quarta-feira, 27 de julho de 2011

O PODER DO SILENCIO*


31 anos desde que a morte de um homem mudou o curso da história. Seu nome: Wilson Pinheiro. Um homem alto, determinado, de fala mansa e rara, mas de olhar poderoso.

Por um mês procuramos, em vão, sinais de sua voz. Nada.
Nenhum papel de pão manuscrito, nenhum documento do Sindicato, nenhuma entrevista nos jornais, nenhuma frase solta e memorizada pela multidão que seguia os passos daquele homem de evidente coragem.
Foi por vozes alheias que começamos a conhecer a história de Wilson. Sobram relatos do dia 21 de julho de 1980, quando três balas desferidas pelas costas puseram fim a sua vida. O primeiro dos líderes da floresta a morrer sem razão, por uma causa. Mas não o ultimo a pagar com a vida para que outros pudessem continuar vivendo de acordo com suas tradições culturais. Foram esses relatos da morte, da comoção popular, do enterro, da indignação, da dor e das juras de vingança, publicadas nos jornais acreanos e repetidas nas entrevistas feitas com as pessoas que participaram dessa história, que nos fizeram começar a ouvir o som da voz daquele homem calado.
Não pudemos evitar um calafrio na espinha ao conhecer a história do homem enterrado com uma moeda na boca para evitar a fuga de seus assassinos. Os signos populares são poderosos. Às vezes a sina de um homem pode ser sintetizada em um único gesto.
Não pudemos, tão pouco, evitar um enjôo desagradável ao ler matérias do jornal oficial que diziam que a culpa da malfadada “tensão social” vivida pela população acreana naqueles anos terríveis era dos agitadores, dos subversivos, dos comunistas que só queriam conflagrar a multidão para destruir a ordem vigente.
Se bem entendemos essa história, era o povo que estava tentando manter a ordem das coisas de um Acre invadido por pessoas que pouco sabiam da gente que vivia do que a floresta tinha pra oferecer, que só se interessavam por tirar o máximo possível no menor tempo possível. Quem subvertera a ordem natural das coisas havia sido o então chamado “Capitalismo Selvagem”, o Governo Militar, o Governo Biônico Estadual, para os quais só contavam índices econômicos favoráveis e um povo manso que obedecesse prontamente o que lhe era determinado. Era preciso progredir, desenvolver nosso país subdesenvolvido (outra palavra da moda na época). Afinal de contas “Esse é um país que vai pra frente” e “O Brasil, (é) o país do futuro”.
Naquela época eram eles que falavam, Wilson calava, mas agia. Usava sua enorme força vital para conduzir o povo em uma marcha pacífica pelo “empate” com o progresso. Talvez até soubesse que não podia vencê-los. Eles possuíam a polícia, as forças armadas, o capital, a justiça, tudo ao seu lado. E o povo o que tinha? Somente determinação e coragem frente à força bruta. Mas, se não se podia vencer os opressores, se pudesse ao menos “empatar” eles. E lá iam, mulheres e crianças à frente, impedir mais uma derrubada. Centenas de Wilsons, anônimos, calados, transformando suas ações em uma voz que gritava.


E, da culminância da dor, a vingança. Morte trocada. Para um Wilson morto, uma outra morte, um Nilão, culpado ou não, um deles. Era tudo que ainda podiam fazer se quisessem sobreviver. Aceitar de braços cruzados a morte de Wilson significaria a derrota e a condenação à morte de muitos outros homens de um povo submetido ao terror instituído. Existe razão possível na guerra?
As versões estão lá, para todos verem. Quem perder algum tempo lendo as matérias publicadas no “Varadouro”, no “Nós Irmãos”, na “Gazeta do Acre”, no “O Rio Branco” e no “O Jornal” poderão constatar a mobilização popular que se espalhava por todos os vales - de Boca do Acre até Assis Brasil, de Sena Madureira até Cruzeiro - contra a invasão dos “paulistas”. Quem se der ao trabalho ler as páginas daqueles jornais conhecerá o descaso oficial para a captura dos assassinos de Wilson e depois a fúria com que os assassinos de Nilão foram perseguidos, presos e torturados. Manchetes que não precisariam ter sido publicadas, se nossos governantes fossem sensatos e esse um país justo.
Anos se passaram desde então. A luta continuou e as manchetes dos jornais seguiram estampando notícias de crimes de encomenda, de conflitos eminentes, de empates vitoriosos e de ações públicas insuficientes. Outros homens tombaram antes que a floresta acreana e os modos de se viver dela pudessem ser salvos. Poucos culpados foram presos por seus crimes. Mas o povo venceu. No que era possível, mas venceu. Reservas extrativistas foram demarcadas, o povo da floresta fez uma aliança que mostrou a todos a existência de uma população que só queria tranquilidade e justiça pra tocar sua vida. A voz de Wilson e de seu povo havia sido forte o suficiente para se fazer ouvir longe.
O Acre nunca mais seria o mesmo então. O povo das cidades também havia assistido à chegada de milhares de famílias expulsas de suas casas, presenciado a miséria que explodia em suas invasões periféricas e ouvido as vozes que se levantaram de dentro da floresta. Os educados filhos da cidade também tiveram que ver tudo o que acontecia em Xapuri, Brasiléia, Boca do Acre, Quinari, Tarauacá.
Mais uma vez a voz que vinha do interior seria expressa por vozes estranhas ao povo que falava. Era a vez das monografias acadêmicas, das dissertações de mestrado, das teses de doutorado. O que era coragem e sabedoria popular foi promovido à ciência, multiplicando títulos, abordagens, recortes epistemológicos - economia, história, sociologia, antropologia - expressões e palavras estranhas ao povo que de sujeito havia sido transformado em objeto.
Diferente das manchetes de jornais que não deveriam ter sido escritas, alguns dos novos títulos revelavam o aprendizado da sociedade com o que havia de mais antigo e inovador nela mesma, a voz do povo. “Ocupação recente das terras do Acre” (1982); O sertanejo, o brabo e o posseiro” (1985); “Conflitos pela terra no Acre” (1987); “Os ‘Imperadores do Acre’ – uma análise da recente expansão capitalista na Amazônia” (1988); “Seringueiros e Sindicato: Um povo da floresta em busca de liberdade” (1991); “Capital e trabalho na Amazônia Ocidental” (1992); entre tantos outros publicados nos corredores das UNBs, UFACs, UFMGs, PUCs.
Isso sem falar nas livrarias dos shopping-centers repletas de livros sobre a devastação da Amazônia, sobre a vida e a morte de Chico Mendes, sobre ecologia. Será possível que a sociedade de consumo rápido e desenfreado tenha realmente ouvido aquela voz que silenciou na boca de Wilson Pioneiro? Talvez nunca saibamos ao certo.
O que parece certo é que o Acre continuou seu caminho, tentando construir um destino próprio. Porque aqui existiu uma voz que nunca foi escrita, da qual não se registrou o timbre e nem restou nenhuma frase, mas que não deixou de ser repetida e ouvida por florestas e cidades dessa Amazônia Ocidental desde então. A voz de um homem alto e determinado, de fala mansa e rara, dono de um olhar e um silêncio poderosos.

* Adaptado de texto publicado na Revista Wilson Pinheiro – 20 anos depois; Rio Branco, FEM, julho de 2000.

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