Um século de lembranças/esquecimentos*
É muito difícil explicar o que permanece na memória de um povo e aquilo que cai no esquecimento sem motivo evidente. Como é ainda mais difícil tentar explicar porque algumas histórias ficam enquanto outras tantas, às vezes muito importantes, desaparecem como se nunca houvessem existido. Eu mesmo não sei.
Ao procurar informações sobre a fundação da antiga vila Brasília, atual cidade de Brasiléia, nossa ilustre aniversariante centenária, tomei conhecimento de que ela teria surgido de uma certa briga que aconteceu em 1910 entre um juiz designado para aquele termo judiciário e um seringalista. Pelo menos é isso que consta da nossa “história oficial”, como gostam de dizer alguns historiadores.
Confesso que fiquei encafifado então, porque a história que conheço é outra, bem distinta dessa. Penso que Brasiléia surgiu de uma seqüência de acontecimentos, aparentemente desconexos, que ao fim resultaram na inevitável fundação de uma cidade exatamente neste local. Nem pra lá, nem pra cá, mas precisamente ali às margens do Igarapé Bahia.
Brasiléia começou a surgir, ainda em 1895, durante o trabalho da comissão demarcatória binacional. O trabalho desta comissão, que era chefiada pelo General Thaumaturgo de Azevedo representando o Brasil e pelo General Pando em nome da Bolívia, resultou, de certa forma, no surgimento da “Questão do Acre”.
Se, por um lado, foi nesta comissão que o Gen. Pando tomou conhecimento da ocupação das terras bolivianas do Purus e do Acre por milhares de brasileiros e a consequente perda de uma enorme fortuna em impostos sobre a borracha por parte de seu país, por outro lado, foi nessa ocasião também que o Gen. Thaumaturgo soube que se a demarcação da linha imaginária acertada no Tratado de Ayacucho (1867) fosse realmente efetivada milhares de brasileiros que habitavam o Acre seriam abandonados pelo governo brasileiro e estariam submetidos ao governo boliviano.
Diante disso o Gen. Thaumaturgo se negou a proceder a demarcação, denunciando o absurdo daquela situação ao governo. Entretanto, para sua surpresa, numa daquelas passagens da história brasileira que são difíceis de explicar, o Ministro das Relações Exteriores do Brasil, mandou ignorar a população que ali habitava e realizar a demarcação como prevista no tratado.
E, num gesto de grande ousadia, raro para um militar, o Gen. Thaumaturgo de Azevedo se recusou a cumprir aquelas ordens que trariam grandes ameaças à soberania nacional e, principalmente, aos brasileiros responsáveis por tudo o que havia sido construído no Acre até então, e se demitiu da comissão demarcatória.
Em seu lugar o governo brasileiro, contrariado, nomeou seu ajudante o Cel. Cunha Gomes que, junto com o Gen. Pando (agora consciente dos problemas ocasionados pelo abandono de suas fronteiras nacionais), concluiu a demarcação. Surgia assim a famosa “Linha Cunha Gomes”, resultado de um ato de covardia do governo brasileiro, como cansaram de denunciar os jornais da época, e que seria o estopim da Revolução Acreana, exatamente como havia previsto Thaumaturgo de Azevedo.
Pouco tempo depois, a partir de 1899, o Acre se tornou palco de uma série de conflitos e confrontos entre brasileiros e bolivianos. A noticia da assinatura do contrato de arrendamento do Acre entre a Bolívia e o Bolivian Syndicate precipitou os acontecimentos e fez com que se desencadeasse uma verdadeira guerra em 06 de agosto de 1902.
E, nem bem tinha começado a guerra, ainda restrita à Xapuri e à Volta da Empreza (atual Rio Branco), quando Nicolas Suarez, o poderoso proprietário dos maiores e mais ricos seringais bolivianos, decidiu armar seus homens e criou a famosa Coluna Porvenir para resistir contra os brasileiros já que o exército boliviano parecia incapaz de fazê-lo.
Assim, em 10 de outubro de 1902, aconteceu o inevitável. Brasileiros comandados por Manuel Nunes Tavares e bolivianos liderados por Maximiliano Paredes se enfrentaram às margens do Igarapé Bahia num dos maiores confrontos registrados pela história da Revolução.
Infelizmente, o resultado deste combate foi trágico para os brasileiros que foram massacrados nas trincheiras que cercavam o barracão do Bahia, incendiado pelas flechas do índio Ixiameño Bruno Racua (aquele mesmo da estátua que até hoje enfeita uma das praças de Cobija).
