segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Rosalina (3ª Parte)*

Qual seria o segredo das histórias que ficam e das que desaparecem? Eu não sei! Só sei que esta é uma daquelas histórias que se contam em voz baixa e grave, mas que nunca consegui esquecer...

“Não existiria som se não houvesse o silêncio.
Não haveria luz se não fosse a escuridão.
Silenciosamente eu te falo com paixão.
Eu te amo calado (...)”
Lulu Santos

(...)Nesses tempos felizes, Rosalina freqüentava os filmes que eram exibidos no Cine-teatro Recreio e suspirava como todas as suas amigas pelos galãs de cinema. (...)Bem poderia aspirar a um ótimo casamento. Principalmente se fosse com um desses moços bonitos e bem vestidos que não paravam de chegar e que faziam mocinhas reunidas para um sorvete nas mesas do Pavilhão Acreano, rir e corar nervosamente.

Não demorou muito para que finalmente o coração de Rosalina balançasse por um desses interessantes homens desconhecidos. Coube a um piloto de avião que vinha regularmente ao Acre a sorte de despertar o amor de Rosalina e dela se enamorar tão profundamente que não tardaria a lhe propor casamento. Quando Praxedes soube da notícia do eminente casamento de Rosalina se desesperou. Até aqui o acaso lhe beneficiara e nunca mais Lázaro tinha encontrado Rosalina na rua enquanto prestava serviços forçados na limpeza das vias públicos. Por isso Praxedes havia conseguido manter sua farsa de falsas cartas trocadas. Lázaro, com sua rude inocência, acreditava quando a falsa Rosalina lhe escrevia dizendo que também simpatizava com ele, mas que não poderia lhe falar, ou sequer lhe dirigir o olhar, porque sua mãe nunca permitiria tal coisa.
Mas ela não disse que não gosta de mim, pensava Lázaro, sem desconfiar que tudo não passava de uma mentira de seu igualmente apaixonado amigo jornalista. Por isso, tão logo soube da notícia do casamento de Rosalina, que segundo alguns já tinha até comprado o vestido de noiva, Praxedes decidiu escrever aquela que seria sua última carta falsamente assinada por Rosalina. Nela contou para Lázaro que um súbito amor teria arrebatado seu coração e que por isso não poderia mais escrever para aquele que agora julgava ser seu melhor amigo. Pedia ainda ao Lázaro que àquele amor tão belamente confessado nas cartas anteriores se voltasse para sua recuperação, já que um dia ele sairia da prisão e teria então uma nova chance de encontrar alguém que o merecesse mais que ela.


Lázaro ficou transtornado ao ler a carta de despedida daquela que havia se tornado a razão de sua vida. Gritou com toda força de seus pulmões que a mataria e que nunca poderia permitir que ela pertencesse a outro homem. Praxedes, assustado, tentou acalmar a fúria cega que havia aflorado de Lázaro e temeu pelo pior. Mas era tarde, o mal estava feito e agora era rezar para que o tempo cuidasse de aplacar as dores de seus corações partidos.
Porém, mais uma vez o destino foi ingrato e levou a um encontro que nunca deveria ter acontecido. Exatamente no dia seguinte da malfadada carta de despedida da falsa Rosalina, Lázaro foi posto junto com outros presos para roçar o capim da rua onde ficava a casa da mãe da simpática professora. Lázaro chegou a pensar que era uma coisa de Deus aquela oportunidade de se vingar da mulher que parecia tão meiga e fraternal, mas que na verdade o havia usado e agora estava jogando-o fora como se fosse um brinquedo velho e quebrado. Lázaro estava tão cego pelo ódio que quase não percebeu quando Rosalina saiu da casa de sua mãe para ir à escola, como fazia todos os dias. Ao vê-la tão serena depois de ter escrito aquelas monstruosidades na carta do dia anterior, Lázaro sentiu seu ódio aumentar a um ponto insuportável e apertou com força o cabo do terçado com que cortava o capim da rua.

Todos os outros presos que trabalhavam junto com Lázaro sentiram o peso que pairava no ar e interromperam automaticamente seu trabalho ao ver aquele homem que transpirava ódio no meio do pó da rua. Rosalina também sentiu que havia alguma coisa errada e olhando para a frente viu aquele homem estranho vindo em sua direção. Sorrindo como sempre, apesar de se sentir inexplicavelmente nervosa Rosalina ainda tentou perguntar o que afligia aquele homem evidentemente tão abalado, mas não conseguiu articular a frase que lhe escapava dos lábios. Só teve tempo de ver o brilho da lâmina do terçado que cortou violentamente o ar para se cravar em seu coração.
A sombra que emanava dos olhos daquele homem mergulhado em raiva e rancor tomou conta do corpo de Rosalina que caiu inerte no chão. Imediatamente todos os outros presos pularam sobre Lázaro e impediram-no de se matar, consumando o que ele mais desejava então, morrer junto com sua amada Rosa1ina.
O que aconteceu com o Praxedes, depois desse dia terrível, não se sabe ao certo. Mesmo o fim de Lázaro é desconhecido. Enquanto alguns dizem que ele se matou, outros contam que ele apareceu morto exatamente no dia em que teria chegado uma ordem do Supremo Tribunal para soltá-lo. Não são poucos os que contam ter visto espíritos atormentados vagando no meio da noite pelos corredores do prédio da Prefeitura de Rio Branco, a antiga penitenciária.
O certo é que o túmulo da professora Rosalina sempre foi um dos mais visitados do cemitério São João Batista e muitas são as pessoas que lhe fazem promessas e dizem ter recebido dela as graças pedidas.

* Texto publicado na revista Outras Palavras, n. 17, julho de 2002.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Rosalina (2ª Parte)*

Existem acontecimentos que se perdem no pó dos tempos. Outros ficam pra sempre gravados na memória de homens e mulheres. Surgem assim, nas ruas e esquinas das cidades, vozes que não se calam, anônimas, coletivas, fugidias, longínquas. Qual seria o segredo das histórias que permanecem?

“A vida é mesmo assim,
dia e noite, não e sim.
Cada voz que canta o amor,
não diz tudo que quer dizer.”
Lulu Santos


(...)Foi uma longa noite de insone de sonhos. Logo pela manhã, por uma estranha armadilha do destino, Lázaro recebeu a visita de Praxedes, o único que lhe procurava prisão já que ele não tinha mais ninguém neste Acre de meu Deus. Não suportando mais tantos desejos e sonhos lhe sufocando o coração, Lázaro contou para Praxedes sobre seu amor por Rosalina, que a tudo ouvia atordoado e incrédulo.

Nunca antes Praxedes, um jornalista que havia coberto o crime cometido por Lázaro e desde então se aproximara dele, havia visto seu contido amigo tão animado, tão vivo e feliz. Pelo contrário, mesmo sendo Praxedes o único que parecia perceber o homem que havia por trás da rudeza aparente de Lázaro, durante as poucas conversas dos dois, havia sempre um bloqueio, uma parede imposta por Lázaro, que impedia o jornalista de compreender os verdadeiros motivos daquele homem embrutecido e condenado pela sociedade.
Mesmo ao tentar chamar Lázaro à realidade mostrando-lhe que Rosalina nunca poderia ser sua, Praxedes foi de certa forma contagiado por aquela fervorosa paixão e vislumbrou por um breve momento a possibilidade de ver seu amigo voltar a vida. E num momento de absoluta insensatez prometeu a Lázaro que escreveria uma carta para Rosalina em seu nome. Se por acaso houvesse qualquer chance de correspondência de seu amor essa seria a melhor e mais correta forma de saber.
A partir desse dia foi como se Praxedes tivesse descoberto, também ele, um motivo para esperar cada novo dia. O hábil jornalista procurou se informar sobre a Professorinha Rosalina, seus hábitos, suas ocupações, seus gostos e preferências. Passou então a procurar vê-la na praça e a esperar a hora em que ela costumava sair da escola para subir a poeirenta Avenida Getulio Vargas até a casa de sua mãe. Logo percebeu, ele também, o encanto extraordinário de seu inocente sorriso.


Vista da Avenida Getúlio Vargas, início da década de 40, Relatório do governador Luís Silvestre G. Coelho

Ao sentar para cumprir sua promessa Praxedes viu frases cheias de amor e apaixonada poesia se sucederem rápidas e fluidas pelas folhas de papel. A imagem de Rosalina não saía de suas retinas e lhe perturbavam a alma. Num sobressalto, Praxedes viu que, ele também, estava sucumbindo à força daquela, aparentemente, frágil e doce menina e pôs-se a chorar. Sentiu o peso de sua vida perdida entre ruas sujas e manchetes de jornal e suas lágrimas molharam o papel da carta que ele escrevia por Lázaro.
Mas ele nunca havia pensado realmente em mandar carta nenhuma para Rosalina. Por isso, depois de mostrá-la para Lázaro, Praxedes a guardou com carinho, apesar de garantir a seu amigo que a enviaria. Conforme se passavam os dias sem resposta de Rosalina, Lázaro entristecia e se apagava cada vez mais. Os dias nublados do inverno chuvoso pareciam colaborar com a tristeza do prisioneiro que ansioso esperava ver através do alambrado da Penitenciária um rápido vislumbre que fosse de sua amada.
O jornalista começou a ficar preocupado com o que Lázaro poderia fazer. Talvez até decidisse por fim à própria vida diante de tamanha desilusão. Foi quando Praxedes cometeu seu segundo e pior erro. Em parte por causa da tristeza de Lázaro e em parte por causa de sua própria paixão por Rosalina. Decidiu responder em nome da professorinha a carta que, na verdade, nunca havia enviado. Assim ele iria animar Lázaro e, ao mesmo tempo, poderia escrever outras cartas de amor para sua terna Rosalina, antes de fechá-las num envelope e guardá-las para sempre na gaveta. Esse deveria ser um segredo só deles.
Assim, rapidamente se passaram as semanas enquanto aqueles dois homens apaixonados mandavam e recebiam cartas de uma Rosalina que só existia em seus sonhos...
Indiferente a isso tudo, a Rosalina de verdade, dona daquela peculiar beleza cabocla das mulheres acreanas, tocava sua vida como qualquer outra moça de sua idade. Ainda mais porque os anos 40, que estavam só começando, se revelavam como tempos extremamente movimentados. A Grande Guerra estourou na Europa e as rádios e pessoas não comentavam outro assunto. A borracha subiu rapidamente de preço e trouxe uma súbita e bem-vinda prosperidade como há muito não se via. Os entendidos nas coisas dos mercados internacionais diziam que isso era só o começo e a borracha ainda iria subir muito mais até o fim da Segunda Guerra Mundial. Bons ventos sopravam no Acre que parecia novamente renascer graças ao velho e bom ouro negro de outrora.

Grupo Escolar Sete de Setembro onde a Profª. Rosalina trrabalhava (no local do atual Palácio das Secretarias), Relatório de Hugo Carneiro, 1929.


Nesses tempos felizes, Rosalina freqüentava os filmes que eram exibidos no Cine-teatro Recreio e suspirava como todas as suas amigas pelos galãs de cinema. Nova, boa professora e simpática como só ela sabia ser, Rosalina bem poderia aspirar a um ótimo casamento. Principalmente se fosse com um desses moços bonitos e bem vestidos que não paravam de chegar e que faziam as mocinhas reunidas para um sorvete nas mesas do Pavilhão Acreano, rir e corar nervosamente.

