sexta-feira, 23 de julho de 2010

As Zanjas Circundantes da Amazônia Boliviana e a paisagem cultural pré-histórica

Por diversas vezes, aqui nesta coluna, ao tratar dos nossos sítios arqueológicos geométricos, mencionei as importantes pesquisas realizadas por Clark Erickson e outros pesquisadores na Bolívia. Recentemente, localizei outro artigo muito interessante que trata das “Zanjas Circundantes” (que aqui no Acre tem sido chamadas de geoglífos) como elementos da Paisagem Cultural da Amazônia Sul-Ocidental, linha de pesquisa que vem sendo desenvolvida por vários pesquisadores já há muitos anos.


Desde que começou a pesquisar aqui no Acre o arqueólogo Ondemar Dias Jr. se preocupou em buscar elementos que apontassem possíveis ligações dos sítios com estruturas de terras (“geoglífos”) do Acre com outras ocorrências semelhantes em áreas próximas daqui. A partir de algumas cerâmicas arqueológicas Ondemar percebeu uma possível correspondência do Acre com o Llano de Mojos, região no norte da Bolívia que, além da cerâmica, também apresenta diversas e diferentes estruturas de terra de forma geométrica, ou não. Aliás, um assunto que já tive oportunidade de tratar aqui nesta coluna por diversas vezes.
Ou seja, este não é propriamente um assunto novo. A novidade reside no tratamento que Erickson, Alvarez e Calla – autores do artigo “Zanjas Circundantes: obras de tierra monumentales de Baures en la Amazonia Boliviana”, publicado em 2008 – deram aos sítios arqueológicos que estudaram. E que tem muito a nos ensinar na pesquisa sobre os sítios geométricos acreanos.
Ao invés de se jogarem no mar revolto das especulações, os autores citados acima se dedicam a analisar detalhadamente as ocorrências da região de Baures, vizinha ao Llano de Mojos, antes de tirarem quaisquer conclusões sobre a existência e as funções das estruturas de terra arqueológicas.
Assim, de forma bastante coerente e responsável, Erickson et all, discutem uma série de possibilidades teóricas e metodológicas de análise dos sítios com estruturas de terra quanto às suas formas, suas dimensões, sua composição arqueológica, quanto às suas associações com outros elementos da paisagem (bosques, recursos hídricos, etc.), suas datações específicas e cronologias relativas, quanto às informações etno-históricas, às nomenclaturas aplicadas a essas ocorrências, entre muitos outros aspectos relevantes.
Com isso os autores passam a dispor de um conjunto de informações e variáveis que lhes possibilitam discutir diversas possibilidades de funções para essas “Zanjas circundantes”. Desde as mais evidentes, como a sempre lembrada função defensiva, até as mais inusitadas, como a possibilidade de aprisionamento e criação de animais típicos da fauna amazônica, demarcação de territórios entre grupos coligados ou rivais, funções ritualísticas ou cerimoniais, ou manejo de água e/ou de cultivares.
Amplia-se muito, dessa forma, o campo de discussão sobre essas intrigantes e desafiadoras ocorrências arqueológicas. Com o diferencial de que as especulações e hipóteses acerca dessas diferentes possibilidades são pautadas na análise de seus elementos constituintes, ao invés do velho e perigoso apelo midiático.
E o que é ainda melhor. Erickson e seus parceiros desenvolveram todo esse extraordinário trabalho de pesquisa científica baseado na análise no que chamam de “Arqueologia da Paisagem e Ecologia Histórica”, que é assim sintetizada por eles: “(...) una visíon regional de los sítios arqueológicos incidiendo em las transformaciones causadas en el entorno tanto por processos naturales como culturales, generando um paisaje cultural a lo largo de múltiples sucesiones temporales y espaciales.” (2008, pág. 11).
Um conceito muito próximo daqueles que venho trabalhando na interpretação da arqueologia acreana como já deixei evidente aqui, em diversos artigos sobre os “Campos da Natureza” e sua relação com os chamados “geoglífos”, sobre as possíveis conexões históricas e culturais dos povos indígenas do Acre com os povos andinos e de outras terras baixas amazônicas, sobre as interpretações de nossos sítios arqueológicos com estruturas geométricas, sobre a relação destes com a etno-história acreana e amazônica, e todos os outros argumentos que já são bem conhecidos pelos improváveis leitores desta coluna.
Mas não só. Em novembro ano passado tive a oportunidade de apresentar o trabalho “Antisuyo – Aquiry – Mojos: A Longa Formação da Paisagem Cultural do Acre” na mesa temática – “Colonialidade e decolonialidade de saberes históricos em Áfricas e Américas ao sul” que aconteceu durante o III Simpósio Linguagens e Identidades da Amazônia Sul-Ocidental,- Línguas, linguagens e fronteiras e II Colóquio Internacional - As Amazônias, as Áfricas e as Áfricas na Pan-Amazônia, que foi promovido pela UFAC.
Afinal, sempre defendi aqui a tese de que a arqueologia amazônica é por demais rica e complexa para merecer que fiquemos eternamente presos aos paradigmas da velha e desgastada briga entre os defensores da Betty Meggers e os seguidores de Anna Roosevelt. Uma briga teórica-conceitual-política que já deu o que tinha que dar, sendo muito mais relevantes as novas abordagens de pesquisadores como Eduardo Neves e Clark Ericson, entre outros, dedicados, já há bastante tempo, ao estudo e interpretação das paisagens culturais amazônicas. Um belo exemplo, enfim, para arqueologia acreana que precisa mesmo reencontrar um caminho seguro e produtivo para seu desenvolvimento.

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