisteriopsis caapi, foto de Thiago Silva (Blog daflorestadejuramidam.blogspot)





E, por sua vez, sob a orientação desta participação política, todas as instituições públicas envolvidas no processo terão que desenvolver um claro e inequívoco reconhecimento da enorme diversidade das manifestações culturais relacionadas às praticas e rituais ayahuasqueiros. Compreensão essencial para uma correta e equilibrada identificação das referencias e bens culturais que são relevantes e que terão que ser considerados no registro da Ayahuasca como patrimônio brasileiro.
Portanto, o ponto de partida, que acreditamos também poderá ser o da chegada (tal qual estrada de seringa), passa pela diferenciação dos três grandes campos ayahuasqueiros, através dos quais o inventário deverá ser realizado.

Eis o cenário...
Ainda não se sabe ao certo onde e quando surgiu o conhecimento cultural da Ayahuasca. No mesmo sentido, hoje, não sabemos quantos ayahuasqueiros existem no Brasil. Como discutir sobre algo que nem conhecemos e nem entendemos? Para tentar organizar essa aparente confusão, as instituições responsáveis pela construção da uma pré-proposta de inventário estão trabalhando através da identificação preliminar de três grandes grupos, ou “campos ayahuasqueiros” e da convicção de que o inventário deve ser, em grande medida, orientado e realizado pelas próprias comunidades.



Com isso, estamos buscando compreender a atual realidade, tanto no que diz respeito às praticas rituais diversas, que podem ser milenares, seculares ou muito recentes, como apontar manifestações culturais não religiosas, que têm grande importância e influência, também, sobre a história de muitas comunidades, segmentos sociais e cidadãos brasileiros. Ressaltando que esta é apenas uma proposição de possível recorte de caráter cultural e histórico, ainda impreciso e sujeito à análise e alteração pelas comunidades usuárias da ayahuasca.
1 - O “Campo Originário” da Ayahuasca é o mais antigo de todos. Algumas informações indiretas da arqueologia tentam situar sua origem por volta de 2.000 antes do presente. Mas esses estudos ainda são superficiais e inconclusivos. O fato é que suas práticas se encontram em plena vigência, entre as dezenas de atuais grupos indígenas da Amazônia...

terça-feira, 1 de março de 2011

História política recente da Ayahuasca (III)

Um movimento em direção ao estado brasileiro que se iniciou lá atrás, em 1991, com a elaboração da primeira Carta de Princípios das comunidades ayahuasqueiras. Um momento apenas, mas longo e profundo como a própria noite dos tempos. Uma ocasião pra não esquecer.





Abertura do Seminário das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca realizado no Horto Florestal. (Fonte: Blog do Altino)






Eis o Breviário...
Foram muitas reuniões, mas não conseguimos construir um consenso válido e satisfatório. Estávamos em 2007.

Eis o plenário...
Nesse meio tempo, teve início o fértil processo de construção do Sistema Municipal de Cultura de Rio Branco.

Eis o calendário...
Inesperadamente, a oportunidade. Íamos já pelo meio de 2008. O aviso de que o Ministro da Cultura Gilberto Gil iria visitar mais uma vez o Acre, provocou nova reunião. E a luz se fez... (até aqui trechos dos artigos anteriores).

Eis o seminário...
Mas, como já disse Caetano, “a vida não se resume a festivais”. E, aqui no Acre, as questões do Daime estão relacionadas diretamente a muitas e distintas dimensões da vida social, exigindo dos poderes públicos respostas adequadas e eficazes. Vida real, cotidiano, ruas, casas, praças, escolas, hospitais, repartições, enfim...
Logo as discussões da Câmara Temática explodiram (no bom sentido) para muito além da cultura (em seu sentido tradicional). E começamos a articular a ligação das diversas iniciativas paralelas, que estão em pleno curso, num só movimento.
Ao grupo que vem discutindo nos últimos três anos com o IMAC a questão da regulação ambiental para extração e transporte de cipó e folha, se reuniram profissionais da saúde que seguem lutando para por fim à discriminação de doadores de sangue; além do pessoal da educação preocupado com o fato de nossas escolas continuarem privilegiando manifestações religiosas das maiorias dominantes e tratando com desrespeito e desconhecimento a fé das minorias étnicas ou religiosas do nosso estado. E assim por diante.





Assim surgiu na Câmara Temática a proposta de realizar o “Seminário das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca: Construindo Políticas Públicas para o Acre” onde pudéssemos discutir todos os problemas e questões pendentes das comunidades em relação ao Estado e suas políticas públicas. Além, é claro, de avançar com as discussões de viés cultural e político. Um seminário proposto e realizado pelas comunidades ayahuasqueiras de Rio Branco, mas aberto para os povos indígenas, bem como para todos que ali quisessem estar.
E o resultado foi extraordinário. Na sua abertura, mais importante que a presença de diversas autoridades públicas dos poderes executivo, legislativo e judiciário, foi um inédito encontro ecumênico (com participação de representantes católicos, evangélicos e mães-de-santo) organizado a partir do consistente trabalho que vem sendo realizado pelo Instituto Ecumênico Fé e Política.
Nas sessões temáticas através das quais foi organizado o Seminário, foram debatidos os principais problemas da vida cotidiana na Amazônia brasileira e apresentadas propostas para possíveis soluções. Tudo com a presença e a participação de secretários estaduais e municipais relacionados a cada área temática. Formando assim um consistente mapa para orientar o caminho que continua sendo trilhado pela Câmara de Culturas Ayahuasqueiras do Conselho de Cultura de Rio Branco.
Com isso, esta Câmara se tornou a primeira a propor e realizar um seminário onde foram ampliadas e amplificadas as discussões travadas no cotidiano do Conselho de Cultura. Desde então, outras Câmaras mais ativas (arte-educação, musica, literatura, indígenas, etc.), estão seguindo o exemplo e vêm preparando ou realizando uma série de seminários que esperamos ser um passo decisivo na construção do nosso Plano de Cultura, próximo e desafiador objetivo.




Sessão da Assembléia Legislativa que concedeu o titulo de cidadão acreano aos Mestres Irineu, Daniel e Gabriel, ao final do Seminário da Ayahuasca. (Fonte: Agencia de Noticias do Acre)




Por outro lado, o Seminário das Culturas Ayahuasqueiras Tradicionais foi o primeiro grande desafio de discussão pública, sem intermediação direta do estado, auto-regulada e conduzida pelas próprias comunidades, aberta aos diversos centros religiosos da ayahuasca com todas as suas diferenças e divergências. Mas, talvez não por acaso, desde então, centros irmãos, que já haviam perdido muito tempo se desentendendo, por vezes de forma justificada, outras tantas não, agora estão falando e agindo como parte de um mesmo sentido. E isso faz uma grande diferença porque prova que o consenso (ou a pactuação política) até aqui alcançado, não só é real, como está proporcionando novas ações conjuntas, algumas inesperadas e surpreendentes, como a recente reforma coletiva (ou em “adjunto”, como se diz por aqui) do Tumulo de Mestre Irineu, no Alto Santo.