*Texto publicado originalmente na coluna “Histórias das Margens”, Revista “Outras Palavras”, n. 17, julho de 2002.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Rosalina (1ª Parte)*


Semana passada o mestre-jornalista Elson Martins me lembrou de uma data que eu não gostaria de deixar passar em branco. Disse-me que no dia 25 de novembro passado completaram-se 70 anos desde a morte da Professora Rosalina da Silveira. Um crime incompreensível que contei há alguns anos atrás na Revista Outras Palavras e que, mesmo tendo sido censurado por isso, arrisco trazer de volta pra esta coluna.

“Não existiria som se não houvesse o silêncio.
Não haveria luz se não fosse a escuridão.
A vida é mesmo assim, dia e noite, não e sim.
Cada voz que canta o amor,
não diz tudo que quer dizer
Tudo que cala fala mais alto ao coração.
Silenciosamente eu te falo com paixão.
Eu te amo calado (...)”
Lulu Santos**


Existem acontecimentos que se perdem no pó dos tempos tão logo tenham passado. Outros ficam pra sempre gravados na memória de homens e mulheres, dos que estiveram presentes ou não, dos que cantam e dos que ouvem. Surgem assim, nas ruas e esquinas das cidades, vozes que não calam, anônimas, coletivas, fugidias, longínquas. Qual seria o segredo das histórias que ficam e das que desaparecem? Eu não sei! Só sei que esta é uma daquelas histórias que se contam em voz baixa e grave, mas que nunca consegui esquecer...


Penitenciária Ministro Vicente Rao, atual prédio da Prefeitura Municipal de Rio Branco.


Quando Hugo Carneiro construiu, em meados dos anos 20, o quartel da Força Policial do Território do Acre (no mesmo lugar onde está até hoje o quartel da PM) começou a levantar também a Penitenciária bem ao lado (o mesmo prédio que foi transformado no Hotel Chuí e depois na atual sede da Prefeitura de Rio Branco) e que só foi concluído alguns anos depois pelo Governador Epaminondas Martins. Atrás da Penitenciária Ministro Vicente Rao ficava o pátio onde os presos todos os dias tomavam banho de sol. Como se esse pátio não era cercado de muro, mas por um forte alambrado de arame, Lázaro podia ver quando Rosalina saía de casa para ir às compras, e não conseguia evitar que fortes sensações tomassem conte de seu coração tão rude e calejado. Logo ele que era temido pelos outros presos devido a sua fama de valentia e frieza, se via tomado por um estranho calor e ternura sempre que via a bela Rosalina. Como não podia evitar esses sentimentos Lázaro tratava de ao menos ocultá-los. Tinha vergonha porque o que sentia por Rosalina não era o desejo carnal que conhecera por outras mulheres, mas algo que o enchia de pensamentos e sonhos incompreensíveis.
Realmente, a jovem professora Rosalina era conhecida, não tanto por sua beleza, mas por uma simpática alegria que contagiava a todos os que se aproximassem dela. Ninguém conseguia ficar triste diante daquele sorriso que parecia acender o dia. Para todos os que a encontravam Rosalina tinha palavras e olhares carinhosos. Era bom estar perto daquela moça simples e humilde que apenas começava a tomar ares de mulher.
Lázaro nunca se iludiu ou cultivou a esperança de um dia poder dizer pra Rosalina tudo que se passava dentro dele. Até que numa certa ocasião, num belo dia de sol, ao sair de sua casa e passar ao lado do pátio dos fundos da penitenciaria, Rosalina levantou a cabeça descuidadamente e viu Lázaro que a olhava fixamente. Nesse momento o coração de Lázaro se perdeu num louco carrossel de pensamentos e sentimentos confusos. Poderia ele almejar o amor de tão singela criatura? Seria possível esquecer todo seu passado de sofrimento e crimes para ser feliz ao lado daquela linda mulher que o fazia tão insensato quanto um menino sonhador que acredita que o impossível não existe? Enquanto tudo isso se passava como um raio pela cabeça de Lázaro, Rosalina desapareceu descendo a rua em direção a escola.

Serviços de terraplanagem para a construção da Praça Rodrigues Alves, década de 40, Relatório do governador Luís Silvestre G. Coelho


Naquela noite Lázaro não dormiu. Não conseguia parar de pensar em Rosalina. Imaginava-se beijando aqueles lábios, abraçando aquele corpo macio e tendo direito a uma vida simples, com casa, filhos e cachorros no quintal. No fundo só queria mesmo a aurora de outro dia pra poder ver novamente a luz daqueles olhos. Foi uma longa noite de insone de sonhos. Logo pela manhã, por uma estranha armadilha do destino, Lázaro recebeu a visita de Praxedes, o único que lhe procurava prisão, já que ele não tinha mais ninguém neste Acre de meu Deus. Não suportando mais tantos desejos e sonhos lhe sufocando o coração, Lázaro contou para Praxedes sobre seu amor por Rosalina, que a tudo ouvia atordoado e incrédulo...

*Texto publicado na coluna “Histórias das Margens”, Revista “Outras Palavras”, n. 17, julho de 2002.
** Pra quem não se lembra ou não chegou a ver, esclareço que os artigos da coluna “Histórias das Margens” sempre começavam com um trecho de música que tentava induzir o leitor a um certo tom e ritmo para a leitura dos textos (Por isso sugiro que antes de ler, se cante a musica citada).

sábado, 26 de novembro de 2011

Histórias em Dó Maior*


Como nas duas ultimas semanas publiquei artigos sobre integrantes da Banda da Guarda Territorial, atual Policia Militar, para completar nosso cenário, hoje trago recortes de jornais e livros que retratam parte da história musical acreana ao longo dos tempos.

“Do acampamento boliviano alguém grita em português: ‘Abílio faz o favor de tocar tua flauta’. E Abílio ‘le obsequia con La Siciliana, ejecutada com maestria y sentimiento musical y excuchada por ambos os contendores con silencioso recogimiento’. Logo mais, a melodia sentimental de Abílio é substituída pela musica sibilante das armas.” (Assim Leandro Tocantins descreveu um dos mais notórios episódios ocorridos durante o combate de Porto Acre, em janeiro de 1903, através do qual se evidencia que éramos inimigos, pero no mucho; in Formação Histórica do Acre, 1979:157)

“CIUME E... BALA
Na Casa Floquet, á Avenida General Olympio da Silveira, costumam reunir-se á noite alguns rapazes a as poucas mundanas desta Villa em palestras mais ou menos intimas, que degeneram sempre em danças extravagantes e suarentas, ao som de um grammophone cabuloso e impertinente.” (Noticia veiculada no jornal “O Rio Acre” de Rio Branco em 14/02/1909, pag. 4. Qualquer semelhança com a forma como, às vezes, os jornais locais tratam certas ocorrências das madrugadas no Calçadão da Gameleira, é mera coincidência.)

“NOS DOMINIOS DA ARTE DO SILENCIO
A nossa cidade pode ufanar-se do explendido cinematographo que possue. A empreza ‘EDEN’ teve razão quando deu ao seu sympathico centro de diversões a divisa ‘O MUNDO DEANTE DE NÓS’(...)
Para amanhã, domingo está annunciada a bellissima obra dramatica, extrahida da opera do mesmo nome, "A BOHEMIA", de Musset, cujo successo está affirmado.
O film é dividido em 4 apparatosos actos de grande espectaculo, trabalhados pelos artistas da "Comedia Franceza", de Paris.
A orchestra "Voluntarios da Lyra", caprichoso conjunto musical de pau e corda da qual fazem parte os divertidos rapagões Urias Raulino, José Marçal, Nito Moreira, Manoel Ferreira, F.Coringa e João Noleto, tem emprestado ás sessões do "EDEN" apreciavel realce (...)” (Matéria do jornal “A Capital” de Rio Branco, publicada em 06/08/1921, pág. 2, no Cine-Eden que foi mais tarde transformado no nosso Cine-teatro Recreio, onde está rolando nesta semana o Festival Pachamama)

“SOCIEDADE SPORTIVA E DRAMATICA TARAUACAENSE.
“ALMA ACREANA”.

Está sendo ansiosamente esperada pelo publico desta cidade a representação dessa interessante burlêta de costumes regionaes, em 3 actos, da autoria do nosso jovem e talentoso collaborador Dr. José Potyguara da Frota da Silva, qual segundo estamos informados, subirá á luz da ribalta, em premiére, no proximo dia 8 de dezembro (...)
O enredo de “Alma Acreana”, cujo desempenho occupa 25 personagens, desenvolve-se em um dos nossos seringaes, na época actual, e está entremeado com uma linda e adequada partitura de 19 números de musicas inéditas do festejado maestro Mozart Donizetti (...)” (Matéria do jornal “A Reforma” publicado na Cidade Seabra, atual Tarauacá em 30/11/1930, através da qual fiquei sabendo dessa peça legitimamente acreana que desapareceu no tempo e que eu adoraria ver remontada)


“ESTREOU O JAZZ-ORQUESTRA DE ZYD-9
Estreou na noite do dia 27do fluente, com agrado geral, o Jazz-orquestra de ZYD-9, recém chegado de Belém, onde tocava na “Boite Garé” daquela capital, constituindo, provisóriamente, um conjunto com os musicos Raimundo Estácio Neves, Saxofone; Sandoval Teixeira de Araujo, Clarinete; Elias Ribeiro Alves, Banjo, e Mario do Carmo Pires, bateria, ressentindo-se ainda o magnifico conjunto da falta do piston-trompete e do seu pianista, os quais ainda estão viajando com destino a essa cidade.
São todos eles solistas consumados e com um largo e atualizado repertório que irá melhorar, por certo, a programação da Rádio Difusora Acreana, executando os ultimos sucessos musicais em boleros, foxs, sambas, chorinhos, mambos, etc, etc.
Vem assim preencher uma lacuna que se fazia sentir em nossa Rádio Emissora, e a sua estréia do dia 27, sob o comando do locutor Alfredo Mubarac e dirigida pelo Prof. Raimundo Neves constitui-se um verdadeiro sucesso.” (Matéria do jornal “O Acre” de Rio Branco, publicada em 07/10/1951, pág: 3, e que nos faz lembrar o tempo em que a Rádio Difusora estava na vanguarda das artes no Acre.)

“O ESPIRITO DA COISA - DEU NO QUE DEU
A fórmula é simples: coloque num lugar fechado e calorento mais de mil pessoas, sirva bastante bebida alcóolica e coloque prêmios em dinheiro para atiçar a competição. Serve para as lutas de boxe e para a finalíssima do Famp. Deu no que deu. (...)
Mas valeu o trabalho musical de Damião, o espetáculo de Pia e Felipe, a coragem de Francis Mary denunciando a repressão e o esforço dos demais participantes. Agora, rumo ao festival de praia do Amapá, onde quem esquentar a cabeça leva um caldo.” (Trecho da Coluna do Toinho Alves no jornal “O Rio Branco”, publicada em 13/07/1983, quando ainda havia FAMPs e Festivais no Amapá... Bons tempos, apesar de todos os pesares da época.)


* Material extraído, dentre muitas outras notícias de época, da revista “Registro Musical”; Rio Branco, FGB-MinC, 1998; Silvio Margarido, Jorge Nazaré, Danilo de S’Acre e Marcos Vinicius Neves;

domingo, 20 de novembro de 2011

Zeca Torres II

Como estou imerso na III Conferencia Municipal de Cultura e como na semana passada, trouxe pra coluna o texto sobre o Zeca Torres I, achei justo, além de mais prático também, trazer nesta semana o artigo sobre o Zeca II, contraparte popular do outro.

