domingo, 7 de novembro de 2010

“Chove lá fora e aqui...”

Tem dias em que nossa alma está tal qual o mundo lá fora. O Toinho Alves tem razão quando diz que os dias e noites de junho-julho são os mais belos do ano. Mas tenho que confessar: amo esses dias de início do inverno. Quando a chuva volta a encharcar a terra sedenta e ressecada. Nesses dias a melancolia do céu reflete, à perfeição, a melancolia que sempre morou em meu coração e, aqui e acolá, volta a transbordar.Em dias assim, só os amigos podem nos salvar. Por isso, hoje, pedi socorro à Galeano, intérprete de tantas vozes silenciosas em nossas veias abertas...

Mundo
Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus.
Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.
- O Mundo é isso – revelou. – Um montão de gente, um mar de fogueirinhas.
Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo.


Celebração da voz humana/1
Os índios Shuar, chamados de Jíbaros, cortam a cabeça do vencido. Cortam e reduzem, até que caiba, encolhida, na mão do vencedor, para que o vencido não ressuscite. Mas o vencido não está totalmente vencido até que fechem sua boca. Por isso os índios costuram seus lábios com uma fibra que não apodrece jamais.

Crônica da cidade do Rio de Janeiro.
No alto da noite do Rio de Janeiro, luminoso, generoso, o Cristo Redentor estende os braços. Debaixo desses braços os netos dos escravos encontram amparo.
Uma mulher descalça olha o Cristo, lá de baixo, e apontando seu fulgor, diz, muito tristemente.
- Daqui a pouco, já não estará mais aí. Ouvi dizer que vão tirar Ele daí.
- Não se preocupe – tranqüiliza uma vizinha. – Não se preocupe: ele volta.
A polícia mata muitos, e mais ainda mata a economia. Na cidade violenta soam tiros e também tambores: os atabaques, ansiosos de consolo e de vingança, chamam os deuses africanos. Cristo sozinho não basta.
Dizem as paredes/2
Em Buenos Aires, na ponte da Boca:
Todos prometem e ninguém cumpre. Vote em ninguém.
Em Caracas, em tempos de crise, na entrada de um dos bairros mais pobres:
Bem vinda, classe média.
Em Bogotá, pertinho da Universidade nacional:
Deus vive.
Embaixo, com outra letra:
Só por milagre.
E também em Bogotá:
Proletários de todos os países, uni-vos!
Embaixo, com outra letra:
(Último aviso)
A noite/3
Eu adormeço às margens e uma mulher: eu adormeço às margens de um abismo.



Celebração das contradições/2
Desamarrar as vozes, dessonhar os sonhos: escrevo querendo revelar o real maravilhoso, e descubro o real maravilhoso no exato centro do real horroroso da América.
Nestas terras, a cabeça do Deus Elegguá leva a morte na nuca e a vida na cara. Cada promessa é uma ameaça; cada perda, um encontro. Dos medos nascem as coragens; e das dúvidas, as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possível, e os delírios, outra razão.
Somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia.
Nessa fé, fugitiva, eu creio. Para mim, é a única fé digna de confiança, porque é parecida com o bicho humano, fodido mas sagrado, e à louco aventura de viver no mundo.

A paixão de dizer/2
Esse homem, ou mulher, está grávido de muita gente. Gente que sai por seus poros. Assim mostram, em figuras de barro, os índios do Novo México: o narrador, o que conta a memória coletiva, está todo brotado de pessoinhas.

A uva e o vinho
Um homem dos vinhedos falou, em agonia, junto ao ouvido de Marcela. Antes de morrer, revelou a ela o segredo:
- A uva – sussurrou – é feita de vinho.Marcela Pérez-Silva me contou isso, e eu pensei: se a uva é feita de vinho, talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é.
Trechos de “O livro dos abraços”, Eduardo Galeano, 2005. Ilustrações de Danilo de S´Acre.

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