segunda-feira, 12 de novembro de 2012

O Inicio depois do fim



“Isso significa que cada término é seguido 
sempre de um novo começo (...)”
I Ching – Livro das Mutações

Foi num domingo comum, no já longínquo dia 12 de novembro de 2006, que comecei a publicar aqui no jornal Página 20, a coluna Miolo de Pote. Durante muito tempo eu guardei os arquivos numerados: miolo01, miolo02... e assim por diante. Mas, depois do miolo223, perdi a conta e baguncei as pastas. Por isso nem sei dizer ao certo quantos artigos foram publicados na coluna ao longo destes seis anos. Algo em torno de trezentos artigos, eu acho.
Entretanto, quem acompanhou a coluna sabe que, nem todos os artigos eram inéditos ou escritos especialmente para coluna. Aproveitei esse espaço semanal para republicar muitos textos publicados na revista Outras Palavras, em outras colunas que já tive em jornais diversos, ou textos que ainda estavam inéditos e dormiam na memória RAM do meu computador. Fiz isso não só porque, de quando em vez, eu não podia escrever no sábado de manhã (que é quando tenho que entregar estes artigos à editoria do jornal), mas também porque o público da Coluna Miolo de Pote é diferente daquele que teve acesso a esses artigos anteriormente.
Entretanto, como os leitores mais assíduos dessa coluna já devem ter percebido, nos últimos meses tenho publicado aqui alguns textos mais antigos, revisitados como recurso para não falhar com meu compromisso semanal. Com exceções esporádicas. Ou seja, o que era pra ser a regra (escrever prioritariamente textos novos) acabou se tornando a exceção.
Como acredito que quem escreve estabelece uma responsabilidade com aquele que lê, ainda que não se saiba quem seja exatamente, sinto-me na obrigação de dar aos improváveis leitores dessa coluna pelo menos alguma explicação, ainda que ela possa não ser suficiente.
Por conta mesmo de minha condição de historiador quero lembrar o principio dessa história. Comecei essa coluna por três motivos básicos:
O primeiro é que amo a palavra impressa no papel, seja em livros, jornais ou revistas. Muitos vão me acusar de antigo, conservador, ou ultrapassado. Mas aprendi a ler livros não só com os olhos, mas também com o nariz (por conta do cheiro delicioso de papel, que, quanto mais velho, mais cheiroso é), com os dedos (que caprichosamente assumem rotinas de virar e revirar páginas pra diante ou pra trás, de acordo com o ritmo que a leitura estabelece), e com o corpo todo, que deita, senta e se manifesta de diferentes maneiras nas passagens mais excitantes de cada leitura, enfim.
Além do que, ainda não consigo acreditar na permanência, para além de nós, dos textos disponíveis nesse mundo virtual em que vivemos. Imaginemos que os livros impressos deixassem de existir e tudo passasse publicado apenas através da internet, como muitos preferem fazer hoje. E vai que de repente nosso Sol decide desencadear uma tempestade solar e desmagnetiza completamente nosso planeta apagando todas as mídias digitais que estamos acumulando nos últimos anos... Pronto, acabou-se tudo... Perderemos então, definitivamente, toda nossa memória recente e, por consequência, nossa própria história. Assim, publicar os textos de forma tradicional, tinta sobre papel, continua sendo - pra mim - imprescindível.


Em segundo lugar, porque assumir um compromisso semanal com o jornal é uma forma muito eficiente de me obrigar a escrever. Mesmo que eu não consiga me entender no mundo sem ser escrevendo, para isso é preciso disciplina, porque muitas vezes escrever dói e a gente sempre tem tendência de fugir da dor. Só quem é mãe, ou escritor, conhece a dor do parto e vai entender perfeitamente o que estou dizendo. Assim, agradeço imensamente ao Página 20 que me abrigou nestes seis anos e me obrigou a escrever religiosamente todo sábado até as 14h (às vezes até as 15h, ou um pouco mais, dependendo do apuro).
Em terceiro lugar, mas não menos importante - fiz essa coluna para combater desvios e distorções, dos quais muitas vezes nossa história é alvo, por interesses inconfessáveis. E, como é do conhecimento de quantos leram esta coluna durante esse tempo todo, nos últimos anos, a arqueologia acreana foi tomada de assalto por um bando aventureiros em busca de fama e grana, que tentaram jogar fora tudo quanto havia sido feito nessa área aqui no Acre, desde os anos 70. Como já escrevi que chegue sobre esse assunto, considero que, nesse aspecto, a coluna cumpriu a função a que se propôs.
Entretanto, aviso aos navegantes que, embora esta coluna esteja sendo encerrada hoje, ela sempre poderá voltar em edição extraordinária, em caso de necessidade. Como diria Raul: “Estou avisando só por avisar... Agora vou cantar por cantar...”
Assim, caros e improváveis leitores, como vocês já entenderam, venho, por meio deste artigo, dar por concluída a coluna Miolo de Pote. Pretendo em fevereiro fazer uma avaliação de como está minha vida sem esse vício semanal de estar aqui com vocês aos domingos. Quem sabe poderemos voltar então com a coluna repaginada e uma nova proposta editorial, ou criar uma nova coluna diferente. Ou ainda parar durante um tempo e voltar assim que Deus der Bom Tempo. Quem poderá saber o que nos reserva o futuro. Minha matéria prima é o passado e só dele eu procuro saber. Mas, espero que, neste seis anos em que estivemos juntos aqui, no Página 20, eu tenha conseguido moldar essa matéria prima com arte suficiente para satisfazer as expectativas de vocês leitores... motivo último e primordial disso tudo...
E como o I Ching me socorreu muitas vezes aqui, nesta coluna, quero recorrer a ele mais uma vez para melhor expressar o que verdadeiramente sinto nesse momento.