José Evangelista Torres também conhecido como Zeca Torres Pequeno devido a sua pequena estatura e para diferencia-lo do Zeca Torres I (o compositor anterior) que era alto. Além do nome, os dois Zecas Torres tinham mais uma semelhança, o extraordinário talento musical. Mas as coincidências acabam ai. Zeca Torres II tinha um temperamento completamente oposto ao primeiro. Além de adorar uma bebida, seu estilo musical era alegre e popular, onde predominavam sambas e marchas. A todo momento durante essa pesquisa deparávamos com as histórias do Zeca Torres Pequeno. Ou seja, por seu estilo de vida, ele tornou-se um personagem folclórico da musica acreana.




De seus dados biográficos mais específicos, pouco sabemos. Existe uma controvérsia entre as fontes quanto à sua origem. Enquanto duas informações nos dão conta de que Zeca Torres II era do Piauí, outras duas nos contaram que ele era natural do Ceará. Seja como for, em meados da década de 40, ele já fazia parte da Banda da Guarda Territorial, compondo uma extensa e variada quantidade de musicas, seja para serem tocadas pela Banda, seja para serem cantadas em festas populares. Além disso, consta que passou uma temporada em Sena Madureira, na década de 50, onde teve inclusive uma escola de sanfona.
Mas a principal característica de Zeca Torres II ficou mesmo registrada pela memória popular acreana. Reza a lenda que todas as vezes que ele ia preso, e ia muito graças à bebida, ele fazia uma musica, normalmente com o objetivo de sair da prisão. São comuns, por isso, as marchas, valsas e outras composições suas oferecidas aos comandantes da Guarda ou às suas esposas. É preciso dizer que normalmente o expediente funcionava e ele era libertado. Aliás, uma de suas mais famosas canções trata exatamente deste tema e era mais ou menos assim:
"Encarcerado eu me achava,
triste relembrando a minha dor,
a lua que no céu brilhava,
sorria docemente da minha dor"




Outro episódio que é sempre lembrado quando o assunto é Zeca Torres Pequeno foi-nos contado da seguinte forma:
“Certa vez ele vinha do outro lado, bêbado que só o diabo, e nesse tempo não tinha ponte, era catraia. Ai ele queria atravessar e o catraiero devia estar do lado de cá, porque sempre tinha um de plantão. Ele chamou: Catraiero ! Catraiero ! E nada do catraiero aparecer, e tava querendo chover, e já chuviscando, parece que o catraiero tava cochilando e nada de aparecer. Ai ele pegou uma canoa vazia que estava encostada e foi remar, mas não sabia remar e a canoa começou a descer de rio abaixo. Ai ele gritou, Seu Zé da Rocha...(era um catraiero antigo que tinha aqui)...
Seu Zé da Rocha venha me salvar
a canoa vai descendo e eu não sei remar !

Pronto! No outro dia a cidade tinha mais um samba!”


Vai meu samba

Vai meu samba
Despertar aquela ingrata
Que dormindo não escuta serenata
Vai meu samba
Dizer a ela bem baixinho
Que eu vivo tão só
Sem amor e sem carinho
Você meu samba que nasceu
De um botequim
Reconheça as minhas mágoas
Ninguém sofre igual a min
A minha vida
Triste vida igual a sua
Hei de morrer cantando
E namorando a lua.
Autor: Zeca Torres Pequeno

domingo, 13 de novembro de 2011

Zeca Torres I *

Silvio Margarido andou postando em seu blog (O Reino da Detonação) os textos da revista “Registro Musical”, da qual participei junto com ele, Jorge Nazaré e Danilo de S’Acre (ou seja, o Bicho de três cabeças). E dessa postagem resultou um interessante comentário. Coisas da internet...

José da Costa Torres, ficou mais conhecido como Zeca Torres I, ou primeiro, ou Zeca Torres Grande, em oposição ao outro Zeca Torres (Pequeno). Seja como for que o chamemos, o que conta é que este acreano de Xapuri foi um dos maiores músicos da história do Acre.
Zeca Torres I integrou-se à Banda da Polícia Militar, provavelmente no início da década de 40, aonde chegou à posição de Contramestre. Seu estilo musical acompanhava a personalidade de homem polido, que não bebia, e concentrava-se na composição e execução de musicas lentas como foxes, valsas e boleros. Mas sua fama se devia à facilidade para compor e escrever musicas, preparando as pautas a serem executadas pela Banda com extrema fluência e rapidez.
Consta que certa vez, ao integrar um conjunto que iria fazer uma alvorada no Segundo Distrito, Zeca Torres e seus companheiros ficaram fazendo hora em um bar, esperando que as luzes da cidade fossem apagadas às 11 horas da noite, como era a pratica então. Em meio à conversa alguém disse que seria bom se tivessem preparado uma musica especial em homenagem à filha do dono da casa onde iriam tocar a alvorada. Ao que Zeca Torres I perguntou o nome da moça: Orieta. Dito isso, pediu ao dono do bar um papel de embrulho e por lá ficou rabiscando. Na hora marcada, os músicos atravessaram o rio e ao chegar a casa onde seria executada a alvorada Zeca Torres pediu uma lanterna e executou uma valsa inédita que ele havia composto no pouco tempo em que estiveram no bar, escrita em papel de embrulho, e que foi devidamente instrumentalizada no dia seguinte. Nome da valsa: Orieta.

Esta habilidade musical era reafirmada todas as vezes que artistas de fora do Acre vinham aqui se apresentar e necessitavam dos serviços dos músicos da Banda para o acompanhamento de seus shows. Foram várias situações em que artistas de renome nacional, ao confrontar-se com sua aptidão musical, perguntavam:
- Você é de fora do Acre?
Ao que ele respondia sempre com simplicidade.
- Não, eu sou de Xapuri mesmo, do seringal.
Em uma dessas ocasiões, em que o artista Alcides Gerard ensaiava com integrantes da Banda da Guarda Territorial, ele disse:
- Rapaz eu tô chateado porque tem um samba que eu gosto muito, mas que não veio na bagagem.
Diante disso, Zeca Torres I perguntou-lhe.
- O senhor canta esse samba há muito tempo?
- Canto.
- Como é o samba?
Alcides Gerard começou a cantarolar o samba e o Zeca Torres, assim de lado, anotava tudo em um papel. Depois instrumentou toda a composição e distribuiu pros outros músicos da banda e disse:
- Agora o senhor pode cantar seu samba.
- Mas eu não trouxe
- Pode cantar, que já ta ai.
Ai ele cantou e no fim da musica chegou pro Zeca Torres e perguntou:
- Você disse que aprendeu musica em Xapuri?
- Foi.
- Você é um gênio homem. Você vai pro Rio de Janeiro que eu vou conseguir pra você fazer umas gravações.



Com efeito, pouco tempo depois chegou um telegrama do Alcides Gerard chamando Zeca Torres pra ir ao Rio. Zeca aposentou-se e foi, mas não chegou a gravar. Acontece que na semana da gravação Zeca Torres foi assistir a um jogo do Vasco da Gama, seu time do coração, e não suportando a emoção, teve um fulminante ataque cardíaco que apagou uma das mais brilhantes estrelas musicais que o Acre já teve.**

Stefany Nascimento deixou um novo comentário sobre a sua postagem "Registro Musical":***
Olá!!
Estava fuçando por aqui e achei esse blog que por sinal é muito interessante... Parabéns!!!
Fico imensamente feliz e agradecida por essa postagem linda sobre Zeca Torres I... Sou bisneta dele e é muito gratificante ver seu nome "reconhecido" como um dos maiores músicos da história do Acre... Agradeço de coração em nome de toda a família Torres... Um forte abraço...

* Texto publicado originalmente na revista “Registro Musical”; Rio Branco, FGB-MinC, 1998;
** Artigo selecionado para a coluna desta semana com a co-participação de Silvio Margarido on-line graças ao G-Talk.
*** Pra quem quiser ir direto à fonte o link é: http://reorientando.blogspot.com/2008/11/registro-musical.html

domingo, 6 de novembro de 2011

“Guia históricamente incorreto da propaganda do Brasil”

Se o cara queria fazer propaganda de si mesmo... conseguiu. Vendeu uma penca de livros e ganhou um bocado de grana. Bom negócio, portanto. Mas, convenhamos, o meio que ele escolheu para se auto-promover beira o mau-caratismo. Terá sido então tão bom negócio assim?

Já deve estar óbvio que estou falando do livro que andou freqüentando a lista dos mais vendidos no ano passado e que só agora tive oportunidade de ler: o “Guia politicamente incorreto da história do Brasil”. O próprio site do livro anuncia gloriosamente que este livro vendeu mais de 200.000 exemplares. Ou seja, um best seller e sonho de consumo de qualquer editora. Ainda mais nestes tempos bicudos em que os tablets renovam a ameaça de que o mercado editorial esteja em crise tal como o mercado fonográfico.
E a fórmula de tanto sucesso é simples. Pegam-se alguns dos personagens e processos históricos mais conhecidos pela sociedade brasileira e os desqualificam radicalmente através de uma simplória e superficial remontagem de informações históricas. Com isso ganham-se sensacionais manchetes destinadas a promover a polêmica e, é claro, por tabela também seu autor.
Por exemplo: a FEIJOADA NÃO É BRASILEIRA e nem foi inventada pelos escravos nas senzalas sendo, na verdade, um produto da culinária européia; SANTOS DUMONT NÃO INVENTOU O AVIÃO e nem o relógio de pulso; ZUMBI DOS PALMARES ERA ESCRAVISTA; e assim por diante...


