Os 100 anos da Revolta Autonomista do Juruá
Apenas seis anos depois de encerrada a Revolução que conseguiu conquistar o Acre para o Brasil, as vozes da revolta popular voltaram a se espalhar pelos rios acreanos. Desde as margens do Abunã até o Moa, a indignação era geral e conduzia a sociedade a buscar soluções mais efetivas para o eminente conflito que se anunciava.
Com a criação do Território Federal os acreanos se tornaram cidadãos de segunda categoria em seu próprio país. Não possuíam o direito de escolher seus governantes, não tinham representatividade no Congresso Nacional e não votavam sequer para compor o poder legislativo (que ainda não existia) no Território. O direito do voto, base do sistema republicano, era totalmente vedado aos acreanos. Tratava-se de uma das regiões mais ricas do Brasil no início do século e paradoxalmente era uma das pobres, já que era impedida de arrecadar os impostos sobre a borracha e vivia das esmolas de um governo que não reconhecia suas necessidades mínimas. Assim, tudo o que os acreanos queriam era seu legítimo direito à autonomia política e econômica, pressuposto básico do federalismo republicano. O acreano era ainda um brasileiro renegado pelo Brasil, tal e qual à época em que ainda estava sob domínio da Bolívia.
Parodiando Euclides da Cunha que escreveu nessa mesma época que “o seringueiro era um homem que trabalhava para escravizar-se” poderíamos dizer que o acreano era um homem que lutava por uma nacionalidade que o negava.
Foram por isso formados em todo o Território Federal do Acre, de alto a baixo dos diversos vales, clubes e grupos políticos que tinham como bandeira a autonomia através da transformação do Acre em estado. Era preciso fazer valer a vontade soberana desse povo guerreiro que por suas próprias forças tornara-se parte do Brasil.
E a situação para deflagrar o movimento de revolta contra o governo federal surgiu com a nomeação e chegada em 1910 de um novo Prefeito Departamental no Alto Juruá. Entreguemos a palavra ao cronista-mor dessa história.
“A 1º de maio de 1910 chegava a Cruzeiro do Sul o Sr. João Cordeiro, nomeado prefeito do Departamento. Já então lavrara em todos os espíritos profundo descontentamento pela indiferença do Poder Legislativo para com o Acre. A chegada do novo prefeito e alguns atos seus, que a população recebeu com desagrado, acirraram os ânimos dispostos à insuflação de idéias subversivas.
Preparou-se abertamente, quase às escancaras, o movimento sedicioso, com a cumplicidade formal da força federal sob o comando do capitão Fernando Guapindaia, o apoio unânime de todos os proprietários, dirigidos pelo venerando Francisco Freire de Carvalho e, por fim, do próprio prefeito, que aderiu à sublevação na impossibilidade, talvez, de a ela resistir com sucesso, consentindo em retirar-se e até comprometendo-se a defender, no Rio, a revolução, perante o governo federal.” (Craveiro Costa, 1973, pág.164)
Foi com isso, no dia 1º de Junho, deposto o Sr. João Cordeiro, assumindo o governo do Departamento do Alto Juruá uma Junta Governativa composta por Mâncio Rodrigues Lima, João Bussons e Francisco Freire Carvalho integrantes do Partido Autonomista em nome do qual tomavam o poder.
A Junta Governativa divulgou então um manifesto a todo o povo do Acre, onde se revelava claramente que essa revolta pretendia ser de todo o Território Federal e não apenas do Juruá. Como maior demonstração desse objetivo, os revoltosos proclamaram como governador do estado do Acre o Cel. Antonio Antunes de Alencar, acreano histórico que havia lutado no rio Acre ao lado de Joaquim Vitor, Rodrigo de Carvalho e Plácido de Castro. Esperavam assim obter apoio dos seringais e núcleos urbanos do Alto Acre, o mais rico e desenvolvido dos três departamentos. Para completar sua articulação política, os revoltosos do Juruá indicaram o Purus (Sena Madureira) como a sede do novo governo do estado unificado do Acre. Estava desenhada a proposta de acordo imaginada pelo Juruá para unir toda sociedade acreana em torno do objetivo comum da autonomia estadual, que foi amplamente divulgada através de um documento endereçado a toda nação brasileira. O Juruá tornava-se notícia no cenário da política nacional do governo do Presidente Nilo Peçanha e ganhava as páginas da imprensa internacional.
Entretanto, a Junta Governativa, ao lado de outras medidas, tomou a decisão de proibir a exportação da borracha do Juruá enquanto não se chegasse a solução do conflito. É evidente que essa medida desagradou enormemente às praças de Manaus e Belém, grandes beneficiadas pela exportação da borracha amazônica, que passaram a articular uma contra-revolução.
Manaus tornou-se o principal palco dos acontecimentos e da decisão sobre os rumos da revolta autonomista. “O emissário do Juruá, Sr. João Bussons, fraternizou com o comércio, com o comércio fraternizou o governador aclamado, e o comércio passou a custear largamente as embaixadas de conciliação aos Departamentos. Era o primeiro golpe. Os panos mornos de um acordo foram estendidos sobre o movimento revolucionário”. (Craveiro Costa, 1973, pág.170)
Ao mesmo tempo em que tentava costurar com o governo federal um acordo que pusesse fim ao conflito que tanto desagradava aos poderosos aviadores e exportadores, Antonio Antunes de Alencar tratava de isolar o Juruá fornecendo informações desencontradas de resistência do Purus em aderir ao golpe e da inviabilidade de contarem com o Alto Acre. A traição infiltrara-se no movimento sem que disso se dessem conta os revoltosos.
Enquanto isso Cruzeiro do Sul convivia normal e pacificamente com o governo da Junta Governativa do Partido Autonomista. Afinal de contas, era verão e dificilmente o governo federal teria condições de enviar tropas para o Alto Juruá. A chegada do Sr. João Bussons trazendo uma proposta de conciliação costurada por Antonio Antunes foi atentamente analisada pela Junta Governativa que decidiu acata-la, apesar da discordância de alguns autonomistas de peso. Um acordo político parecia bastante provável então.
Até que, inesperadamente, na noite de sete de setembro de 1910 as tropas do quartel da força federal em Cruzeiro do Sul comandadas pelo Capitão Guapindaia atacaram a pequena guarda revolucionária composta por 30 homens. Os combates duraram toda a noite e às oito horas da manhã o tiroteio foi interrompido pelo armistício e capitulação da pequena força sediciosa. Um homem estava morto e havia dois feridos! Vítimas da indiferença nacional e dos interesses do mercado internacional da borracha.
Estava encerrada a revolta que, durante cem dias, tornou real o sonho acreano de poder se auto-governar. Não poderiam imaginar os autonomistas acreanos da época que a luta teria que prosseguir durante mais de cinquenta anos ainda antes que o Acre fosse transformado em estado e os acreanos pudessem enfim exercer a tão desejada autonomia.
Mas, menos de um ano depois o Juruá voltaria a depor o Prefeito Departamental indicado pelo governo federal, do mesmo modo como fariam os habitantes do Purus ainda em 1912. Ou seja, apesar das traições de que foi vítima, o sonho acreano de conquistar sua autonomia política continuaria a ser expresso em sua luta... através dos tempos...
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