“DURAÇÃO significa o que subsiste por um longo tempo. (...) O curso do céu e da terra é duradouro e longo e não cessa jamais. (...) Isso significa que cada término é seguido sempre de um novo começo. O sol e a lua têm o céu, e por isso podem brilhar de modo duradouro. As quatro estações se modificam e se transformam e, por isso, podem sempre conduzir à plenitude. O homem que segue seu destino mantém sempre seu curso e o mundo se reestrutura até completar-se. Se contemplarmos o que dá duração às coisas, compreenderemos a natureza do céu e da terra e de todos os seres.
(I CHING – O Livro das Mutações)

Obs: Agradeço a todos que, de uma maneira ou de outra, me ajudaram com essa coluna. Vou nominar aqui apenas o Ulisses Lima que criou a atual arte da página e o Ronaldo Spock que a tem diagramado pacientemente aos sábados, em nome dos quais agradeço a todos. Afinal foram tantos os que leram, sugeriram, revisaram, brigaram comigo, ou simplesmente leram e aprovaram, ou não, seu conteúdo, que eu seria incapaz de relacioná-los aqui sem cometer injustiças... Bjos no coração. Até a próxima!

Obs2: Como estou escrevendo (com a luxuosa revisão da Profª Eurilinda Figueiredo) este derradeiro artigo enquanto participo do I Fórum Setorial de Culturas Ayahuasqueiras, que está acontecendo no Ciclu-Midã – Bairro Irineu Serra. Como ilustração dessa página, segue a logo desse extraordinário evento.

Obs3: O Blog Miolo de Pote (www.colunamiolodepote.blogspot.com) continua...

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O Homem Impossível...



Ele tinha tudo pra ter morrido muitas mortes. Mas, preferiu viver muitas vidas, feliz, como poucos sabem viver. Agora que decidiu mesmo partir... Não posso deixar de lembrar de uma pequena parte de sua história que tanto me ensinou...

A vida ali no antigo Aldeamento de Nossa Senhora das Montanhas, mais tarde chamada simplesmente de Morada Nova, nunca foi fácil. Porque sobreviver na secura e aspereza da caatinga nordestina era quase impossível mesmo. E, naquele longínquo ano de 1926, o menino Lupércio Freire Maia tinha tudo pra não vingar como costumava acontecer com muitos dos meninos nascidos no sertão inclemente. Ainda assim vingou pra viver a primeira de suas muitas vidas.
Mas, nem bem havia completado 16 anos, em incerto dia que Lupércio estava com o pai no roçado, chegaram os recrutadores do Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (o conhecido SEMTA) para arrebanhar jovens para a Batalha da Borracha. Bem que seu pai ainda tentou resistir: “Não, ele não vai agora não. Vai depois.” Ao que respondeu o recrutador com a arrogância dos que encarnam a autoridade oficial: “Tem depois não. Suba aqui no caminhão é agora mesmo.”

