domingo, 10 de julho de 2011

Que correntes nos prendem ao passado? (II)

(ou As muitas correntes de Porto Acre)

Recentemente um amigo me questionou sobre a veracidade do famoso episódio do corte da corrente durante o combate de Porto Acre. Por isso, hoje, vamos ver o que dizem, e/ou contradizem, algumas fontes históricas sobre esse acontecimento.

O ultimo grande combate da Revolução Acreana ocorreu em Porto Acre, entre os dias 15 e 24 de janeiro de 1903, e configurou-se na historiografia acreana como decisivo uma vez que Puerto Alonso (nome boliviano daquele povoado) era o centro das ações do exército boliviano no Acre.
Segundo as descrições que nos chegaram daquele episódio, os bolivianos estavam aquartelados em uma praça fortificada com alambrados de arame e trincheiras na parte alta do povoado. E, como medida complementar de defesa, atravessaram uma longa e grossa corrente de ferro de uma margem à outra do rio Acre para impedir a passagem de vapores brasileiros pela cidadela fortificada, evitando o abastecimento do exército revolucionário acreano. Para possibilitar a vitória sobre os bolivianos era imprescindível cortá-la e livrar a passagem dos vapores.
O próprio comandante das tropas insurgentes, Cel. Plácido de Castro, em suas memórias denominadas “Apontamentos sobre a Revolução Acreana” narrou assim o episódio: “Urgia que fizéssemos descer o navio ‘Independência’, a cujo bordo tínhamos borracha, com a qual devíamos comprar munições... Os bolivianos, plagiando Humaytá, tinham collocado uma corrente para vedar a passagem. Uma das extremidades dessa corrente, porém, estava em terreno que já havíamos conquistado. Entretanto, foi difficilimo cortar essa corrente... Ás seis horas da manhã, collocados todos nos seus postos, verificado o entricheiramento da casa de machinas, feito com 30.000 Kilos de borracha, mandei suspender ferro...A passagem foi feita garbosamente, debaixo de uma estrondosa salva de balas.”



O que chama a atenção nessa descrição de Plácido de Castro é o caráter secundário que ele deu ao corte da corrente em si, remetendo a ação principal à passagem do vapor Independência feito sob fogo cerrado, inclusive de um pequeno canhão d os bolivianos.
Vejamos agora o que o Coronel Azcui, boliviano que documentou e descreveu as campanhas do Acre, nos conta sobre o mesmo caso. “El 18 de enero a merced de una densa niebla el Affuá pudo burlar la vigilancia de los que lo aguardaban y pasar a Caquetá apitando fuertemente. Las gruesas cadenas que hiciera poner el delegado para impedirle el paso habían sido cortadas en los dias anteriores.”
Cabe ressaltar que Affuá era o nome que os bolivianos davam ao vapor que lhes foi tomado pelos acreanos e rebatizado como vapor Independência. Mas, curiosamente, também Azcui não se dedicou a descrever o corte da corrente em si, concentrando-se em citar a passagem do vapor pelo porto como um dos lances decisivos do combate.
De onde veio então a épica descrição do corte da corrente de Porto Acre ? É preciso considerar que se trata de uma das histórias mais populares dentre os que gostam e contam a história das revoluções acreanas. Só nos resta então recorrer ao clássico e principal historiador da Revolução Acreana, Leandro Tocantins, que tratou a questão da seguinte maneira: “Os bolivianos, repetindo a tática de Humaitá, na Guerra do Paraguai, colocaram uma grossa corrente, de lado a lado do caudal. Os homens do Batalhão franco-atiradores ficaram incumbidos de serrá-la, quase inteiramente mergulhados, para livrarem-se dos projetis. O primeiro grupo não conseguiu realizar a tarefa, e só uma segunda tentativa, às ordens do italiano Ernesto Aosta, engajado às forças de Plácido, logrou o sucesso desejável: a corrente partiu-se meio a meio, desaparecendo nas abundantes águas do repiquete e sob contínuo fuzilar do inimigo.”
O curioso dessa descrição feita por Tocantins é que não constam outras fontes de onde ele teria encontrado essas informações sobre o corte da corrente, até porque as fontes que ele utilizou para descrever o combate de Porto Acre são aquelas que já citamos acima, que não descrevem o corte em si.



Daí serem necessárias algumas perguntas, tais como: porque aqueles que estiveram presentes ao combate não descreveram o corte da corrente, apesar de afirmarem ambos que ela foi cortada com muita dificuldade? Porque, como afirma Tocantins, a corrente teria sido cortada no meio do rio Acre cheio pelo repiquete se os acreanos dominavam a margem onde estava presa a tal corrente e seria muito mais fácil simplesmente soltar sua extremidade durante a noite? Se o corte da corrente foi tão repleto de lances heróicos por parte de acreanos e bolivianos não deveria ter sido tratado com mais relevo por parte daqueles que testemunharam os acontecimentos? Como Tocantins soube de detalhes não contados pelos protagonistas do episódio? Essas perguntas só poderiam ser respondidas imediatamente com especulações pouco fundamentadas.
Entretanto, não podemos desconhecer que existem diversos livros que trataram a Revolução Acreana de forma ficcional que propositalmente exageraram certos episódios para realçar o caráter épico da conquista do Acre. Além do que, não devemos ignorar tão pouco que, desde o fim da revolução acreana passaram a circular inúmeros relatos orais daqueles que lutaram efetivamente na guerra do Acre, ou por parte de seus descentes que ouviram contar sobre, e que nos legaram versões variadas sobre passagens que nunca foram registradas pela historiografia tradicional (lembrando, ainda, que alguns desse relatos chegaram a ser publicados em jornais acreanos dos anos 10 e 20 do século passado).
De onde surgiu, então, a lenda sobre o heróico corte da corrente no meio do rio Acre por um grupo de voluntários que tinham consciência que se tratava de uma missão suicida é, ainda hoje, um mistério que talvez nunca seja efetivamente confirmado ou negado. Porque assim é a natureza da história: imprecisa, contraditória e, por isso mesmo, fascinante.

* Adaptado de artigo publicado no Jornal “O Acre”, em dezembro de 1997.

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