domingo, 7 de novembro de 2010

Bolívia: A Balada de Bruno e Bernardino

(1ª Parte)*

Há algum tempo publiquei aqui nesta coluna uma das mais importantes passagens da história acreana. O Combate do Igarapé Bahia - vencido pelos bolivianos, teve como resultado a fixação da fronteira onde hoje estão Brasiléia e Cobija - cujo personagem central foi um índio Ixiameño chamado Bruno Racua, aquele mesmo da escultura em bronze que até hoje parece atirar flechas incendiárias sobre nós brasileiros.Entretanto, enquanto procurava imagens na internet para ilustrar o artigo, achei um texto que contava a história de um outro líder morto no massacre ocorrido em Porvenir, em 2008, entre os partidários de Evo Morales e o Governador de Pando Leopoldo Fernandez. A história de Bernardino Racua, bisneto de Bruno, tampouco deve ser ignorada ou esquecida, por isso peço licença ao seu autor para trazer este belo texto para cá, em livre tradução do espanhol.

A propósito do massacre de Porvenir,
uma homenagem ao Povo Takana.
por Pablo Cingolani

Os Takana eram os senhores da selva. Há muitos estudos etnohistóricos que provam sua gravitação e influencia. Elcuai, o líder do povo, os guiava sempre em busca de Caquiawaca, a montanha encantada, a qual “Se vê, mas nunca se pode chegar”. Jawaway é o dono dos animais, especialmente dos que andam em bando e servem como alimento: é necessário sempre pedir sua permissão e honrá-lo, já que, de outra maneira, as cutias e os porcos desapareceriam e se poderia passar fome.


Os Incas de Cuzco respeitaram a cultura dos Takana. Moradores da selva baixa que cobre os vales dos grandes rios que desembocam no maior de todos (o rio Béni) foram intermediários entre os recém chegados desde as terras altas e outras nações e povos das terras baixas. Os Takana viviam na porta de entrada de um grande Reino. Os Moxo eram um estado exemplar que se estendia pelas planícies de inundação. Viviam ali centenas de milhares de pessoas que haviam desenvolvido um singular complexo de manejo das águas, que permitiu o surgimento de uma potente economia agrícola, que se traduziu em prosperidade para toda a gente. E uma fama que se estendeu, para além dos pântanos e das montanhas.
Guamán Poma, conta como o Inca Uturunco - o Rei Jaguar – não só trouxe a folha de coca das selvas para disponibilizá-la nos Andes, mas também que se casou com uma princesa Takana, ou Moxeña, quem sabe. O certo é que, nesses tempos, havia algo que agora não há, ou se esqueceu ou se perdeu entra a confusão e o horror que chegavam: uma relação bastante harmônica, uma comunidade respeitável, entre os povos das terras altas e seus pares das terras baixas. A palavra guerra recém apareceu nas crônicas quando quem as escreveu, chegaram desde a outra margem do Oceano para invadir este lugar do mundo.

* * *

Foi uma noite com fogo, com coca e bebida em Ixiamas. Noite negra na Amazônia, noite de fim do mundo, faz anos, quando se chegar a Ixiamas se fazia distante, difícil. A conversa fluía, o companheirismo também, no compasso dos grilos e das rãs. Até que alguém empunhou um violino, ou um violão, e começou a tocar e, sobretudo, a cantar. Conhecia os “buris” de Apolo, de santa Cruz do Vale Ameno, desses lados do Machariapu e do Tuichi. Porem estes cantos, ou essa musica, o metal da voz, seu tom, eram outra coisa, de outra dimensão, outra profundidade. Jamais havia escutado algo tão triste, porém, ao mesmo tempo, tão altivo, tão orgulhoso e tão sentido.
Quando encarei o homem para perguntar-lhe o que estava tocando, me respondeu: musica Takana. Quando quis averiguar seu nome, proclamou, como uma flecha cortando o vento da história e do esquecimento, que se chamava Racua e que um antepassado seu estava enterrado no cemitério do povoado.

* * *

Os espanhóis tiveram que enfrentar os Takana que estavam confederados para impedir que se apoderassem de seu território. A guerra cruel, como a chamou o próprio Adelantado Alvarez de Maldonado, que fizeram os nativos aos usurpadores durante a segunda metade do século XVI, foi um brilhante exemplo de resistência anti-colonial bem sucedida. Ali surgiram os primeiros nomes dos heróis que a história oficial sempre negou: Tarano, o Cacique dos Toromonas; Arapo, o Cacique dos Uchupiamonas. Todos eram Takana e tão valentes e ardorosos no combate que impediram que os invasores se assentassem no sul da Amazônia por muito tempo. Na realidade, nunca conseguiram.
Vencidos pelas armas, mandaram os religiosos. Os frades exploraram o lado sensível e bondoso dos habitantes da selva e os seduziram, começando um trabalho de “zapa”, que persiste até hoje, para abolir sua cultura, para que esqueçam sua Caquiawaca e seu Jawaway, para que deixem de ser eles mesmos. Fundaram missões – em 1721, a de Ixiamas – para reduzir-los, civilizar-los e controlar-los. Os Takana não foram dóceis como pretendiam os missionários e se refugiavam nos montes, porém, sobretudo, morriam com as doenças que lhes inoculavam os estrangeiros.



Assim passaram anos, décadas, séculos, até que a selva mudou, dessa vez de verdade e para sempre: ao norte do mundo, uma árvore da Amazônia havia adquirido um valor inusitado para seu uso e para fabricar diversas coisas para os povoadores desses países que se situavam a milhares de quilômetros da selva. Como parte do devastador efeito do mercado mundial, que sempre esteve de uma ou outra maneira globalizado pelos impérios da vez, a febre pela extração do caucho conduziu milhares de forasteiros para a floresta. Esta ação se traduziu em pesadelo que até hoje segue ocultado e silenciado e pior, persiste, como demonstram os fatos vividos em Porvenir faz alguns dias: o primeiro grande momento de genocídio dos povos indígenas amazônicos. Os Takana não escaparam a essa fúria e ambição capitalista que “resultou em perseguição (correrias) aos indígenas, que praticamente foram exterminados por matanças, trabalho escravo e mudança de famílias inteiras aos seringais do norte” (Díez Astete, Álvaro e Murillo, David: Pueblos indígenas de Tierras Bajas. Caracteristicas principales. MDSP-VAIPO-PNUD, La Paz, 1998, pág.201).
(Continua...)





* Publicado em 13 de setembro de 2008 em www.bolpres.com

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