Do alto dessas manchetes polêmicas seu autor, um jornalista paranaense, surfa numa crítica ácida que o leva a conclusões inacreditáveis e por vezes muito, muito, perigosas. Talvez, se ele tivesse se limitado a tentar desconstruir paradigmas cristalizados da história nacional a partir de pesquisas aprofundadas o resultado fosse bastante interessante até. O problema é que, além da evidente superficialidade de algumas de suas abordagens, aqui e acolá lança mão de comentários “engraçadinhos”, mas completamente irresponsáveis.
Vejamos o caso que nos diz respeito mais de perto para exemplificar o que acontece também com outros temas do livro. Um dos capítulos do livro diz respeito ao Acre e ao suposto preço que teria sido pago por ele como resultado de sua anexação ao Brasil. Percorrendo o texto fica evidente que o autor, além de ter se baseado predominantemente em uma única fonte (a Formação Histórica do Acre, de Leandro Tocantins), não faz justiça à fonte citada ao distorcer boa parte de suas conclusões sem embasamento suficiente para tanto. A impressão que passa é que nem leu realmente todo o trabalho de Leandro Tocantins antes de concluir que o Acre “não vale o que a gata enterra” (para usar o dialeto local).
Os exemplos do que afirmo acima são muitos e não caberiam no espaço deste artigo. Mas, por exemplo, quando afirma que o Acre deu e continua dando prejuízo ao Brasil ignora solene e, acredito que também, propositalmente, que durante todo o primeiro ciclo da borracha o Acre deu muito lucro ao governo brasileiro se pagando muitas vezes. Nem precisaria procurar em teses e dissertações recentemente elaboradas. Tivesse seu autor consultado outro clássico da historiografia acreana como A conquista do Deserto Ocidental de Craveiro Costa, teria descoberto que o Acre se tornou Território Federal exatamente por conta da ganância do governo brasileiro em arrecadar os ricos impostos sobre a borracha que, em menos de cinco anos, pagou com sobras o que foi gasto com a indenização à Bolívia e a construção da ferrovia Madeira-Mamoré.
Mas parece que ceder à tentação de acompanhar a preconceituosa, infeliz e polêmica afirmação do Diogo Mainardi feita anos atrás no programa Manhatan Connection sobre o Acre não valer o preço de um pangaré era poderosa demais pra ser desperdiçada. Afinal este livro e sua venda milionária vivem exatamente disso: polêmicas a qualquer preço.
Outro exemplo eloqüente do tipo de falácia praticada pelo autor do referido livro nem faz parte deste. Não faz muito tempo, quando da divulgação das fotos aéreas dos índios isolados em nossa fronteira com o Peru, o jornalista fez uma crítica à veracidade da caracterização destes povos como isolados já que numa das fotos uma das meninas carregava um terçado de metal. Para ele isso seria o bastante para provar que estes índios não tinham nada de isolados...
Parece desconhecer o douto jornalista, sem entrar no mérito de sua intenção no caso, que o termo correto que se emprega atualmente para designar estes povos indígenas que permanecem sem contato com nossa sociedade é: “povos em isolamento voluntário”.
Ou seja, com isso se deixa claro que o tal “isolamento” não significa NENHUM contato, mas sim uma escolha autônoma destes grupos de não manter RELAÇÕES permanentes ou temporárias conosco, mas sem significar que contatos - que são, inclusive, muito perigosos para ambos os lados - entre índios e não-índios não ocorram eventualmente, o que nos dias de hoje - em que o assédio de madeireiros peruanos e narcotraficantes é permanente nas áreas dos isolados - seria impossível.
O perigo de tais conclusões superficiais e destinadas a atrair a atenção da mídia é que alguém mais apressado e mal-intencionado pode logo concluir: mas se estes índios não são verdadeiramente isolados então não precisam de cuidados diferenciados e tem que ser tratados como todos os outros povos indígenas do país. O que poderia ser uma verdadeira tragédia para a sobrevivência dessas populações.
Com este tipo de abordagem só poderíamos concluir que seu autor é um completo irresponsável. Mas quando ficamos sabendo que ele é egresso da redação da revista Veja, um dos veículos de comunicação mais reacionários deste país, as coisas começam a fazer mais sentido. Além do que, se o objetivo primordial do autor era se promover ele de fato conseguiu. Tanto que já foi lançado um novo livro: o Guia Politicamente Incorreto da História da América Latina. Mas, sinceramente, continuo achando que esse tipo de sensacionalismo barato acaba sendo um péssimo tipo de propaganda porque é claramente fajuto e se torna depreciativo de quem o pratica.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

“Saudações a quem tem coragem” *

Já confessei aqui que sou viciado em corrida de fórmula um. Fico acordado a noite toda, acordo cedo, faço qualquer negócio pra assistir uma corrida. Só que às vezes o preço desse vício é mais alto do que se pode supor.

No começo do ano propus fazer aqui nesta coluna, de vez em quando, uma sub-coluna sobre corridas. Mas foi uma promessa vã, nunca a cumpri. Talvez me falte traquejo para tanto. Afinal, a crônica esportiva em nosso país foi alçada à condição de arte literária da mais alta qualidade por craques como Nelson Rodrigues, João Saldanha, Armando Nogueira e, localmente, Dandão. Como poderia contar sobre corridas senão com um tanto de arte, o que talvez me falte.
Entretanto, hoje queria arriscar dividir algo que sinto e que é difícil de explicar.
Lembro-me com grande clareza daquele fim de semana. O que não deixa de ser estranho por conta de que hoje em dia mais me esqueço do que lembro. Mas nada indicava que iria ser um fim de semana diferente. A não ser pelo fato de que tinha corrida e logo em seguida, na segunda-feira, eu teria uma importante viagem de trabalho. Ia escavar cavernas no sertão das Minas Gerais. Havia, por isso, certa excitação especial naqueles dias.
Já na sexta-feira saiu a notícia e a imagem da espetacular decolagem do carro do Rubinho Barrichelo durante os treinos livres. Vi no Jornal Nacional. E o acidente foi grave a ponto de Rubinho ficar fora daquela corrida. Normal, corridas implicam em riscos e acidentes ocasionalmente. Aliás, penso que é exatamente o alto risco que faz as corridas valerem o que custam. Não dá pra negar que o insano desafio à morte perpetrado por esses gladiadores pós-modernos é o que me prende a esse fútil subproduto da indústria automobilística.
Afinal, haveria outro motivo pra correr? Poderia haver outro motivo pra morrer? Dinheiro, fama? Que nada, é óbvio que os caras correm porque o desejo de desafiar a morte é maior e mais poderoso do que a própria necessidade de preservar a vida. Porque, não sei. Parte das contradições inerentes aos humanos, talvez.



O fato é que o sábado já foi bem diferente. Eu estava assistindo a classificação na hora da batida do Ratzenberger. No instante mesmo em que ele bateu compreendi: Fudeu! A pancada, meio de frente, um pouco de lado, a cabeça pendente no cockpit, inerte, não dava margem a duvida. Acho até que me lembro de grandes acidentes anteriores em que pilotos lendários como José Carlos Pace e Villeneuve morreram. Mas nunca antes, até esse momento, senti com tanta intensidade e inequívoca consciência o travo amargo da morte.
E foi um arraso. Não só na minha cabeça, mas, ao que pude perceber, também lá em Imola. Parece que todos os pilotos sentiram como eu que algo estava muito errado. A morte rondava irresistivelmente. Era uma hora difícil de suportar. Ainda assim, o show tinha que continuar!!!! Nessas ocasiões é que compreendemos nosso verdadeiro tamanho. Porra nenhuma, subextrato de pó de bosta! Apenas mais um entre os sete bilhões de seres humanos do planeta. Não faz a menor diferença, seja famoso ou anônimo. Apenas mais um nome pros almanaques (ixê coisa antiga), pros sites e blogs, digo.
Lembro-me também que um dos pilotos que mais parecem ter sentido o peso da morte de Ratzenberger foi o Senna. Logo ele que sempre foi o mais destemido, desassombrado, o mais rápido e determinado de todos - de quantos existiram na história da fórmula um, acredito eu - acusou o golpe. Estranho. Mas, se até eu a milhares de quilômetros de distancia havia sentido, não deveria estranhar que ele, um cara meio iluminado em sua santa e insana loucura, sentisse.
Manhã de domingo, 1º de Maio. Acorrida prometia ser boa com Schumaker correndo atrás do Senna que já não tinha um carro tão bom quanto se esperava. E não deu outra. Senna na frente, Schumaker atrás, numa perseguição alucinante. Até que na curva Tamburello a pancada inesperada. Senna saiu da pista pra se espatifar meio de frente, um pouco de lado, do pior jeito, portanto, no muro. Deu pra sentir na hora de novo o que havia sentido um dia antes: Fudeu!
Mas é o Senna, nosso super-homem, imbatível, irresistível, indestrutível. Nada pode acontecer com ele, pensava eu. Mas a cabeça pendente, inerte, novamente não deixava dúvida. O locutor se esgoelava tentando encontrar algum movimento em Senna, em vão. Eu até juro que o vi se mexendo no mesmo instante em que o enlouquecido narrador. E, como ele, eu sabia então que era apenas o estertor da morte. Inevitável, ainda que inacreditável. Mas era. Eu sabia, o locutor sabia e, mais importante que tudo, Senna também sabia, com a única diferença que antes de todos nós. Ainda hoje acredito que Senna sabia desde o dia anterior que a morte estava ali pra cobrar seu caro tributo. Eu nunca mais esqueci aquele soco no estomago, o amargo na boca, o choro incontido e irresistível...



E no dia seguinte viajei pra trabalhar, como previsto. Afinal, aconteça o que acontecer o show tem que continuar. Só nunca esqueci.
E, vocês sabem, estes têm sido dias estranhos novamente. Dois fins de semana seguidos, duas mortes impressionantes: Dan Wheldon na Indy e depois Simoncelli na MotoGP. Dois caras que acreditavam no que faziam e morreram fazendo o que amavam mais que a própria vida: desafiar a morte.
Porque é assim eu não sei. Só sei que assim são as corridas. E corridas são como a vida, carecem de motivos, razões ou sentidos.
* Frase da musica “Pense e dance” do Barão Vermelho.

sábado, 22 de outubro de 2011

Pequenas histórias de quintal (II)

(ou Meu quintal, minha colonha, meu mundo)

Hoje comi, pela primeira vez, açaí do meu quintal. E tava gostoso, ó! Sinto falta mesmo é do nosso coqueiro. Fiquei triste quando alargaram a rua e tivemos que tira-lo. Preferia ele ao muro e a calçada e a rua alargada...

Foi graças ao coqueiro que a gente plantou esses Açaís. Não daqueles Açaís solteiros das matas daqui, mas os de touceira que vieram lá do Pará. Santa mistura amazônica. E ficaram bonitos nossos Açaís. Duas touceiras parrudas com muitas hastes e muitos, muitos, cachos. Terna palmeira que chora minúsculas lágrimas tão roxas quanto seus frutos e atrai hordas de periquitos galhofeiros todos os dias.
Quem ainda não quis dar de jeito nenhum, apesar de já ter também uns seis anos, foi o pé de Jabuticaba. Este veio de uma casa no Bosque onde fui por acaso e estava lá bonito, novinho, esperando na forquilha d’um pé de Jabuticaba pra lá de carregado. E a pequenina muda não só vingou como cresceu galhudo e saudável. Mas Jabuticaba que é bom mesmo, até agora nada. Alguém me disse que Jabuticaba demora mesmo muito pra dar. Mas não vejo a hora, gosto por demais de Jabuticaba e dá menos trabalho ainda que Cajá. É só espocar e pronto. Nem suja a mão.
Da mesma época, mas com um caráter oposto ao da Jabuticaba, é o pé de Carambola lá do fundo. Este é dadeiro... Não deixa de estar carregado em tempo nenhum. Ninguém dá conta. Sobra demais a tal Carambola. Até os galhos dela são engraçados: finos e encurvados pelos cachos cheios. Até parecem pedir: anda, pega uma carambolinha aqui! Diria mesmo que são oferecidas essas tais Carambolas...
Aliás, desse jeito também é a Acerola. Tão novinha quanto o pé de Araçá, mas produz muito o tempo todo. Pena que dá tanta coceira pegar essas coisinhas vermelhas que viram um suco tão bom. Basta triscar no galho e pronto. Coça, coça que só a peste. Mas tenho muita pena mesmo quando não dá pra escapar do decreto da Duy: Pega lá uma acerolinha pros meninos... Então tenho pena demais de mim...
Pra compensar, porque tudo na vida tem sua compensação, o pezinho de Aracá que falei ainda pouco, é pequeninho, baixinho, facinho de cuidar, mas dá cada Araçá parrudo e pesado que é quase uma jarra inteira de suco. E é forte o suco do Araçá. Presente do velho Francisquinho Seringueiro que mora lá embaixo do morro, depois desse igarapé que também chama Francisco.


