quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Eram os Deuses Arqueólogos? (II)

A pesquisa arqueológica que vem sendo realizada no Acre continua demonstrando vícios de origem que comprometem fortemente a credibilidade de seus resultados frente à comunidade científica. Apesar de possível, a essa altura uma correção de rumos parece de todo improvável, o que é verdadeiramente uma pena.


Há algum tempo atrás publiquei aqui nesta coluna uma síntese do trabalho que vem sendo desenvolvido por equipes multidisciplinares na região do norte da Bolívia, mais especificamente nas regiões do Llano de Mojos, Complexo de Baures e Itenez.
No artigo “As Zanjas Circundantes da Amazônia Boliviana e a paisagem cultural pré-histórica”, publicado neste jornal em 20 de julho do corrente ano, menciono como um dos aspectos mais notáveis e positivos daquela pesquisa o fato de que seus autores não tentam de antemão determinar a origem, a natureza e as funções dos sítios arqueológicos com estruturas de terras. Pelo contrário, levantam mais de uma dezena de hipóteses para possíveis utilizações de estruturas de terra geométricas, que também caracterizam aqueles sítios, à semelhança do caso acreano, bem como buscam informações sobre seus métodos construtivos, vinculação cultural e correlações regionais.
Exemplo radicalmente distinto do que temos visto nas pesquisas que vem sendo realizadas aqui no Acre e amplamente divulgadas na imprensa local e internacional. Em nosso caso os pesquisadores envolvidos escolheram o caminho de afirmar teorias deterministas em que suas hipóteses se sobrepõem às informações efetivamente obtidas pela pesquisa.
Por exemplo, no 2º Encontro Internacional de Arqueologia Amazônica – EIAA, recentemente realizado em Manaus, a coordenadora do projeto ora em andamento no Acre, Denise Schann, se esforçou para caracterizar que os sítios geométricos do Acre, que ela também chama de geoglífos, mesmo sem explicitar porque, tinham função eminentemente ritual, cerimonial, simbólica. Entretanto sua apresentação falhou redondamente por não reunir informações suficientes para embasar sua abordagem, pelo simples motivo que não as tem e, ao mesmo tempo, vem se recusando sistematicamente a considerar informações obtidas por outras equipes de pesquisa que não a sua.
Ora, é preciso considerar que é perfeitamente possível que os sítios geométricos do Acre tivessem função cerimonial ou simbólica. Mas também é bastante provável que tivessem outras funções, muitas das quais já foram aqui nesta coluna fartamente mencionadas, tais como: estruturas defensivas, agrícolas, hidráulicas, etc. Não é possível, portanto, no atual estágio das pesquisas, afirmar de forma taxativa que os sítios acreanos foram isso ou aquilo.
Eu mesmo já mencionei aqui a referencia que o relatório de William Chandless, o primeiro a descrever esse tipo de ocorrência no Acre em meados do século XIX, faz ao uso destes círculos de terra na realização de festas pelos grupos indígenas que ele contatou durante sua viagem de mapeamento do rio Acre. O que claramente remete a um uso ritual.
Entretanto, não é possível ignorar informações de outros viajantes e exploradores bolivianos, peruanos e europeus que se referiram às aldeias fortificadas entre os índios Tahuamanu dos rios Abunã e Madre de Dios. E nem, tampouco, afirmações de pesquisadores respeitados como Ondemar Dias Jr, que foi o primeiro a encontrar e pesquisar os sítios geométricos do Acre, que menciona em seus trabalhos a ocorrência contemporânea entre índios Kurina de estruturas de terra utilizadas para fins agrícolas.
Assim, Denise Schann se contenta com uma única referencia de Antonio Pereira Labre, explorador que percorreu as terras acreanas no final do século XIX – portanto, bem depois de Chandless, quando os seringais já se espalhavam pelos rios acreanos e a ocupação indígena da região já estava sensivelmente conturbada – no qual ele narra o encontro com índios Araona (que na época ocupavam parte das terras do vale do Acre, mas hoje só existem na Bolívia) no qual observou que eles cultuavam deuses que tinham formas geométricas. Pronto, foi o bastante para que a pesquisadora sugerisse de forma categórica que os sítios geométricos do Acre tinham uma função eminentemente ritualística de culto à deuses também geométricos.
Curiosamente, há cerca de oito anos atrás, baseado em diversos documentos e informações étnicas, lingüísticas e arqueológicas levantei a hipótese que os sítios geométricos do Acre estivessem relacionados à povos de língua Aruak, o que, aliás, também é aventado por pesquisadores que vem trabalhando na Bolívia. Mas isso não impediu que o arqueólogo finlandês Marti Parssinen, um dos pesquisadores associados à Denise Schann, questionasse minha abordagem dizendo que os dados ainda não eram suficientes para uma afirmação dessa natureza e importância.
Mas não me surpreenderia que Marti Parssinen também não assinasse em baixo da afirmação superficial de Denise Schann, já que ele, em uma demonstração de absoluta coerência científica, não usa o termo geoglífos para os sítios acreanos - termo que, aliás, já vem sendo questionado por vários pesquisadores da comunidade internacional, como eu avisei que iria inevitavelmente ocorrer – mas sim a denominação “earthworks” que equivale em inglês à denominação “estruturas de terra” utilizadas por Ondemar Dias Jr desde seus pioneiros trabalhos da década de 70. Da mesma forma que Marti Parssinen, não ignora em seus artigos as datações que obtivemos para os sítios do Acre, nas pesquisas realizadas entre 1992 e 2002, que recuam sua construção e ocupação até três mil anos atrás.
Muito diferente do que Denise Schann faz, já que ela prefere ficar com uma única datação obtida em um contexto arqueológico perturbado, para afirmar que os sítios acreanos tem 1.000 anos, simplesmente porque isso se encaixa melhor à sua teoria de ocupação da Amazônia, que praticamente ignora uma possível ligação dos sítios acreanos com os sítios do norte da Bolívia, mas inclui uma improvável conexão com o Xingu (e com grupos de língua Aruak, é bom que se diga), onde o norte-americano Heckenberger, que atualmente é o arqueólogo da moda no Brasil, faz pesquisas. O que é estranho, apesar de sintomático. Começo a desconfiar que haja uma inusitada conexão entre antigos deuses geométricos e certos deuses arqueólogos, donos de uma insuspeita capacidade de desvendar segredos e mistérios do nosso passado, num empolgante enredo mais digno de um novo filme de Indiana Jones do que de uma pesquisa científica consistente.

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