quarta-feira, 6 de julho de 2011

Que correntes nos prendem ao passado? (I)

(ou, As muitas correntes de Porto Acre)*

Por estes dias, em razão do que ando contando no programa de rádio “Papo ou História?!”, um amigo me perguntou por que dizem que a corrente de Porto Acre foi serrada dentro do rio Acre durante a Revolução Acreana, se teria sido muito mais prático tê-la serrado na margem do rio. Como também já tive a mesma duvida lembrei que escrevi sobre isso antes...

Há alguns anos a imprensa noticiou a surpreendente descoberta de uma grande e pesada corrente de ferro às margens do Rio Acre, na altura do Novo Andirá, já em território do Amazonas. Essa corrente de mais de setenta metros de comprimento jazia soterrada, desde sabe-se lá quando, nas barrancas do Rio Acre, sendo revelada pela alagação.
De imediato levantou-se a possibilidade de ser a famosa corrente que foi serrada em Porto Acre, durante o combate que selou definitivamente o domínio brasileiro do Acre, nos idos de janeiro de 1903. A essa noticia seguiu-se uma intensa movimentação no sentido de trazer a tal corrente para Porto Acre, independente de ser a original ou não. Até que, depois de várias tentativas e muita burocracia, uma parte dela foi entregue à prefeitura de Porto Acre e passou a integrar o acervo da Sala-Memória. E qual não foi nossa surpresa, na ocasião, ao nos depararmos, ali em Porto Acre, não com uma, mas com duas correntes que nos levaram a refletir sobre os caminhos que a história percorre durante sua construção.
A primeira era aquela corrente de ferro que concretamente jazia enrolada na porta da Sala-Memória, como que desafiando nossa capacidade de decifrar sua autenticidade. A outra, mais sutil, era uma corrente formada de opiniões, sentimentos e recordações que continuam nos chegado do passado, distante ou não, e que muitas vezes não percebemos, como se esta outra corrente também estivesse enterrada no barranco da memória e só após uma grande alagação pudesse ser reconhecida, num desafio à nossa capacidade de romper o cerrado véu do presente.


Quando chegamos a Porto Acre, para a solenidade de recebimento da corrente recém encontrada, era consenso de que não se tratava daquela famosa corrente de 1903. Segundo as informações dos antigos moradores de Porto Acre, especialmente de Seu Vicente, a corrente original tinha ficado muitos anos guardada no salão principal da Mesa de Rendas. Até que, em 1929, o governador Hugo Carneiro mandou desmontarem aquele prédio e trouxe para Rio Branco tudo o que estava lá: o piano, as telhas portuguesas que cobriam o prédio e até hoje cobrem o Palácio Rio Branco e, é claro, a histórica corrente da revolução. Dai por diante o destino da corrente original se perdeu. Dizem que uma parte dela hoje adorna a piscina de abastado senhor residente em Porto Velho, enquanto que outra parte estaria em Manaus. O certo é que não se sabe o paradeiro da corrente histórica.
Quanto à segunda corrente que mencionamos no inicio, importa saber que ela não é de ferro, mas que seus elos são formados pela própria paisagem atual de Porto Acre e pelos sentimentos de seus moradores. Qualquer pessoa que, hoje, chegue à nossa pequena cidade histórica descobre que ela ainda guarda algumas das características que possuía no início do século XX.
Se algo significativo mudou é que, em 1903, Puerto Alonso, Cidade do Acre ou Porto Acre, era uma das principais cidades da Amazônia Ocidental – era o olho do furacão onde se decidiria o destino de nosso estado - e hoje é, apenas, uma pacata cidade do interior onde os dias escorrem lentos como as águas rasas do rio Acre no verão.
Se, por um lado, isso pode causar certa tristeza naqueles que vivem de esperar um desenvolvimento que demora a chegar, por outro, nos traz a esperança de podermos ver ali preservados da sanha destruidora dos espaços urbanos, os recantos que guardam nossa história. Ou seja, Porto Acre, deveria ser hoje uma linda cidade turística que serviria, quando pouco, para nos lembrar e aos nossos filhos de tudo o que já passamos pra chegar até aqui.
Foi essa exata sensação, elo da corrente, que nos passou Seu Artur, o responsável pelo funcionamento da Sala-Memória de Porto Acre. Cuja vida é dedicada a cuidar de cápsulas de balas oxidadas, garrafas coloridas, velhos e carcomidos fragmentos de rifles usados nos combates da Revolução Acreana, sem nenhuma recompensa além da satisfação de preservar o pouco que sobrou daqueles tempos. E foi essa também a lição (outro elo) que nos deu Seu Vicente que, forçando a memória já quase apagada pelos problemas de saúde próprios de sua idade avançada, nos contou que morreram tantos homens no corte da corrente, quanto nas trincheiras do combate principal de Porto Acre. Sem conseguir conter as lágrimas e o nó na garganta que lhe assaltaram assim que começou a lembrar.



Da mesma matéria, ainda, foi forjada a indignação do jovem Veridiano que, durante a solenidade, lembrou a irresponsabilidade de alguns políticos que estiveram à frente da administração municipal que, além de demolirem os antigos prédios, foram capazes de passar o trator no local onde ainda podiam ser vistas as trincheiras onde lutaram e morreram tantos homens.
Ao final, me vi obrigado a reconhecer que ali realmente existe (resiste) uma outra corrente original, com elos mais duradouros do que ferro e que só podem ser vistos por aqueles que olham a cidade invisível que existe sob a Porto Acre atual. Uma cidade imaginária onde ainda estão intactos o Palácio de Galvez, o Chalet do Bom Destino, a Igrejinha de Ferro, o varadouro revolucionário, a corrente que um dia foi atravessada e cortada no rio Acre, as trincheiras e as muitas outras marcas de uma revolução ainda inacabada.
Talvez, ainda chegue um dia em que a corrente de ferro desaparecida e a corrente imaterial da memória estejam novamente reunidas em Porto Acre. Pois, não consigo esquecer que, existem tantos lugares - como Machu Pichu, Ouro Preto e São Miguel das Missões, por exemplo - que encontraram o desenvolvimento econômico e social na preservação de sua originalidade, que se torna impossível evitar a pergunta: Porque, afinal, Porto Acre não pode também?
Enquanto isso não acontece, só nos resta lutar pela preservação dessa outra corrente formada pelas lágrimas de seu Vicente, pela indignação do Veridiano e pela paixão do Seu Artur, por compreender que nem mesmo a passagem dos séculos é capaz de destruir a identidade íntima de um povo.

* Adaptado de artigo publicado no Jornal “O Acre”, em dezembro de 1997.

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