Acho engraçado como as plantas são diferentes entre si. Tem daquelas que ficam bem sozinhas. Mas têm outras que só vivem de duas, no mínimo. E não adianta o que se faça, elas vão sempre dar um jeito pra ficar acompanhadas. Assim é a Cuité. Tão teimosa que virou no vento, parecia que ia morrer, ficou pensa, de raízes pra fora, mas tornou a brolhar. Como se ela não pudesse deixar a Cuité mais novinha do meio do quintal ficar sozinha. Eu gostei. Porque arvore bonita é a Cuité quando perde as folhas que depois renascem diretamente de seus galhos-troncos com um dos verdes mais bonitos que já vi. Além dos grandes frutos que servem pra fazer cuia de tacacá, vaso pra plantas, luminárias pra casa, tigelas pros cachorros... Dizem até que os índios usavam também pra chocalhos mágicos, mas isso eu não sei fazer.
Igual também que as Castanhas Elétricas que o velho bruxo Hélio Khoury nos deu. Eram duas mudas entrelaçadas num saco só. Plantei assim mesmo pra depois deixar apenas a maior. Mas as duas vingaram e cresceram entrelaçadas. Hoje parecem uma só e não dá mais pra tirar uma sem tirar também a outra. E, mesmo não sendo de comer, além de florar direto suaves e belas flores amarelas, a Castanha Elétrica é muito útil: serve pra não se perder na mata, pra afastar mordida de cobra, pra curar dor de cabeça, pra tirar mal pensamento, pra dar sorte e energia pra quem carrega, como ensinava sempre Seu Hélio.
E têm ainda outras que nascem sozinhas, mesmo sem terem sido chamadas, como esse pé de Cacau que nasceu bem na porta de casa. A coisa mais atrapalhada do mundo. Dá dó de tirar o teimoso. Até porque dar Cacau que é bom, até agora nada. Bem que parece ter tentado. Floriu um bocado, aquelas pequeníssimas flores do cacau e, ainda, botou uns frutinhos que foram crescendo, crescendo, mas caíram. Fora o trabalho que dá podar pra não atrapalhar a escada... O certo é que ainda não sei ao certo o que fazer com esse Cacau inxerido.
Diferente do Pinhão Roxo que, desde que cheguei por aqui, teima em ficar na porta de casa. E ainda muda de lugar. Uma hora ele está do lado de cá, cresce, dá flores e sementes e murcha e some. Tempos depois um de seus filhotes reaparece pra lá do portão. Mas nunca deixa de ficar por ali, perto da porta rondando. Ainda bem! O povo diz que é bom ter Pinhão Roxo na porta de casa, porque afasta o mau-olhado, dizem. Eu até gosto de suas flores breves e brutas, como gosto do vermelho meio verde que suas folhas tem de vez em quando. Mas gosto mesmo é de pensar que eu protejo ela no quintal e ela protege nós todos aqui em casa das maldades do mundo lá fora.
É. Faltava ainda falar das outras flores, dos passarinhos e dos bichos que chegam de repente e ficam com gente... Mas não vai dar pra falar disso tudo ainda, acabou-se o espaço pra essa história. Tem problema não, fica pra outra hora. É que, como vocês podem ver o meu quintal é um mundo vasto. Quem vê os limites de seus muros, não adivinha quanta vida ele tem e quantas histórias vivemos todos nós juntos: eu, a Duy, os meninos, as arvores e suas frutas, as plantas e seus mistérios, os bichos e seus jeitos, o pedaço de céu que nos abriga, de chão que nos sustenta, de floresta em que crescemos. Afinal, o universo inteiro cabe em nosso quintal.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Pequenas histórias de quintal (I)

(ou Meu quintal, minha colonha, meu mundo)
conforme prometido

Hoje comi, pela primeira vez, açaí do meu quintal. Não que ele ainda não tivesse dado. Pelo contrário, já deu muitas vezes, mas tirar açaí do pé e prepará-lo dá um trabalho danado. Deixa pros periquitos que todos os dias nos visitam, então. Mas, dessa vez, os meninos que passaram e pediram o açaí, além de colher e levar, trouxeram de volta dois litros. E tava gostoso, ó!

Na verdade, meu quintal é muito generoso. Tanto que, às vezes, chega a ser inacreditável. Pra você ver. Teve um dia em que Maria Duy, da janela de nosso quarto, olhava o espaço vazio entre o muro e a casa e pensou alto: “Bem que podia ter um pé de goiaba aqui. Ai eu ia poder colher da janela e comer sentada no batente.” E achando pouco o que ainda só imaginava, exagerou: “Mas tem que ser da vermelha, minha preferida!”
O tempo passou e quando ninguém mais lembrava daquele desejo passageiro de uma tarde caseira, reparamos que um pé de goiaba, caprichosamente, crescia a menos de dois metros da janela. E logo na primeira carga, devidamente colhida pela janela, comprovamos o capricho: era goiaba vermelha! Parece brincadeira, mas é verdade verdadeira... como diriam os meninos.
Eu não estranho. É um terreno bom onde moramos. Mas, ainda assim, um quintal incrustado na cidade, no meio do asfalto, da rua, do bairro antigo. De qualquer modo é uma terra boa, na qual já havia muitas moradoras quando cheguei. Como a forte Mangueira que todo ano nos dá tanta manga que faz lama e me faz muita raiva quando quebra um monte de telhas. Ou o Pau d’arco roxo que ainda é bastante jovem para um pau-d’arco. Deve ter, sei lá, 30, 40 anos? Já a Mangueira eu acho que é mais velha, teve ter lá seus 50 ou 60 anos. Mas isso tudo é achismo, porque de arvores não entendo nada. Só gosto muito.
Dessa mesma geração mais antiga eram as outras muitas mangueiras que também existiam por aqui, só neste pedacinho do meu quintal. Acredito que foram plantadas na época em que esse pedaço de floresta virou colônia agrícola, mais conhecida como Colonha São Francisco. Mas eram muitas, não dava pra ficar com todas. Ficou essa daqui do lado, a mais gostosa e viçosa de todas. Além do que a floresta também está aqui ainda, nos pés de Ouricuri, vários. Palheiras indomáveis brolhando persistentes no canto de lá... Parece que ouricuri não sabe viver sozinho e por isso aparece logo de ruma. O jeito foi deixar crescer quatro deles, arrumados lá no canto que escolheram. Aliás, como são aprumados e bonitos nossos Ouricuris. Apesar d’eu ter preguiça de roer seus coquinhos e só como deles, quando Duy corta os filetes pros meninos. Ai eu como também, de carona. Tenho preguiça de comer fruta, acho que já deu pra perceber.

Melhor é o cajá. Casquinha fininha, doce e azedinho, suculento que só. Podia dar mais cajá, mas só dá duas vezes no ano. Tem problema não. Gosto de ter a Cajazeira aqui com a gente. Certa vez conheci um lugar de pretos antigos que tinha uma Cajazeira Sagrada, imensa no meio do terreiro. Como haviam, muito tempo antes, me pedido que assim fizesse fui lá e toquei em suas raízes. Por isso e por outros acontecimentos, aquele foi um dia muito especial e abençoado. Mais tarde, uma senhora daqui, vizinha nesse perto-longe que é o São Francisco, pediu pra entrar e tirar um pedaço da casca de minha jovem Cajazeira. Deixei ressabiado, já que era pra fazer remédio. Mas ela teve cuidado e tirou só o bocado que estava precisando. Santa sabedoria desse povo mais antigo que os jovens não conseguem compreender.
Sinto falta mesmo é do coqueiro. Apesar de magrelo, desconfio que ele fosse tão velho quanto as mangueiras. Era firme e empinado nosso coqueiro. E dava bem sempre o filho da mãe. Só que desses cocos, não tinha jeito, sempre sobrava pra mim abrir, tirar água, abrir mais, comer coco verde ou maduro, dependia do dia e do gosto, mas tinha sempre. Fiquei triste quando alargaram a rua e ele teve que sair pra recuarem o muro e colocarem calçadas. Sabe como é. Uma cidade precisa de calçadas. Eu moro na cidade, o que podia fazer? Mas tenho saudade de nosso coqueiro. Preferia ele que o muro novo e a calçada e a rua alargada...

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Por enquanto...

Como já deu pra perceber, domingo passado não teve Miolo de Pote. Uma conjunção de circunstâncias impediu que pudesse postar até mesmo um texto recuperado dos arquivos que acumulo em meu novo HD externo... Fazer o quê? Não gosto de falhar, mas as vezes acontece...
De qualquer maneira, pra não deixar esse blog totalmente desatualizado trago pra cá, provisóriamente, um pedaço do texto que me escapou ante-donte e que provavelmente vai pra coluna do próximo fim de semana. Isso é... se eu conseguir diminui-lo, já que passou muito do tamanho regulamentar dos textos da coluna. Meu pequeno e rotineiro drama de toda semana.


Pequenas histórias de quintal (titulo provisório)

Hoje comi, pela primeira vez, açaí do meu quintal. Não que ele ainda não tivesse dado. Pelo contrário, já deu muitas vezes, mas tirar açaí do pé e prepará-lo dá um trabalho danado. Deixa pros periquitos que todos os dias nos visitam, então. Mas, dessa vez, os meninos que passaram e pediram o açaí, além de colher e levar, trouxeram de volta dois litros. E tava gostoso, ó!
Na verdade, meu quintal é muito generoso. Tanto que, às vezes, chega a ser inacreditável. Pra você ver. Teve um dia em que Maria Duy, da janela de nosso quarto, olhava a terra entre o muro e a casa e pensou alto: “Bem que podia ter um pé de goiaba aqui. Ai eu ia poder colher da janela e comer aqui sentada no batente.” E achando pouco o que ainda só imaginava, exagerou: “Mas tem que ser da vermelha, minha preferida!”
O tempo passou e quando ninguém mais lembrava daquele desejo passageiro de uma tarde caseira, reparamos que um pé de goiaba, caprichosamente, crescia a menos de dois metros da janela. E logo na primeira carga, devidamente colhida pela janela, comprovamos o capricho, era goiaba vermelha... Parece brincadeira, mas é verdade verdadeira... como diriam os meninos.

domingo, 2 de outubro de 2011

Duas vezes cem miolos

Foi no 12º ano de existência do jornal Página 20, em um domingo, 12 de novembro de 2006, que estreei a coluna Miolo de Pote. E numa dessas coincidências do destino, o artigo numero 200 desta coluna não coincidiu com o aniversário de cinco anos da coluna. Fazer o que? Nem tudo é perfeito nessa vida, mas decidi registrar o fato mesmo assim. Já que pra mim, de todo jeito, esta é uma marca inédita.

Quando comecei essa brincadeira de Miolo de Pote não podia imaginar que ela iria tão longe... Mas como, logo de início, peguei a mania de numerar os arquivos acabei prestando atenção ao acumulo de artigos até chegar, hoje, ao numero 200.
O que significa isso? Absolutamente nada, eu sei...
Porém, como os homens, desde o início dos tempos, gostam de calendários e gostam ainda mais de números redondos, não se pode estranhar, humano que sou, esse meu desejo de também considerar o artigo de numero 200 algo especial, como se fosse o próprio dia do fim do mundo...
Na verdade, este artigo é apenas uma oportunidade autoconcedida de pensar o que tem sido essa brincadeira séria chamada “coluna Miolo de Pote”.



Já contei aqui que o nome da coluna foi generosamente sugerido pelo Toinho Alves. Por mim o nome seria algo como “Botija de Histórias”, numa referencia à lendária botija de ouro (às vezes revelada pela misteriosa mãe do ouro) que encantava os seringueiros nos seringais de tempos idos. Mas, como bom tituleiro que o Toinho sempre foi, perguntei sua opinião... E ele me saiu com essa: porque não Miolo de Pote, já que não tem nada mais tradicional no Acre do que conversar miolo de pote numa sombra ou varanda qualquer?
De imediato gostei da idéia de tratar de coisas do interior das coisas e, ao mesmo tempo, ser tão despretensioso e descontraído quanto um bom papo furado. Era bem o que eu queria... e assim ficou sendo. Afinal, admitir a própria desimportância pode ser uma poderosa vacina contra os erros da prepotência, tão recorrente neste dias loucos em que vivemos...



