segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Cenas contemporâneas da antiga Sena



Nesta semana o aniversário de 108 anos de Sena Madureira me fez lembrar, com muita saudade, aliás, de um dos trabalhos mais bonitos que já tive oportunidade de participar: a Cavalhada. Por isso, fui buscar no fundo do baú um texto que publiquei em 1999 na Revista Outras Palavras.


Certo dia entrou no Departamento de Patrimônio Histórico, parecendo um furacão como sempre, o Luís Doido. Entre outras coisas ele vinha nos contar que tinha ficado sabendo de uma antiga tradição que existiu em Sena Madureira há muitos anos atrás e que havia sido perdida. Tratava-se de uma festa com forte apelo popular e era chamada de Cavalhada. A partir desse dia fomos assaltados por uma verdadeira enxurrada de informações e referências às tais cavalhadas. Tanto sobre aquelas que acontecem tradicionalmente em diversos estados do nordeste e do centro-oeste, quanto sobre essa cavalhada acreana que desde a década de 40, pelo menos, mobilizava intensamente a população de Sena Madureira.
Eu sempre digo que existem histórias que se contam. Por mais que tentemos não nos envolver com elas, quando percebemos... já era, "tomaram de conta" de nosso trabalho, cotidiano e atenção. Definitivamente este era o caso da tal Cavalhada de Sena Madureira. Não foi preciso procurar muito. Logo na primeira ida para Sena, guiados por meu querido e saudoso Agnaldo Moreno, descobrimos que apesar de não acontecer há 35 anos, havia muitas pessoas que se lembravam perfeitamente dos detalhes e de todo o ritual seguido pela tradicional Cavalhada. Desde então percebemos que não conseguiríamos nos limitar a pesquisar e conhecer a tal tradição perdida. Logo se impôs que tentássemos realizar uma nova Cavalhada, seguindo, é claro, a característica original das cavalhadas antigas. Essa necessidade estava expressa na dolorida ausência demonstrada por todos com quem conversávamos sobre o assunto. Invariavelmente as pessoas declaravam de forma espontânea a presença daquele velho sentimento:
- Eu sou do Encarnado.
Ou então:
- Eu sempre fui do partido Azul.


Assim sendo, não nos restou outra saída além de, junto com o pessoal da Rádio Difusora de Sena, trabalhar para trazer de volta a festa que tanta falta e saudade provocava naquela cidade. O que não significa que tenha sido fácil. Pelo contrário, o local escolhido para a construção da pista parecia ter uma caveira de burro enterrada, mostrou-se impossível realizar a cavalhada no dia tradicional (25 de setembro) em função das sempre inúteis disputas políticas locais, seria preciso realizar pelo menos um mês de treinos para adestrar cavalos e cavaleiros. Enfim, foram diversos os obstáculos e as dificuldades que apareciam a cada momento. Por outro lado, a disposição que os antigos senhores de Sena Madureira - encabeçados por Seu Nacélio, Anazi e José Seda que haviam participado das cavalhadas de 35 anos atrás - demonstravam para ajudar na organização e realização dessa nova cavalhada, não nos permitia esmorecer. Até mesmo os tradicionais ódios políticos que recheiam a história do Acre de paixão e tragédias, e que em Sena Madureira dão a impressão de serem ainda mais radicais, pareciam perder força diante da enorme vontade coletiva de reviver aquela antiga tradição.

Finalmente, no sábado à tarde, dia 9 de outubro, estava tudo pronto para a realização da Cavalhada. Até São Pedro ajudou segurando as águas que certamente cairiam pelas previsões dos mais pessimistas. Só uma coisa me incomodava. Havia sobrado pra mim a função de fotógrafo da festa, o que além de não ser exatamente minha especialidade, não me permitia dar toda a atenção que eu gostaria nos acontecimentos ao redor.

A concentração de cavalos e homens na frente da casa do Seu Nacélio revelava que a tensão não era só minha. Afinal de contas tente reunir vinte cavalos, quase todos garanhões (ou inteiros, como o pessoal daqui fala) e vinte homens loucos para montar seus animais e vencer os adversários pra imaginar a eletricidade que percorria o ar. Foi quando eu comecei a ver algumas imagens inteiras ou fragmentadas, que lentamente começaram a operar dentro de mim aquela estranha ligação entre o hoje e o distante.

Infelizmente, no espaço deste artigo não cabe tudo quanto se passou naquele dia movimentado. Só o que posso fazer é mencionar um pouco do que foi ver a tarde da cidade sendo invadida pelos cavaleiros em desfile, tendo a frente as duas belas meninas-madrinhas, uma pelo partido Azul e a outra pelo Partido Encarnado, em meio às mútuas provocações dos cavaleiros: Dá-lhe Azul ! Viva o Encarnado! Essa Cavalhada será nossa! Situação que durou até a entrada da pista.
Aí, então, a hora era de disputa e, portanto, séria demais pra permitir brincadeiras. Enquanto os meninos da cidade, entre curiosos e excitados, tentavam entender que raio de torneio era aquele que nunca haviam visto antes, os respeitáveis senhores e senhoras de Sena Madureira voltavam a ser crianças diante das gostosas recordações que aquele evento lhes proporcionava.


De meu lado, diante daquela precária condição de fotógrafo, eu via as cenas que se desenrolavam na pista como quadros limitados pela objetiva da câmera. O desfile inicial dos cavaleiros vestindo as cores de seus partidos, sua evolução pela pista e a saudação ao governador e às madrinhas dos partidos. A partida, ao toque do corneteiro, dos pares de cavaleiros em direção à trave que sustentava as argolas. Os cavalos afogueados que, em pleno galope, pareciam não caber nos limites da pista da corrida. A habilidade dos cavaleiros de ambos os partidos em acertar e pegar as pequenas argolas com suas lanças de madeira. A emoção estampada no rosto do povo presente quando o juiz anunciava para quem ia o ponto de cada carreira, se para o Azul, para o Encarnado ou para ambos. As discussões porque aquele cavaleiro do Azul não havia cumprimentado a madrinha de seu partido durante a carreira, como mandava o regulamento.

A aglomeração cada vez maior de pessoas em todas as partes da pista, inclusive na área de dispersão dos cavalos, o que podia provocar algum acidente. A felicidade daquele hábil cavaleiro que com a argola capturada pela ponta de sua lança se encaminhava ao público e escolhia aquela que iria receber a argola recém conquistada. A alegria no rosto da velha senhora que também recebia uma argola de presente como justa homenagem de seu filho, agora importante cavaleiro representando o partido do seu coração. A decepção dos partidários do Encarnado ao perceber que o Azul estava conseguindo tirar mais argolas, fazendo com que sua vitória fosse iminente. A satisfação expressa no brilho dos olhos dos mais antigos moradores de Sena, ao ver que o passado não estava perdido, enfim.

Mas de todas as cenas que vi e fotografei naquele dia uma me pareceu especial. Foi quando, ainda durante o desfile, a imagem dos cavaleiros modernos em suas roupas tradicionais se sobrepôs à imagem da velha casa da família Queiroz, na principal avenida da cidade, e me causou uma estranha sensação. Eu já não sabia se o que via estava em colorido ou em preto e branco. Por alguns instantes, aquele enquadramento da máquina fotográfica limitava um tempo tão longo que eu tampouco sabia se fotografava o presente ou o passado. Foi só aí que entendi o sentido de tudo o que estava acontecendo naquele exato momento em Sena. E o melhor de tudo é que no ano que vem tem mais. Dá-lhe encarnado!

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