Mas, logo, os brasileiros se recuperariam desta derrota e avançariam de vitória em vitória até tomar Porto Acre, em janeiro de 1903, expulsando os bolivianos definitivamente das terras acreanas. Apesar da reação esboçada pelo Gen. Pando, agora Presidente da Bolívia, que assumiu pessoalmente o comando das tropas bolivianas para enfrentar o Cel. Plácido de Castro na frente de batalha do Tahuamanu.
Entretanto, nunca mais os brasileiros dominariam a outra margem do Igarapé Bahia, que desde o combate ali travado, se tornou a verdadeira e real fronteira entre os dois povos em luta.
Está claro, portanto, porque o Gel. Pando, pouco depois de terminada a Revolução Acreana, ainda em 1906, se preocupou em fundar ali, no local do combate de triste memória para os brasileiros, uma cidade que se chamou inicialmente Puerto Bahia e, mais tarde, a partir de 1908, Cobija. Ele tinha muito viva em sua memória, não só os acontecimentos do período da Revolução, mas também as dificuldades da demarcação da Linha Cunha Gomes. O que revelava ser imprescindível ocupar essa região, ou seria impossível evitar futuras perdas territoriais.
Parece claro, então, que seria inevitável também a fundação de uma cidade brasileira como contraparte à Cobija. Faz parte da dinâmica fronteiriça. A criação de uma cidade de um lado da fronteira sempre acaba levando à criação de outra cidade do outro lado da fronteira.
Esta característica pode ser lida nas entrelinhas daquela “história oficial” mencionada no principio. Quando dá conta de que, depois da expulsão do seringal Nazaré, o juiz e o escrivão “(...) dirigiram-se a Cobija (...) onde foram hospedados por patrícios ali residentes(...). Conduzindo às costas todo o material e arquivo do juizado, os dois funcionários causaram hilaridade às pessoas que os viram atravessar as ruas da cidade boliviana. Dizia-se (...) que a justiça do 3.° Termo andava num ‘jamaxi’, de seringal em seringal, esmolando hospedagem.
Vários brasileiros residentes em Cobija, feridos no seu amor pátrio não puderam ficar indiferentes a esse acontecimento (...). Organizou-se, então, uma comissão (...) com o fim de adquirir o local para fundação de uma vila(...).
Ultimados os preparativos no domingo de 3 de julho de 1910, às 7 horas, cerca de 100 pessoas, entre homens e mulheres, deram início à derrubada da mata sob ardoroso entusiasmo.” (in Enciclopédia dos Municipios Brasileiros, IBGE)
Ou seja, devemos reconhecer que, de certa forma, Brasília/Brasiléia foi resultado muito mais do Combate do Igarapé Bahia e da Fundação de Cobija do que propriamente da briga do juiz com o seringalista. Mas, convenhamos, não deixa de ser muito interessante o fato de que a história da fundação de Brasiléia que ficou na memória de seus moradores, tenha sido apenas a história brevemente descrita acima. Ao mesmo tempo em que foram completamente esquecidas todas as outras histórias que antecederam a criação da cidade e que, em ultima instância, a explicam. Até porque não podemos desconhecer que Brasiléia, por força desse destino de fronteira, demarcou em nossa história exatamente onde terminou a Bolívia e começou o Brasil.
De que são feitas, então, as cidades? De memórias ou de esquecimentos? Ainda não sei dizer. Só não consigo me esquecer que foi exatamente na Vila Brasília que aconteceram os primeiros trabalhos com o Santo Daíme pelos maranhenses Antonio e André Costa e Irineu Serra, ainda nas primeiras décadas do século passado, uma história que também parece ter sido esquecida na atual Brasiléia. Mas essa já é uma outra história. Vamos lembrar?
*Adaptação do texto escrito para a publicação comemorativa do centenário de Brasiléia.
E eu que vivi dois anos em Brasiléia, outros tantos em Brasília (DF) - rs-, não sabia até agora qual era dessa estátua aí de Cobija...
ResponderExcluirValeu Marcos pela explanação!
Aguardo ansioso pela história do CRF, dos irmãos Costa e do Mestre Irineu.
Quando morava lá, procurei um bocado e só achei dois centros. Nenhum deles ligado à história, ou sequer à doutrina originária do Mestre Irineu.
Paz meu amigo!
Espero te ver na terça, dia 13!
Grande abraço!