Foto de Dario de Domenices
 Corria o ano de 1943 e o mundo estava em guerra já fazia três anos. Do outro lado do oceano a Segunda Grande Guerra Mundial matava milhões. Em razão disso o Brasil não só mandava homens pra lutar na Itália como enviava milhares de outros jovens pra Amazônia produzir borracha para os norte-americanos em nome dos Acordos de Washington. E foi assim que Lupércio teve que nascer outra vez. Repentinamente havia deixado de ser apenas um jovem sertanejo para se tornar um Soldado da Borracha.
Para muitos foi mesmo impossível sobreviver a tudo que se sucedeu naqueles longínquos e terríveis anos da Segunda Grande Guerra no percurso entre o Nordeste e a Amazônia. O transporte na carroceria dos caminhões do SEMTA pelas precárias estradas que levavam do nordeste ao norte. A viagem nos navios do Lloyd sob constante ameaça de bombardeio pelos submarinos alemães. Os alojamentos insalubres de Belém e Manaus, com sua péssima comida e nenhuma condição de higiene que faziam grassar a febre amarela, o impaludismo (malária), entre outras epidemias que vitimavam dezenas de homens todos os dias. Tanto assim que dos mais de 50.000 homens enviados pra Amazônia cerca de metade morreu.
Mas, Lupércio sobreviveu para nascer outra vez mais. Agora ele era um seringueiro brabo, submetido ao duro sistema de vida nos seringais acreanos e ao domínio e exploração dos patrões. Teve então que aprender a andar na floresta úmida e escura, tão distinta de seu sertão seco e solar, a se defender das cobras traiçoeiras e da possibilidade de um encontro inesperado com uma onça faminta. Ou, ainda pior, tendo que estar pronto caso se deparasse com o temível e lendário Mapinguari.
Perigos muitos, alguns insuspeitos até. Como o perigo da solidão nas colocações distantes e isoladas do centro da mata que foi capaz de enlouquecer muitos que nunca mais conseguiram voltar a ser os mesmos. Ou, ainda, o perigo eminente de um bom “Baile das quatro bolas” num dos raros momentos de lazer nos seringais de então. Afinal foi Seu Lupércio mesmo que contou sobre aquele Baile, que já ia muito animado pela cachaçada que rolava entre os homens, quando chegou uma velha de uns 82 anos, trajando um lindo vestido, mas tinha mais nós na canela do que maniva de macaxeira amarela. Mesmo assim a seringueirada, que há muito tempo não via uma mulher, se alvoroçou toda e o resultado não podia ser outro: acabou o baile por conta da briga de todos contra todos pela velha.
Ainda assim Lupércio mais uma vez conseguiu sobreviver. E o término da Batalha da Borracha com o fim da Grande Guerra em 1945 foi motivo de muita satisfação pra todos os soldados da borracha que enfim poderiam voltar pra casa se assim quisessem. Mas Lupércio já tinha se acreanizado definitivamente. Tinha mais jeito de voltar pro Ceará não. O jeito era nascer pra uma outra vida novamente. 

 Foto de Dario de Domenices
E assim fez. Casou, constituiu uma linda família e formou uma das mais belas “colonhas” de Assis Brasil. A propriedade de Seu Lupércio se tornou famosa por ser um dos melhores exemplos de como é possível produzir o suficiente pra se viver bem, sem abrir mão da floresta, que ele fez questão de preservar porque em seus tempos de seringueiro aprendeu a não só respeitar, como amar a floresta. Por isso, quando asfaltaram o trecho da BR-317 até Assis Brasil, escolheram exatamente Seu Lupércio para dar um depoimento sobre as mudanças que estavam acontecendo no Acre para material institucional que foi exibido na televisão e fez um estrondoso sucesso.
Aliás, foi graças à exibição desse material na televisão que Seu Lupércio reencontrou um irmão que também tinha vindo pro Acre na Batalha da Borracha, mas como foi pro vale do Juruá, se perderam um do outro. Coisas do isolamento entre os vales do Acre. O certo é que durante algum tempo a frase que Seu Lupércio disse na televisão, enquanto se abaixava pra beijar a nova estrada pavimentada, virou moda e passou a ser repetida por todo canto: “Isso aqui mudou muito, ôôô se mudou!” É que, não custa ressaltar, ele era um dos homens mais alegres, carismáticos e divertidos que já conheci na vida.
Entretanto, Lupércio nunca se conformou com o fato do governo brasileiro não ter cumprido as promessas feitas aos soldados da borracha. Ele não se cansava de repetir: “As vezes me dá assim uma tristeza. Nós somos combatentes de guerra... meu sonho é antes de morrer ser considerado assim e o nosso Brasil pagar nós...”

Foto de Chico Gadelha
Por isso quando, no inicio do mês passado, Seu Lupércio foi convidado para ir a Brasília para participar da homenagem aos Soldados da Borracha feita no Panteão dos Heróis da Pátria, ficou muito animado. Afinal, ele que se tornou um sobrevivente de muitas vidas, não iria se recusar a tentar mais uma vez tentar fazer valer seus direitos de cidadão brasileiro e de combatente de guerra. E na audiência que aconteceu no Palácio do Planalto com o poderoso Gilberto Carvalho, atual Ministro-Chefe da Secretaria Geral da Presidência da República do Brasil, mais uma vez prendeu a atenção de todos ao contar sua extraordinária história de vida (ou de tantas vidas) diante de atônitas autoridades (ver foto).
Porque era mesmo impossível resistir à alegria, à inteligência e ao brilho dos olhos e das palavras de Seu Lupércio... Como será impossível pra mim, e pra todos que o conheceram, esquecê-lo...

