A propósito do massacre de Porvenir,
Os Incas de Cuzco respeitaram a cultura dos Takana. Moradores da selva baixa que cobre os vales dos grandes rios que desembocam no maior de todos (o rio Beni) foram intermediários entre os recém chegados desde as terras altas e outras nações e povos das terras baixas. Os Takana viviam na porta de entrada de um grande Reino. Os Moxo eram um estado exemplar que se estendia pelas planícies de inundação. (...) uma relação bastante harmônica entre os povos das terras altas e seus pares das terras baixas. A palavra guerra recém apareceu nas crônicas quando quem as escreveu, chegou desde a outra margem do Oceano para invadir este lugar do mundo.
Quando encarei o homem para perguntar-lhe o que estava tocando, me respondeu: musica Takana. Quando quis averiguar seu nome, proclamou, como uma flecha cortando o vento da história e do esquecimento, que se chamava Racua e que um antepassado seu estava enterrado no cemitério do povoado.
Assim passaram anos, décadas, séculos, até que a selva mudou, dessa vez para sempre: (...) Como parte do devastador efeito do mercado mundial(...) a febre pela extração do caucho levou milhares de forasteiros para a floresta.
“Se é uma triste verdade que os selvagens receberam muitas ofensas anteriores, até ver seus filhos arrebatados pelos cristãos, também é fato que este ultimo escândalo acontecerá com frequência (se refere a ataques de índios aos barracões de seringais) se não se pensar em corrigir a ferocidade dos selvagens (...) O selvagem é uma fera que quando está incomodada ataca sem limite. E uma fera tem que ser caçada...” Editorial de La Gaceta del Norte, 1889, n º 19. Tomado de Pilar Gamarra: Orígenes históricos de la goma elástica en Bolivia en Historia, N° La Paz, 1990, pág. Extraído de Pilar Gamarra: origens históricas da banda de borracha na Bolívia em História, n º La Paz, 1990, pg. 553.
A história pessoal dos “invisíveis” sempre se perde nos meandros do passado. Se hoje recordamos de Bruno Racua é porque ele se transformou em herói nesta luta, apesar, inclusive, da maioria dos historiadores republicanos, que não citam seu nome. O filho de Nicolas Suarez – que os poderosos de ontem e de hoje chamam de “O Rei do Caucho” e promotor da “Civilização” e do “Progresso”, quando não foi mais do que um invasor dos territórios ancestrais dos povos indígenas, aos quais massacrou e explorou sem misericórdia – narrou assim ao desenlace do estratégico Combate do Bahia, em 11 de outubro de 1902: “Então se chamou a um índio ixiameño, cujo nome não me recordo, lhe entregamos um arco e uma flecha provida de uma mecha impregnada de querosene; e esta foi lançada sobre os tetos de folhas de palmeiras ressecadas pela ação do sol, dois minutos depois as chamas obrigavam a desalojar edifícios e trincheiras tomadas pelas chamas, obrigando à derrota aos apavorados que dias antes haviam ultrajado a soberania nacional...”. Filho de Nicolas Suarez: A Campanha do Acre, 1928. Tomado de Saavedra, Carlos P.: Pando, el último paraíso. Tirado de Saavedra, Carlos P., Pando, o último paraíso. Ed. Franz Tamayo, Cobija, 2001, pág. Ed Franz Tamayo, Cobija, 2001, pg.169 169.
Graças ao “índio cujo nome não recordo”, Nicolas Suarez pode conservar seus seringais e seguir explorando aos irmãos de Racua. Bolivia pode conservar algo mais importante: a soberania até o rio Acre, em cujas margens se acha hoje a cidade de Cobija (a antiga barraca chamada Bahia), capital do Departamento de Pando, desde onde partiram os assassinos que faz alguns dias assassinaram ao outro parente de Dom Bruno, o dirigente campesino Bernardino Racua.
Se a história foi suficientemente ingrata ao esquecer a Bruno Racua, um herói nacional indígena (agradeço o esclarecimento de Wilson García Mérida, em comunicação pessoal); hoje a história não só se repete como drama para os novos condenados da selva, mas se encena uma absurda prova de desprezo com o destino do assassinato de Bernardino Racua.
“Mataram Bernardino Racua. Lembra dele? Estava no I Fórum Amazônico, era o bisneto de Bruno Racua. Me sinto impotente, triste e cheia de raiva” – uma companheira me escreveu e alertou angustiada – “Mataram os feridos no hospital e há mais feridos do outro lado do rio... foi um massacre.”Já começam a aparecer os testemunhos das execuções do que já é conhecido como o “Massacre de Porvenir” e que gente tão criminosa como os que empunharam as armas, porém utilizando teclados ou microfones, que pretendem encobrir o que aconteceu como se tivesse sido apenas um “enfrentamento”, as mesmas canalhadas que se utilizaram sob o império e o terror da Doutrina de Segurança Nacional. Pois, lhes dizemos: foi a continuidade do genocídio contra os povos indígenas e os camponeses amazônicos que começou no século XVI, chegou ao seu auge assassino nos anos do caucho e se perpetua até os dias de hoje.
Os executores das matanças mudam, porém os mortos seguem sendo os mesmos. Todos os que não perderam a sensibilidade frente aos dramas humanos, as atrocidades que tem que sofrer sempre os pobres e os humildes, devemos exigir que se esclareçam estes fatos e que os responsáveis materiais e intelectuais recebam julgamento e o castigo que são merecidos.
É muito duro escrever sobre isto, sobre uma nova dezena de mártires, que se somam a essa lista anônima e interminável das vitimas da opressão e da injustiça. Porém, nesta terrível hecatombe, porque talvez seja um símbolo, deveríamos recordar a Bernardino, o bisneto de Bruno, aquele que legou a todos os bolivianos este canto da pátria e, malditos paradoxos, aos assassinos de seu bisneto, aquilo que eles consideram sua fazenda e seu prestigioso poder. Deveríamos recordá-lo como o que foi, como o que eram também seus companheiros baleados: indígenas e camponeses amazônicos, trabalhadores de toda a vida, extrativistas que se internavam na floresta para colher castanha, amantes da floresta e seus protetores porque ela lhes deu, cada ano, o pão para seus filhos, gente humilde, gente boa, gente digna.
Se algo mudou na Bolívia nestes últimos anos é que a consciência social já não suporta estes atos violentos de absoluto desprezo pela vida dos mais desprotegidos e até mesmo à condição humana e que, por isso, não podem ficar impunes porque foi um genocídio, crime contra a humanidade, algo impossível de esquecer e de perdoar.
Entretanto, apesar do choro e da dor, oxalá a justiça encontre seu curso. Bernardino haverá de ter chegado junto a Bruno e, desde o cume do Caquiawaca, seguirão nos ensinando e amparando com sua memória.
* Publicado em 13 de setembro de 2008 em www.bolpres.com
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