segunda-feira, 8 de outubro de 2012

De onde veio, pra onde vai: a Balsa



Como hoje é domingo, dia de eleição, não custa lembrar as origens da famosa balsa que haverá de partir hoje à noite com destino a Manacapuru.

O dia de sol nos prometia um belo dia de trabalho. Pior pra Edunira que vinha do Dia das Bruxas no qual, por força do destino, faz aniversário e é, todos os anos, obrigada a comemorar. Dava dó vê-la na inclemência do sol acreano depois de uma noite inteira de Beatles. Quem manda cantar?!
Manda a boa educação embarcar os visitantes na melhor voadeira, enquanto nós ficamos com o barco bichado. E lá se foi a missão oficial junto com o Libério e a Danuza e nada do nosso motor funcionar. Até que depois de longos 40 minutos, pegou! Vamos embora!
Como seria de se imaginar, bastou subirmos três curvas do rio Acre para o motor pifar novamente. E, pra meu espanto, descobri que nosso barqueiro não entendia nada de mecânica e se limitava a esfregar um paninho sujo em todos os cantos do motor já sem cobertura. Como se o motor fosse funcionar de novo só por estar limpo. Ou pior, como se aquele paninho sujo pudesse limpar qualquer coisa.
E foi o Chiquinho, do alto de seus muitos anos fiscalizando obras por todos os cantos deste Acre, quem anunciou: “Vamos ter que remar de volta pra Porto Acre.” Só faltava um detalhe: o remo! Por isso coube de novo ao Chiquinho concluir: “É! O jeito é descer de bubuia! Só temos que cuidar pra não cair num remanso e ficar rodando sem sair do lugar o resto do dia.”
E lá fomos nós, rio abaixo, cada qual com uma mão na água pra não deixar a voadeira sair da correnteza e assim ganhar alguma velocidade. E foi exatamente nesse ponto que a mansidão das águas barrentas do velho Acre me levou pra outros lugares distantes.


Acho que não existe nada mais característico do espírito acreano do que a história da Balsa. Ao pensar em tudo que vem acontecendo nestas eleições, é que consigo perceber como a história da Balsa pra Manacapuru é um santo remédio pra curar a ressaca da derrota e arrefecer o entusiasmo dos vitoriosos.
Afinal de contas, a folclórica embarcação imaginária iguala a todos: desde os poderosos do momento, passando pelos iniciantes que fazem sua primeira viagem, até os eternos passageiros de todas as eleições. Mas o melhor de tudo é que a falada balsa leva para Manacapuru não só os políticos derrotados, mas também todos os seus eleitores. Por isso as conversas que tomam conta das ruas acreanas depois da eleição são muito estranhas para os visitantes que ainda não conhecem a fina ironia acreana: “E aí, pegou alguma balsa nesta eleição? Eu não. Pois eu peguei balsa em três.”
Assim, entre uma galhofa e outra, seguem os acreanos a rir da própria desgraça. Com isso a democrática balsa leva rio abaixo todos os males, rancores e desavenças da campanha. O que há que se reconhecer: é um jeito estranho de aceitar a derrota. Mas é um jeito eficiente.
Olhando mais para trás, lembro que li num dos alfarrábios do Acre antigo a história da deposição de um dos tantos Prefeitos Departamentais que os acreanos tiveram que engolir depois que o governo brasileiro resolveu transformar isto aqui num território. Porém, o que realmente chamou minha atenção não foi a expulsão de um dos muitos ditadores, larápios ou escroques que foram nomeados para governar o Acre. Mas sim o fato de que ele foi expulso sem o direito, sequer, de esperar o próximo vapor, sendo logo embarcado em uma balsa pra pagar sua pena descendo o rio Acre. E lá se foi, sob os aplausos da população que assistia do barranco, o malfeitor exilado. Descendo lentamente de bubuia, curva após curva, pegando pium, fugindo dos remansos e esperando receber uma ajuda que não viria, pois que era um passageiro da balsa, e nunca houve um que prestasse.
Lembro perfeitamente de ter lido uma passagem do livro Na Planície Amazônica, de Raimundo Morais, que diz exatamente o seguinte: “Reconhecidamente daninho ao comércio comedido, o regatão paga alto imposto. Apanhado a negociar com a freguesia alheia e comprometida, os proprietários de seringais fraudados metem-no a ferros, surram-no e largam-no de bubuia.”
Como também lembro de um dos textos de Euclides da Cunha chamado “Judas Asvero” onde ele conta de um estranho costume que encontrou entre os seringais do Purus, no início do século XX.
Com sua prosa delirante e barroca, Euclides descreve passo a passo a atitude dos seringueiros que, em vez de simplesmente malharem o Judas no sábado de aleluia, como é comum em todo o mundo católico, fazem o boneco com todo o capricho e depois embarcam-no numa tosca balsa que largam ao sabor da correnteza. Mas deixemos o próprio Euclides contar o que acontece a seguir: “E o Judas feito Asvero vai avançando... Então os vizinhos mais próximos, que se adensam, curiosos, no alto das barrancas, intervêm... com repetidas descargas de rifle aquele bota-fora... E a figura desgraciosa, trágica, arrepiadoramente burlesca,... desafiando maldições e risadas, lá se vai na lúgubre viagem sem destino e sem fim, a descer, a descer sempre,... à mercê das correntezas, ‘de bubuia’ sobre as grandes águas.”
Depois disso tudo, só posso chegar à conclusão de que se a balsa é uma importante instituição acreana, então, descer o rio “de bubuia” é um santo e secular remédio amazônico para curar alguns dos males que afligem o povo sofrido dessas margens. É descendo o rio que se podem purgar as penas e cumprir os destinos perdidos.
E foi por esses antecedentes que eu acredito que o venerável mestre da Crônica da Cidade, Aloísio Maia, criou a moderna versão mais light, na qual a balsa reserva aos seus passageiros apenas uma breve e bucólica estada em Manacapuru, ouvindo o melancólico choro dos surubins. Não consigo deixar de ver uma estreita conexão, quase sociológica, entre a balsa contemporânea e aquelas antigas que carregavam os malditos de todos os tipos, reais ou simbólicos, pra bem longe do Acre...
Eu ainda estava entretido por esses pensamentos quando chegamos a Porto Acre e fui forçado a voltar para o mundo real. Depois de mais de hora debaixo de sol, era preciso encostar a voadeira no barranco. Pelo menos carregávamos um motor relativamente limpo, apesar de enguiçado. Mas a essa altura, nem raiva eu sentia mais. O que uma boa viagem de bubuia não é capaz de curar?

Publicado na revista Outras Palavras, n. 18, dezembro de 2002.

Nenhum comentário:

Postar um comentário