Obs: Agradeço a cessão das fotos deste artigo à Bucanero Filmes (Wolney Oliveira, Lucia Ramos e toda equipe), que estiveram aqui no Acre mês passado filmando um novo documentário sobre a história da Batalha da Borracha, e que, como eu, também se apaixonaram perdidamente pelas muitas vidas impossíveis de Seu Lupércio.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Uma cidade em guerra



Não, o titulo deste artigo não diz respeito ao período eleitoral que estamos vivendo, apesar de, em alguns momentos, parecer mesmo que a eleição é uma guerra. Este artigo é sobre o combate que aconteceu aqui em Rio Branco cujo término completa 110 ano, nesta segunda-feira, 15 de outubro.

As primeiras chuvas de outubro chegaram, como chegam todos os anos às margens dos rios acreanos, e encontraram uma terra varrida por tempos de guerra. A ameaça do domínio estrangeiro agora era uma realidade. O sangue tingia as águas que anunciavam o inicio do inverno amazônico. Na cidade, que mais tarde seria conhecida como Rio Branco, a população assistia atemorizada ao primeiro grande combate do exército formado por centenas de seringueiros e o resultado deste combate poderia determinar os rumos da guerra.
15 de outubro de 1902. Fazia 11 dias desde que começaram as lutas na Volta da Empresa. Agora, não se tratava mais de simples emboscadas nos varadouros e barrancos do Acre. Dessa vez era guerra de verdade. Os militares bolivianos haviam derrotado, pouco menos de um mês antes, os mal armados e mal treinados seringueiros que, comandados por Plácido de Castro, se constituíam ainda num arremedo de exército. Com isso, a Volta da Empresa (Rio Branco) se tornou domínio boliviano e junto com Puerto Alonso (Porto Acre) passara a se constituir numa de suas praças fortes.

Vila Rio Branco (atual 2º Distrito), pouco depois da Revolução, 
próximo à Gameleira onde aconteceu o combate.

Era preciso reagir logo uma vez que a notícia da derrota havia se espalhado rapidamente pelos rios acreanos e poderia levar seringalistas e seringueiros à desmobilização, pondo fim a Revolução. Por isso, o comando revolucionário do exército acreano, reunindo cerca de trezentos homens, decidiu atacar o inimigo ainda no dia 05 de outubro.
A inferioridade numérica dos bolivianos, que não passavam de 180, era compensada pela presença de extensas trincheiras e pelo alambrado que protegiam o acampamento principal boliviano. Isso tornou a luta muito penosa. Os acreanos não podiam atacar diretamente as fortificações, sob pena de serem fragorosamente derrotados. A única forma de conquistar as trincheiras inimigas seria escavando trincheiras que em zigue-zague, lentamente se aproximavam das posições bolivianas.
Foram dias terríveis para ambos os lados em luta. Os mortos que tombavam nas trincheiras não podiam ser removidos por causa das balas que a todo o momento cortavam o ar pesado do campo de batalha. Logo a decomposição dos corpos tornou a permanência dentro das trincheiras, meio alagadas pela chuva, insuportável.

Sede do Seringal Empreza (atual 1º Distrito) 
que serviu como hospital de sangue do combate.

Porém, a cada dia, a vitória acreana ficava mais evidente. O grande temor boliviano era de que o boato que circulava nas linhas de combate fosse verdadeiro. Dizia-se que os acreanos, cujas posições estavam a apenas seis metros da ultima linha de trincheiras bolivianas estavam prestes a executar o ataque final, onde não utilizariam armas de fogo, mas tão somente armas brancas. E não havia boliviano que não conhecesse a terrível fama dos punhais dos cearenses, que eram manejados com extrema destreza e, em tempos de guerra, crueldade.
Diante disso tudo, no dia 15 de outubro, o Coronel Rozendo Rojas, comandante das forças bolivianas, finalmente se decidiu pela rendição. Assim, a velha Volta da Empresa, hoje Rio Branco, voltou a pertencer aos acreanos e a primeira grande vitória do exército revolucionário encheu de coragem e esperança o coração daqueles homens que somente queriam o direito de ser o que eram... brasileiros.

Texto publicado no jornal “O Estado do Acre”, série “O Acre é Cem”, 15 de outubro de 2001.