Ele tinha tudo pra ter
morrido muitas mortes. Mas, preferiu viver muitas vidas, feliz, como poucos
sabem viver. Agora que decidiu mesmo partir... Não posso deixar de lembrar de
uma pequena parte de sua história que tanto me ensinou...
A vida ali no antigo Aldeamento
de Nossa Senhora das Montanhas, mais tarde chamada simplesmente de Morada Nova,
nunca foi fácil. Porque sobreviver na secura e aspereza da caatinga nordestina era
quase impossível mesmo. E, naquele longínquo ano de 1926, o menino Lupércio Freire
Maia tinha tudo pra não vingar como costumava acontecer com muitos dos meninos
nascidos no sertão inclemente. Ainda assim vingou pra viver a primeira de suas
muitas vidas.
Mas, nem bem havia completado 16
anos, em incerto dia que Lupércio estava com o pai no roçado, chegaram os
recrutadores do Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a
Amazônia (o conhecido SEMTA) para arrebanhar jovens para a Batalha da Borracha.
Bem que seu pai ainda tentou resistir: “Não, ele não vai agora não. Vai
depois.” Ao que respondeu o recrutador com a arrogância dos que encarnam a
autoridade oficial: “Tem depois não. Suba aqui no caminhão é agora mesmo.”
Foto de Dario de Domenices
Corria o ano de 1943 e o mundo
estava em guerra já fazia três anos. Do outro lado do oceano a Segunda Grande
Guerra Mundial matava milhões. Em razão disso o Brasil não só mandava homens
pra lutar na Itália como enviava milhares de outros jovens pra Amazônia produzir
borracha para os norte-americanos em nome dos Acordos de Washington. E foi assim
que Lupércio teve que nascer outra vez. Repentinamente havia deixado de ser apenas
um jovem sertanejo para se tornar um Soldado da Borracha.
Para muitos foi mesmo impossível
sobreviver a tudo que se sucedeu naqueles longínquos e terríveis anos da Segunda
Grande Guerra no percurso entre o Nordeste e a Amazônia. O transporte na
carroceria dos caminhões do SEMTA pelas precárias estradas que levavam do
nordeste ao norte. A viagem nos navios do Lloyd sob constante ameaça de
bombardeio pelos submarinos alemães. Os alojamentos insalubres de Belém e
Manaus, com sua péssima comida e nenhuma condição de higiene que faziam grassar
a febre amarela, o impaludismo (malária), entre outras epidemias que vitimavam
dezenas de homens todos os dias. Tanto assim que dos mais de 50.000 homens
enviados pra Amazônia cerca de metade morreu.
Mas, Lupércio sobreviveu para
nascer outra vez mais. Agora ele era um seringueiro brabo, submetido ao duro
sistema de vida nos seringais acreanos e ao domínio e exploração dos patrões.
Teve então que aprender a andar na floresta úmida e escura, tão distinta de seu
sertão seco e solar, a se defender das cobras traiçoeiras e da possibilidade de
um encontro inesperado com uma onça faminta. Ou, ainda pior, tendo que estar
pronto caso se deparasse com o temível e lendário Mapinguari.
Perigos muitos, alguns
insuspeitos até. Como o perigo da solidão nas colocações distantes e isoladas
do centro da mata que foi capaz de enlouquecer muitos que nunca mais
conseguiram voltar a ser os mesmos. Ou, ainda, o perigo eminente de um bom
“Baile das quatro bolas” num dos raros momentos de lazer nos seringais de
então. Afinal foi Seu Lupércio mesmo que contou sobre aquele Baile, que já ia
muito animado pela cachaçada que rolava entre os homens, quando chegou uma
velha de uns 82 anos, trajando um lindo vestido, mas tinha mais nós na canela
do que maniva de macaxeira amarela. Mesmo assim a seringueirada, que há muito
tempo não via uma mulher, se alvoroçou toda e o resultado não podia ser outro:
acabou o baile por conta da briga de todos contra todos pela velha.
Ainda assim Lupércio mais uma
vez conseguiu sobreviver. E o término da Batalha da Borracha com o fim da
Grande Guerra em 1945 foi motivo de muita satisfação pra todos os soldados da
borracha que enfim poderiam voltar pra casa se assim quisessem. Mas Lupércio já
tinha se acreanizado definitivamente. Tinha mais jeito de voltar pro Ceará não.
O jeito era nascer pra uma outra vida novamente.
Foto de Dario de Domenices
E assim fez. Casou, constituiu
uma linda família e formou uma das mais belas “colonhas” de Assis Brasil. A
propriedade de Seu Lupércio se tornou famosa por ser um dos melhores exemplos
de como é possível produzir o suficiente pra se viver bem, sem abrir mão da
floresta, que ele fez questão de preservar porque em seus tempos de seringueiro
aprendeu a não só respeitar, como amar a floresta. Por isso, quando asfaltaram
o trecho da BR-317 até Assis Brasil, escolheram exatamente Seu Lupércio para
dar um depoimento sobre as mudanças que estavam acontecendo no Acre para
material institucional que foi exibido na televisão e fez um estrondoso
sucesso.
Aliás, foi graças à exibição
desse material na televisão que Seu Lupércio reencontrou um irmão que também
tinha vindo pro Acre na Batalha da Borracha, mas como foi pro vale do Juruá, se
perderam um do outro. Coisas do isolamento entre os vales do Acre. O certo é
que durante algum tempo a frase que Seu Lupércio disse na televisão, enquanto
se abaixava pra beijar a nova estrada pavimentada, virou moda e passou a ser
repetida por todo canto: “Isso aqui mudou muito, ôôô se mudou!” É que, não
custa ressaltar, ele era um dos homens mais alegres, carismáticos e divertidos
que já conheci na vida.
Entretanto, Lupércio nunca se
conformou com o fato do governo brasileiro não ter cumprido as promessas feitas
aos soldados da borracha. Ele não se cansava de repetir: “As vezes me dá assim
uma tristeza. Nós somos combatentes de guerra... meu sonho é antes de morrer
ser considerado assim e o nosso Brasil pagar nós...”
Foto de Chico Gadelha
Por isso quando, no inicio do
mês passado, Seu Lupércio foi convidado para ir a Brasília para participar da
homenagem aos Soldados da Borracha feita no Panteão dos Heróis da Pátria, ficou
muito animado. Afinal, ele que se tornou um sobrevivente de muitas vidas, não
iria se recusar a tentar mais uma vez tentar fazer valer seus direitos de
cidadão brasileiro e de combatente de guerra. E na audiência que aconteceu no
Palácio do Planalto com o poderoso Gilberto Carvalho, atual Ministro-Chefe da Secretaria Geral da Presidência
da República do Brasil, mais uma vez prendeu a atenção de todos ao contar sua
extraordinária história de vida (ou de tantas vidas) diante de atônitas
autoridades (ver foto).
Porque era mesmo impossível
resistir à alegria, à inteligência e ao brilho dos olhos e das palavras de Seu
Lupércio... Como será impossível pra mim, e pra todos que o conheceram, esquecê-lo...
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