Também já revelei aqui, em diferentes ocasiões, meus motivos pra ter essa coluna. Anteriormente eu havia escrito em outros jornais ou revistas, assinando colunas e/ou artigos, em caráter temporário ou permanente, e, em todas as vezes, foi uma experiência muito prazerosa. Até porque quem gosta de ler, quase sempre também gosta de escrever.
Mas, quem escreve sabe que, ao longo da vida, esse prazer, que no início parece tão inocente, vai se tornando uma necessidade, uma compulsão tão irresistível quanto respirar. Assim, confesso, escrevo porque preciso.
Além disso, conhecer a história do Acre se tornou outro vício incurável. Quanto mais leio, ouço, aprendo, maior minha vontade de contar os acontecidos desse mundo imaginário chamado Acre. Se não, aprender pra que?
E tem também as encrencas em que sempre me meto, porque simplesmente não consigo ficar quieto ao ver a história acreana sendo tratada com desonestidade. Em uma de suas geniais musicas Renato Russo disse que o mal do século é a solidão. Pois eu discordo, acho que o mal deste século e também dos passados é a vaidade. O que os homens são capazes de fazer em prol de seus próprios egos é inacreditável. Seja uma pesquisa mal feita aqui, uma coleção de documentos roubados ali, seja um sutil contrabando de material arqueológico acolá. Assim, acabei me tornando um seguidor da história-combate proposta por Marc Bloch no tempo dos Annales. Ainda que isso, às vezes, me custe caro. Fazer o que?! Como diz o outro são os “ossos do ofício”.
Finalmente, mas não menos importante, tem ainda meu apego ao que sai impresso em papel nestes tempos estranhos de internet. Desconfio que 99% do que sai na rede não vai sobreviver mais do que dez anos. É tudo muito virtual pra ser real por muito tempo. Vai que o sol decide embrabecer, provoque uma tempestade magnética e apague todos os discos rígidos do planeta... lascou-se...
Sou historiador e minha matéria-prima é o que sobrevive ao tempo. Além do que, não há nesta vida prazer comparável a encontrar aquele velho livro imprescindível para a atual pesquisa, ou a matéria de jornal que explica o que você nem desconfiava, ou ainda o documento amarelado perdido entre trocentos outros documentos onde se prova o que poderia parecer completamente improvável. Ou seja, acredito ser fundamental publicar num jornal impresso de verdade... talvez, assim, esses artigos sobrevivam para além de mim...



Só pra variar e permanecer fiel ao hábito que toda semana me atormenta na hora de fazer o artigo, acabei escrevendo demais e ainda não falei nem metade do que queria e nem lembrei de um terço das pessoas que queria agradecer... o jeito é, de novo, deixar pra próxima...

sábado, 24 de setembro de 2011

Sobre a tolerância e a fé



Parece que muito pouca gente já se deu conta, mas o Instituto Fé e Política vem fazendo no Acre um trabalho extraordinário. Sinceramente ainda não vi por ai outra abordagem ecumênica tão interessante e efetiva como essa. O que vejo, isso sim, são homens que continuam a matar outros homens em nome de Deus, pelo mundo a fora. Que tal prestar atenção, então?




Sábado passado, depois de terminar o artigo desta coluna, fui a mais uma reunião do Instituto Fé e Política. Ali estavam espíritas, daimistas, evangélicos e católicos. Nesta reunião, excepcionalmente, faltou o povo dos terreiros de matriz africana, mas não por nada não, apenas por problemas de agenda, porque eles também participam ativa e rotineiramente dos trabalhos desenvolvidos pelo Instituto.
E o clima da reunião foi, como sempre, muito bom. Afinal, estão todos diante de um grande desafio: produzir uma cartilha ecumênica que oriente o ensino religioso nas escolas públicas acreanas. Já que essa área do ensino, vamos combinar, é hoje uma bagunça danada. Cada professor passa para seus alunos o conteúdo que bem quiser, orientado apenas por suas próprias convicções religiosas pessoais. E como existem no Acre religiões majoritárias e outras minoritárias, os seguidores destas últimas acabam inevitavelmente sendo alvo de todo tipo de preconceito e discriminação.
Como o estado é laico, não deveria haver o predomínio ou o favorecimento desta ou daquela religião em escolas publicas. Este tipo de abordagem cabe, no máximo, em escolas particulares que pertencem a grupos religiosos específicos ou possuem clara e explicita orientação religiosa, caso no qual os pais já matriculam seus filhos com consciência do que eles irão aprender lá dentro.
Assim, o Instituto Fé e Política - depois de promover uma série de palestras, debates e atividades ecumênicas que conseguiu criar um verdadeiro clima de tolerância entre representantes de diferentes religiões, o que, convenhamos, anda em falta ultimamente neste mundão de meu Deus!!! – assumiu a espinhosa missão de elaborar uma publicação que possa ser utilizada como base por professores para um ensino religioso mais baseado na compreensão e no respeito pelo outro do que no preconceito.
Um processo, por si só, muito interessante porque cada segmento religioso está encarregado de preparar seu material. Com isso o próprio esforço de definir o que abordar, o que enfatizar, como superar divergências internas de cada uma das cinco matrizes religiosas envolvidas neste trabalho, está obrigando cada uma delas a olhar para si mesmo e reconhecer suas características e necessidades.
De minha parte, tenho participado deste trabalho por conta das discussões da Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras do Conselho Municipal de Políticas Culturais de Rio Branco, que acompanho não como religioso, mas como historiador. Até porque não acredito ser possível compreender a formação da sociedade local sem entender a(s) trajetória(s) dessa configuração religiosa tão caracteristicamente acreana que é o Daime.




Por outro lado, poder observar, não só a existência dessa ou daquela manifestação religiosa, mas as relações estabelecidas entre elas tem sido muito interessante. Especialmente porque essas relações históricas são reveladoras de importantes dinâmicas sociais, com suas respectivas contradições, muito antigas e enraizadas por aqui.
Afinal, o Acre já foi predominantemente católico, apesar de certa tensão permanente entre o catolicismo popular e o oficial. Da mesma forma como, desde muito cedo, várias cidades acreanas tem ou tiveram centros espíritas muito importantes, que se caracterizaram por certa discrição muito sintomática. Ou como diferentes grupos de umbanda e candomblé surgiram, desapareceram ou permaneceram vitimas de uma crônica invisibilidade provocada por uma mal disfarçada discriminação. Como, também, o Acre viu diferentes denominações protestantes ou evangélicas (como se prefira chamar) crescerem aceleradamente em tempos mais recentes, a par de muitas divergências entre elas. Ou, ainda, como Brasiléia, a cidade que viu surgir as primeiras experiências daimistas acreanas, não possuir atualmente nenhuma expressividade neste campo, enquanto que Rio Branco não só conheceu um grande crescimento de diferentes centros daimistas, como se tornou de algum modo um centro de difusão dessas práticas religiosas para o mundo todo.
Ou seja, o estudo, a compreensão e o ensino da história das religiões acreanas nas escolas pode ser um poderoso instrumento para a formação dos nossos futuros cidadãos. Desde que seja equilibrada e plural. Com isso o Acre pode vir a dar um exemplo concreto da possibilidade de vivermos numa sociedade em que a fé em Deus, ou Deuses, não seja causa de tantas guerras como as que assolam a humanidade há milênios, mas sim uma ferramenta fundamental para a paz entre homens de boa vontade.
E é por isso que, devo confessar, estou encantado com o trabalho de todos os homens e mulheres que vem se reunindo no Instituto Fé e Política. Porque, além de tudo, acredito que uma verdadeira e sincera união pode até ser rara, mas, sem duvida, haverá de ser poderosa.

sábado, 17 de setembro de 2011

A Utopia

(você lembra?)

Mensagens que chegam. Assim, inesperadamente.
Me lembram histórias antigas que ainda não ouvi.
Presto atenção, suspendo o nariz, apuro o faro,
Porque breve é o tempo em que caminhamos lado a lado.

Ouço a música nova
Que vem no vento do sul e toca
As cordas do que pressinto... agora.

“O trem da utopia há muito partiu para o céu
deixando pra trás a terra,
todas as misérias.
Para quem ficou
Restou uma dura missão:
Construí-lo outra vez.” *


Leio Thomas Morus
Que me chega em edição de bolso
E no longo espaço de apenas um vôo
Preenche com sentido o que nem ouço,
Só sinto.

Porque mesmo na pequena ilha de Utopia,
Lá entre o sempre e o lugar nenhum,
ainda existe a guerra e a religião.
E por isso mesmo me pergunto
Qual pode ser o lugar da igualdade
Onde ainda reinam a Morte e Deus.
Ou dito de outro modo,
Homens sobre homens.
Poder de um sobre todos.

Quisera ser Homero
Saber fazer de poesia
Um épico eterno
Povoando a memória
e a inconsciência dos homens
através de línguas antigas,
há muito esquecidas.
Mas sou simplesmente um contador...
só posso contar pra você
de pontas que se unem
Inesperadamente.
De repente...
tocando muita, muita gente
Simultaneamente.

Desculpe-me.
Sei que minha rima é pobre
Mas só assim consigo rimar...
Eira com beira
Esteira com peneira
Besteira... bobeira...
Asneira com lesêra...
Porque entre a risada e a arte
Ainda fico com a primeira.


Por isso não me desconheça meu amigo.
Não tô baixando nessa infinita bubuia.
Ainda trilho o rumo,
mais ou menos inseguro,
daquela impossível ilha de Utopia.
Ainda sigo...
subindo o tortuoso rio que me guia.
desde o início...

Mas estou tranquilo.
Sei que não sou o único!
Ainda tem...
você também!
Mesmo assim escrevo
Como que pra você,
como que pra ninguém,
Porque me enternece menos
o raro que o comum.
E essa é a tristeza de meu coração.
Viver a contar dessa utópica ilha
que só existe na alma do homem
e em outro tempo
e outro lugar algum.

Para um amigo,
tão sutil e imaginário
como a própria ilha
que um dia povoou
meus sonhos...


* (CD Trem da Utopia de Alvaro Santi, musica de Gedson Meira)

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Foi um Rio que passou em minha vida

(e meu coração se deixou levar...)

Esta semana, excepcionalmente, estou escrevendo este artigo num outro rio que não minha querida Rio Branco. Estou no Rio de Janeiro que me viu nascer. Vim a trabalho, como tem sido nos últimos anos, para gravar uma participação no programa “Livros que amei” que está em fase de produção e deverá ser exibido pelo canal Futura entre dezembro e fevereiro. Quando souber ao certo, aviso. Até porque, como não poderia deixar de ser, falei muito do Acre através do original olhar de Euclides da Cunha em seu “Paraíso Perdido”. Mas já vou adiantando que foi um dia de trabalho muito agradável numa antiga casa do Alto da Boa Vista, um dos lugares mais bonitos deste vasto mundo.
Ou seja, esta tinha tudo pra ser uma viagem muito prazerosa. Entretanto, nesta sexta feira, aconteceu algo que, sinceramente, eu não esperava e mexeu profundamente comigo.
É que, como sempre faço quando venho ao Rio e tenho tempo disponível, fui ao centro da cidade onde, durante anos a fio, costumava perambular em meio aquele verdadeiro formigueiro humano observando pessoas, ouvindo fragmentos de conversas e conferindo a profusão de novidades e velhidades das vitrines.
Mas, em todos estes anos, estivesse eu fazendo o que fosse, ocupado ou ocioso, sempre que vinha ao centro dava um jeito de passar num lugar muito especial: o tradicional sebo do edifício Avenida Central, que já havia sido em um passado não muito remoto, o prédio mais alto do Rio de Janeiro. Pra mim, a melhor e mais importante livraria do Rio e, por conseguinte, do mundo.
Ali passei intermináveis horas de minha vida. Na maioria das vezes sem nem comprar nada. Apenas olhando, namorando, desejando livros que um dia eu haveria de conseguir levar pra casa, nem que pra isso tivesse que juntar dinheiro por meses. Entranhou-se assim, em meu ser, o gosto pelo delicioso cheiro de papel velho, o vício incurável de respirar ácaros literários, a estranha admiração por livros empilhados em anarquia absoluta - como em todo e qualquer sebo que se preza e que constitui aquela santa confusão que tanto revela quanto esconde - mantendo viva a possibilidade de novas e surpreendentes descobertas no dia seguinte e fazendo-me voltar e voltar e voltar sempre...



Por isso amo os sebos


Porém, mal saltei da escada rolante, meu olhar buscou o lugar do sebo, naquele gesto tantas vezes repetido que se tornou quase automático, e só havia uma profusão de lojas de informática. Confesso que fiquei instantaneamente atordoado. Devia ter alguma coisa errada. Será que me enganei de entrada, devia ser a do outro lado e me confundi. Afinal já faz mais de cinco anos desde que vim aqui pela ultima vez. Dei a volta apressado na sobreloja inteira, angustiado, peito oprimido, só pra ter certeza do que eu já tinha. O velho sebo não está mais ali. Em todo o andar, só lojas e mais lojas de notebooks, periféricos, softwares, jogos para Play Station, X-box e outras tantas tranqueiras informáticas desse nosso estranho mundo virtual. Confesso que fiquei tão atordoado que acabei entrando na loja que agora ocupa o lugar do sebo e, sem ter o que fazer ali, comprei um carregador de celular pirata. Acho que foi uma pequena, surda e inútil vingança. Uma forma de não me render ao não deixar de entrar naquele, agora irreconhecível, lugar que eu tanto amara... Como se dissesse silenciosamente: vocês acabaram com o Sebo mas eu estou aqui pra continuar comprando nele... Coitada da vendedora, não deve ter entendido porque eu trazia tamanha raiva e frustração nos olhos e na voz...
Mas eu não estava mesmo disposto a me dar por vencido. Tanto que no mesmo passo em que vinha me mandei lá pro outro lado da Avenida Rio Branco. Fui pra Rua do Rosário, uma viela estreita, repleta de sobrados antigos, perto da Praça 15, que abrigava o meu segundo sebo predileto. Um sebo muito charmoso porque, se não era tão maravilhosamente entulhado como o primeiro, tinha um jirau alto e estreito onde as estantes empoeiradas costumavam guardar algumas das melhores preciosidades em forma de livros velhos que já encontrei. Este sim deveria ainda estar em seu lugar. Afinal aquela não era uma das áreas comerciais mais valorizadas do centro da cidade.
Mas pra quê? Antes eu tivesse ido embora sem espernear. No lugar deste outro sebo agora está instalada uma charmosa loja de produtos para decoração...


Onde foi parar aquele Rio que conheci tão bem? Nada aqui é mais como era antes. Compreendi então o misto de saudade e melancolia que os mais velhos costumam sentir em relação aos tempos passados. É completamente estranho e desesperador ver que o mundo que você conhece e confia, já não existe mais. Que está tudo diferente, tudo mudado pra pior. Ver que livros foram substituídos por computadores ou bibelôs. Perceber que coisas muito, muito, muito importantes foram destruídas e substituídas por absurdas inutilidades, dói.



Palacio Monroe que ficava no fim da Avenida Rio Branco e que foi demolido de forma insana, para a construção do Metrô quando eu era apenas um menino, demarcando um Rio de Janeiro que não existe mais...


Acho que, pela primeira vez na minha vida, tive a absoluta certeza de estar envelhecendo.
Decidi, então, não prolongar mais aquele suplício e fui pra estação do Metrô. Dizia-me: vou-me embora antes que piore e descubra que não há mais nada aqui que eu conheça e de que goste de verdade. Voltei então pro edifício Avenida Central pra pegar o Metrô na Estação da Carioca que fica ali do lado. Mas, nem bem botei o pé na rua da estação, ouvi um som grave e doce de saxofone. Era aquela musica linda que já foi cantada por tanta gente (inclusive o bom e velho Elvis) e mais recentemente virou tema do filme Ghost – do outro lado da vida. Meu coração deu um pulo. Não conseguia acreditar que o velho do sax continuava tocando aqui no meio da rua.
Imediatamente minha mente voltou anos atrás, quando aquele menino que subia feliz pro sebo, parava pra ouvir o negro de enormes bochechas que sopravam e sopravam musicas intermináveis num surrado sax, só pra ganhar umas poucas moedas que os passantes colocavam em seu chapéu. Quantas vezes o menino havia parado pra ouvir e ver com tristeza que aquele formigueiro humano agitado e incessante parecia nem perceber verdadeiramente a arte do velho saxofonista, que ainda assim prosseguia entoando suas longas e quentes melodias, indiferente à indiferença dos passantes apressados.
Me senti salvo, então. E, antes de descer a escada do Metrô, sorri (um sorriso de puro agradecimento) pro velho do sax e suas enormes bochechas que sopravam e sopravam “Unchained Melody”. Durante muito tempo ainda, mesmo dentro do barulhento trem do Metrô, eu segui assobiando aquela “melodia” que “libertou” e aqueceu novamente meu coração.
“And time goes by, so slowly… (E o tempo vai passando, tão lentamente...)
Lonely rivers flow to the sea, to the sea,” (Os rios só fluem ao mar, ao mar...)

sábado, 3 de setembro de 2011

Machu Picchu – Um século (III)

(ou: Mistérios da floresta na montanha)

Faz um século desde que a cidadela de Machu Picchu foi redescoberta e passou a nos inundar de perguntas e paradoxos. E o que isso a tem a ver com o Acre? Tudo indica que muito mais do que podemos desconfiar a principio.

No artigo anterior dessa série contei, com muito menos detalhes do que eu gostaria, sobre a experiência de percorrer o Caminho Inca. Uma das longas trilhas construídas pelos Incas para interligar seu vasto império. Na verdade, foi seu extenso e bem consolidado sistema de estradas, chamado como “Qhapaq Ñan” por alguns autores, que fez com que a civilização Inca fosse uma das mais extraordinárias da antiguidade americana e possibilitou que o Tahuantinsuyu se tornasse o Império das quatro direções.
Já mencionei no artigo anterior meu espanto ao percorrer o trecho do “Caminho Inca” que leva a Machu Picchu e ver a excelência e a engenhosidade com que foi construído. A todo o momento nos surpreendíamos. Aqui um túnel que possibilitava ultrapassar uma rocha enorme sem ter que fazer um extenso contorno. Acolá, um tanque de água cristalina que nos esperava no topo de um dos muitos “passos” (ponto culminante de uma montanha do caminho) para nos refrescar, como há de ter refrescado muitos “Chasquis” (os corredores que constituíam o serviço de correio dos Incas) há séculos antes de nós.



Mas, surpreso mesmo fiquei quando entramos no ultimo trecho do “Caminho”. É que, nas três horas finais de caminhada, antes de alcançarmos Machu Picchu, percorremos uma espessa floresta, aparentemente muito semelhante à floresta que nos acostumamos a conhecer por aqui pelo Acre. E depois de dois dias e meio caminhando por campos amarelos ressecados e pelas franjas dos brancos picos nevados das montanhas andinas causa um profundo estranhamento se ver em meio a uma vegetação tão verde e fechada que chega a provocar certa sensação de sufocamento.
Começamos assim a descobrir que Machu Picchu se encontra estrategicamente localizada no limiar entre dois mundos: o do altiplano e o das florestas. Alguns autores inclusive levantam a hipótese de que Machu Picchu teria sido construída por exatamente com a finalidade de coordenar e controlar povos da floresta submetidos pelo Império Inca, garantindo o acesso e o fluxo dos diversos produtos que vinham do Antisuyu para abastecer a nobreza Inca.


Para quem não está familiarizado com a história incaica, talvez seja importante ressaltar que este Império se dividia em quatro reinos, ou suyus. O Chinchaysuyu se encontrava ao norte, correspondendo ao rico litoral norte do Peru e se estendia até a Colômbia e o Equador. O Collasuyu ficava ao sul, era o maior dos quatro reinos e incluía o Lago Titicaca, tido como região mítica de onde se originaram os primeiros Incas. O Cuntisuyu ficava a oeste do Império e era formado pelas terras áridas da vertente ocidental dos Andes e pelo litoral centro-sul peruano. Já o Antisuyu ficava a leste de Cuzco (que era o centro de todo o Império) e era constituído pelas vastas florestas que se estendiam desde as vertentes orientais dos Andes (também chamada de região de Montaña) até as terras baixas amazônicas.
E foi exatamente este ultimo reino o mais difícil de ser dominado pelos Incas. Segundo a historiadora María Rostworowski foi no reinado do Inca Pachacutec (apontado também como o possível construtor de Machu Picchu) que se deu a expansão do Império na direção dos povos “Antis”, como eram denominados pelos Incas os povos da floresta. A dispersão territorial característica desses povos, os inúmeros obstáculos enfrentados por exércitos acostumados aos territórios abertos do altiplano em meio à floresta fechada, a própria resistência empreendida pelos “Antis” tornaram essa conquista extremamente difícil.




Tanto assim que “os exércitos cuzquenhos, sempre vitoriosos, sofreram na selva sua primeira derrota” (Rostworowski, 2001, pg.188). Sobre este acontecimento o cronista Cieza de León contou que as tropas incas foram dizimadas na densa floresta e poucos conseguiram voltar a Cuzco com a notícia do desastre. Como maneira de se explicar frente ao enfurecido Inca, os sobreviventes teriam inventado uma lenda: a de que haviam sido monstruosas serpentes que haviam atacado e matado o grosso das tropas. Foi quando uma velha feiticeira se apresentou para apaziguar os monstruosos animais com magias e encantamentos, depois do que os exércitos puderam se internar na floresta sem temer ser destruídos pelos monstros lendários.
Com ou sem feiticeira, Pachacutec Inca Yupanqui decidiu comandar ele mesmo uma nova expedição à região. Para tanto mandou batedores e espiões para as florestas das terras baixas com a missão de observar seus misteriosos habitantes e a frente de um grande exército invadiu a região. Entretanto, ao chegar a Marcapata, Pachacutec teria recebido noticias de uma rebelião que agitava seu Império, o que o fez retornar rapidamente a Cuzco.
Coincidentemente, ao observarmos os mapas da região entre Cuzco e o Acre, vemos que as nascentes do rio Madre de Diós se encontram muito próximas da capital Inca. E o nome Quéchua deste rio é Amaru Mayo, ou Rio da Serpente. O que pode nos levar a concluir que foi este rio a rota seguida por aquela expedição militar que teria sido derrotada por monstruosas serpentes. Até porque é obvio que um numeroso exército teria muita dificuldade em avançar por terra na região da densa floresta amazônica, tornando o rio o caminho natural para este avanço.




Além disso, muito recentemente arqueólogos finlandeses e bolivianos encontraram em Riberalta, na confluência entre os rios Beni e Madre de Diós (o velho Amarumayo), uma ruína Inca, que parece comprovar definitivamente a expansão do Império e do comércio Inca até bem próximo do Acre.
O certo é que, hoje, quando penso na rodovia do Pacífico, não consigo me livrar da sensação de que essa estrada não tem nada de novo. É como se, depois de alguns poucos cinco séculos, apenas começássemos a nos lembrar de um outro caminho, muito antigo, do qual havíamos nos esquecido.

OBS: Outras informações sobre as possíveis ligações entre os Incas e os povos da floresta, já foram disponibilizadas nesta coluna através da longa série “Do Acre aos Andes” que publiquei aqui, em 2009.

sábado, 27 de agosto de 2011

Manoel, o audaz


Um dos principais personagens da história acreana permanece como um ilustre desconhecido. Sobre ele não se sabe quase nada de concreto, apesar das muitas lendas que por aqui circulam. Espero um dia ainda poder pesquisar e escrever sobre a vida desse homem a quem o Acre deve tanto. Enquanto isso não acontece, segue um pequeno aperitivo só pra sentir o gosto.

O Grande descobridor das terras acreanas se chamava Manoel, mas não era português. Realizou seu maior empreendimento navegando águas desconhecidas, mas nunca conheceu uma caravela. Não era branco, mas caboclo escuro, quase negro. Não era europeu, mas amazônida nascido no Manacapuru. Não deixou registros próprios porque não sabia escrever, mas deixou seu nome inscrito na memória e na história da Amazônia ocidental.
À semelhança dos navegadores europeus do século XVI, Manoel Urbano da Encarnação, em pleno século XIX, se lançou no desconhecido, sempre ao arrepio das correntes, rio acima, percorrendo os vales do Purus, do Iaco, do Aquiri, do Iquiri e de outros rios, igarapés e varações para se tornar quase uma lenda.


No principio da década de 1850 a administração da Província do Amazonas nomeou Manoel Urbano da Encarnação e João da Cunha Correa como diretores de índios do Purus e do Juruá respectivamente. O governo amazonense buscava organizar e taxar a atividade dos coletores de drogas do sertão que, provavelmente, já percorriam livremente essa região desde o principio do século XIX. Além disso, Manoel Urbano tinha também a missão de percorrer os rios que cortavam a região para averiguar a possibilidade de ligação entre os afluentes do Purus e os do rio Madeira, que se confirmada poderia dar origem a uma nova rota comercial desde o sul do continente americano.
É verdade que Serafim Salgado já havia subido o Purus em missão oficial de reconhecimento, em 1851, mas foi pouco além da foz do rio Iaco, quase sem entrar em terras acreanas. Coube verdadeiramente a Manoel Urbano da Encarnação a primazia de percorrer essas terras desconhecidas estabelecendo o primeiro contato formal com os povos indígenas da região. E, diferente de outros exploradores de nossa história, Manoel Urbano passou a estabelecer com esses povos uma relação de respeito e cooperação.
Não existe nenhuma referencia à violências ou traições contra os índios ocorridas nos rios do vale do Purus nas três décadas durante as quais Manoel percorreu a região guiando cientistas, exploradores e os primeiros seringueiros brasileiros a chegar à região. Pelo contrário, enquanto Chandless se refere a Manoel Urbano como um caboclo com grande inteligência natural, Castelo Branco menciona o fato de que ele era comumente chamado pelos índios do Acre como o Tapauna Catu, o negro bom, aquele em quem se pode confiar.



Manoel Urbano era mesmo diferente. Ele não se limitou a ser explorador e diretor de índios, foi também um povoador estabelecendo assentamentos permanentes de base indígena que serviram como ponta de lança da ocupação nacional da região. Entre seus muitos filhos, Braz Gil da Encarnação e Leonel da Encarnação se fixaram próximo à boca do Ituxi/Iquiri e outros pontos do Purus. Ou seja, Manoel Urbano permaneceu durante muitos anos percorrendo essa imensa região. Não havia prático mais hábil na navegação dos rios repletos de balseiros e rebojos traiçoeiros. Não havia homem mais famoso no Purus do que o Tapauna Catu, do qual diziam ter cento e vinte anos, ou mais. É que aos poucos Manoel Urbano da Encarnação foi deixando de ser apenas um homem comum e se tornando uma verdadeira lenda nesses rios e barrancos, um mito da floresta.

sábado, 20 de agosto de 2011

Machu Picchu – Um século (II)

(ou: Mistérios de uma jovem alma)

Já não me lembro o dia exato em que cheguei a Machu Picchu. Lembro apenas que isso faz vinte e cinco anos e que foi um dia inesquecível. Afinal “naquele tempo eu tinha estrelas nos olhos e um jeito de herói, era mais forte e veloz que qualquer mocinho de cowboy.”

Acredito que 1986 foi um ano diferente para muitos brasileiros. Pra quem não se lembra, ou ainda não estava por aqui, basta recordar que este foi o ano do plano Cruzado instituído pelo Presidente José Sarney para tentar acabar com a enlouquecida hiperinflação que parecia não ter limites.
Na verdade o Brasil ainda vivia o rescaldo da enorme frustração que havia sido a derrota das “Diretas Já” e a morte de Tancredo Neves. Mas por breves momentos, o tabelamento de preços imposto pelo Plano Cruzado parecia que poderia sim resultar no fim do dragão da inflação. A tal ponto que muitas donas de casa brasileiras foram convertidas em “fiscais do Sarney” para impedir que as famigeradas máquinas de remarcação voltassem a aumentar o preço das coisas. Mas, infelizmente, durou pouco o sonho. Só o tempo que os interesses político-eleitorais demoraram para ferir de morte o tal plano econômico de forma a garantir mais poder ao PMDB do Sarney de triste memória para todos nós que lá estávamos. Porém, antes de seu fim, esse mesmo Plano Cruzado abriu uma janela de novas oportunidades que nos apressamos em aproveitar. Afinal, a gana de viver mais e mais é uma das melhores qualidades dos jovens, não é?
Acontece que nesta época a diferença entre o dólar oficial e o paralelo era imensa e só podia comprar dólar pelo cambio oficial quem saísse do país de avião. Bolamos um plano perfeito então. Como queríamos ir à Machu Picchu, eu e alguns amigos da Faculdade, a gente fez as contas para sair por via aérea do Brasil pela menor rota possível - por conseguinte, com o menor custo possível - e só a diferença do cambio já pagaria boa parte de nossa viagem.
Não deu outra. Fomos de ônibus até Foz do Iguaçu onde pegamos um avião para Puerto Stroessener, no Paraguai, e assim nos habilitamos a pegar U$1.000 cada um, pelo preço galinha morta do cambio oficial. A conseqüência imediata disso é que já começamos nossa viagem por uma rota completamente louca.
A partir do Paraguai tivemos que cruzar o norte da Argentina, pela bela região de Salta, para entrar no sul da Bolívia e atravessar este belo e pobre país até alcançar o Peru ao norte. Viajávamos em cinco. Eu, Waltinho, Tereza, Lili e Carlinha. Todos nós estudantes da mesma Universidade, mas cada um de um curso diferente, um grupo meio, digamos, exótico. Eu namorava Tereza e Waltinho namorava Lili, o que deixava Carlinha solta pra arrumar namorados ao longo da viagem e assim conseguir pequenas vantagens (como refeições por conta dos caras) em alguns dos lugares por onde passávamos. Mas, infelizmente, seria impossível contar aqui tudo o que vivemos naqueles dias extraordinários, precisaria do espaço de um livro inteiro e não de apenas um artigo para contar sobre as belezas e as tragédias de nossa encantadora América Latina. Ainda mais porque éramos jovens e, na estrada, livres. E tudo é mais bonito e mais intenso quando se é jovem e livre. Alguém duvida?



Da esquerda pra direita sentadas: Tereza, Carlinha e Lili; em pé: Waltinho e eu - Fotografados por um lambe-lambe das ruas de La Paz



Bueno. O certo é que depois de muitas peripécias chegamos à Cuzco e decidimos fazer o Caminho Inca ao invés de conhecer Machu Picchu através do trem que todos os dias ali despeja milhares de turistas de todas as partes do mundo. É que fazendo o Caminho Inca, além de conhecermos diversas ruínas ao atravessar as altas montanhas andinas, ainda poderíamos, se bem programados, chegar a Machu Picchu antes das dez horas da manhã, hora em que começam a chegar os milhares de turistas que vão de trem. E, segundo o que ficamos sabendo, era tanta gente que desembarcava na cidadela perdida dos Incas que visitá-la depois das dez não tinha a menor graça. Ou seja, tudo que queríamos era Machu Picchu só pra gente. Afinal, a ousadia parece ser outro traço indelével da juventude.
Porém, no dia anterior à viagem, exatamente na hora de alugarmos os equipamentos (já que em Cuzco se pode alugar barraca, saco de dormir e todo o mais necessário para a caminhada), as meninas arrumaram diferentes justificativas pra não ir (dor de cabeça, TPM e outras cositas do gênero). No fundo, no fundo, sabíamos, todos, que era só cagaço mesmo. Uma pena, porque decidimos ir assim mesmo, eu e Waltinho.
Já no trem conhecemos muitos outros mochileiros que iam também fazer o Caminho Inca e colamos com uma Finlandesa que viajava sozinha por nome Irene e um cucaracho brasileño, que estava a tanto tempo na estrada que já nem conseguia mais falar português direito e se expressava misturando inglês, português e espanhol. Um novo e ainda mais exótico grupo de quatro pessoas que nos três dias seguintes se ajudaram a vencer a altitude, o cansaço extremo, o frio que congelava nossos ossos. Afinal, a capacidade de fazer grandes e sinceras amizades de repente, também parece ser uma capacidade fácil e natural quando se é jovem.
Ainda bem, porque logo descobrimos que o trem não parava pra quem fosse fazer o caminho Inca poder descer. Ou seja, teríamos que nos jogar do trem em movimento ao chegar o km 88 (nunca mais esqueci). Assim, desde o início ficou claro que se não ajudássemos uns aos outros aquela aventura poderia não terminar bem. E assim foi feito. Três dias uns carregando a mochila uns dos outros quando o esgotamento batia, mas também trocando impressões e sensações sobre este caminho que é uma das mais fascinantes experiências que um ser humano pode viver.



Perigoso trecho do Caminho Inca (Foto Sergio Neves - AE)


Vocês não imaginam a beleza das montanhas e picos nevados que atravessamos então. Os Incas haviam sido tão caprichosos ao construir seus caminhos, que chegaram à sofisticação de trazer pedras brancas de muito longe só para pavimentar o caminho em meio às rochas negras e garantir que seus correios pudessem transitar dia e noite com facilidade. Túneis, fortalezas em ruínas, pontes suspensas, escadas esculpidas nas pedras, fontes de água cristalina no cume dos “passos”, enfim... Não se pode ter uma idéia completa da grandiosidade e da engenhosidade dos Incas só visitando Cuzco.
Mas, por outro lado, não posso mentir, não é fácil não. É muito, muito, difícil caminhar aos quatro mil metros de altitude já que o ar é extremamente fino e o oxigênio parece não fazer parte dele, ao mesmo tempo em que as pernas muitas vezes insistem em não suportar o peso do próprio corpo, tamanho o cansaço.
Em compensação, é indescritível a felicidade que se sente ao, depois de longos e penosos três dias, chegar à Porta do Sol e vislumbrar do alto, pela primeira vez, Machu Picchu. Só posso dizer que é como se naquele momento pudesse finalmente ver - não com os olhos do corpo, mas com os olhos do espírito - o poder e a eternidade em forma de montanhas e mistérios inesgotáveis. Beleza e encanto em sua expressão mais pura. Afinal, a vida é mesmo mágica diante de olhos jovens. Ou alguém não acredita???




Vista de Machu Picchu desde a porta do sol (foto de Sergio Neves - AE)