Como hoje é domingo, dia de eleição,
não custa lembrar as origens da famosa balsa que haverá de partir hoje à noite
com destino a Manacapuru.
O dia de sol nos
prometia um belo dia de trabalho. Pior pra Edunira que vinha do Dia das Bruxas
no qual, por força do destino, faz aniversário e é, todos os anos, obrigada a
comemorar. Dava dó vê-la na inclemência do sol acreano depois de uma noite
inteira de Beatles. Quem manda cantar?!
Manda a boa educação
embarcar os visitantes na melhor voadeira, enquanto nós ficamos com o barco
bichado. E lá se foi a missão oficial junto com o Libério e a Danuza e nada do
nosso motor funcionar. Até que depois de longos 40 minutos, pegou! Vamos
embora!
Como seria de se
imaginar, bastou subirmos três curvas do rio Acre para o motor pifar novamente.
E, pra meu espanto, descobri que nosso barqueiro não entendia nada de mecânica
e se limitava a esfregar um paninho sujo em todos os cantos do motor já sem
cobertura. Como se o motor fosse funcionar de novo só por estar limpo. Ou pior,
como se aquele paninho sujo pudesse limpar qualquer coisa.
E foi o Chiquinho, do
alto de seus muitos anos fiscalizando obras por todos os cantos deste Acre,
quem anunciou: “Vamos ter que remar de volta pra Porto Acre.” Só faltava um
detalhe: o remo! Por isso coube de novo ao Chiquinho concluir: “É! O jeito é
descer de bubuia! Só temos que cuidar pra não cair num remanso e ficar rodando
sem sair do lugar o resto do dia.”
E lá fomos nós, rio
abaixo, cada qual com uma mão na água pra não deixar a voadeira sair da
correnteza e assim ganhar alguma velocidade. E foi exatamente nesse ponto que a
mansidão das águas barrentas do velho Acre me levou pra outros lugares
distantes.
Acho que não existe
nada mais característico do espírito acreano do que a história da Balsa. Ao
pensar em tudo que vem acontecendo nestas eleições, é que consigo perceber como
a história da Balsa pra Manacapuru é um santo remédio pra curar a ressaca da
derrota e arrefecer o entusiasmo dos vitoriosos.
Afinal de contas, a
folclórica embarcação imaginária iguala a todos: desde os poderosos do momento,
passando pelos iniciantes que fazem sua primeira viagem, até os eternos
passageiros de todas as eleições. Mas o melhor de tudo é que a falada balsa
leva para Manacapuru não só os políticos derrotados, mas também todos os seus
eleitores. Por isso as conversas que tomam conta das ruas acreanas depois da
eleição são muito estranhas para os visitantes que ainda não conhecem a fina
ironia acreana: “E aí, pegou alguma balsa nesta eleição? Eu não. Pois eu peguei
balsa em três.”
Assim, entre uma
galhofa e outra, seguem os acreanos a rir da própria desgraça. Com isso a
democrática balsa leva rio abaixo todos os males, rancores e desavenças da
campanha. O que há que se reconhecer: é um jeito estranho de aceitar a derrota.
Mas é um jeito eficiente.
Olhando mais para trás,
lembro que li num dos alfarrábios do Acre antigo a história da deposição de um
dos tantos Prefeitos Departamentais que os acreanos tiveram que engolir depois
que o governo brasileiro resolveu transformar isto aqui num território. Porém,
o que realmente chamou minha atenção não foi a expulsão de um dos muitos
ditadores, larápios ou escroques que foram nomeados para governar o Acre. Mas
sim o fato de que ele foi expulso sem o direito, sequer, de esperar o próximo
vapor, sendo logo embarcado em uma balsa pra pagar sua pena descendo o rio
Acre. E lá se foi, sob os aplausos da população que assistia do barranco, o
malfeitor exilado. Descendo lentamente de bubuia, curva após curva, pegando
pium, fugindo dos remansos e esperando receber uma ajuda que não viria, pois
que era um passageiro da balsa, e nunca houve um que prestasse.
Lembro perfeitamente de
ter lido uma passagem do livro Na
Planície Amazônica, de Raimundo Morais, que diz exatamente o seguinte: “Reconhecidamente
daninho ao comércio comedido, o regatão paga alto imposto. Apanhado a negociar
com a freguesia alheia e comprometida, os proprietários de seringais fraudados
metem-no a ferros, surram-no e largam-no de bubuia.”
Como também lembro de
um dos textos de Euclides da Cunha chamado “Judas Asvero” onde ele conta de um
estranho costume que encontrou entre os seringais do Purus, no início do século
XX.
Com sua prosa delirante
e barroca, Euclides descreve passo a passo a atitude dos seringueiros que, em
vez de simplesmente malharem o Judas no sábado de aleluia, como é comum em todo
o mundo católico, fazem o boneco com todo o capricho e depois embarcam-no numa
tosca balsa que largam ao sabor da correnteza. Mas deixemos o próprio Euclides
contar o que acontece a seguir: “E o Judas feito Asvero vai avançando... Então
os vizinhos mais próximos, que se adensam, curiosos, no alto das barrancas,
intervêm... com repetidas descargas de rifle aquele bota-fora... E a figura
desgraciosa, trágica, arrepiadoramente burlesca,... desafiando maldições e
risadas, lá se vai na lúgubre viagem sem destino e sem fim, a descer, a descer
sempre,... à mercê das correntezas, ‘de bubuia’ sobre as grandes águas.”
Depois disso tudo, só
posso chegar à conclusão de que se a balsa é uma importante instituição
acreana, então, descer o rio “de bubuia” é um santo e secular remédio amazônico
para curar alguns dos males que afligem o povo sofrido dessas margens. É
descendo o rio que se podem purgar as penas e cumprir os destinos perdidos.
E foi por esses
antecedentes que eu acredito que o venerável mestre da Crônica da Cidade,
Aloísio Maia, criou a moderna versão mais light, na qual a balsa reserva aos
seus passageiros apenas uma breve e bucólica estada em Manacapuru, ouvindo o
melancólico choro dos surubins. Não consigo deixar de ver uma estreita conexão,
quase sociológica, entre a balsa contemporânea e aquelas antigas que carregavam
os malditos de todos os tipos, reais ou simbólicos, pra bem longe do Acre...
Eu ainda estava
entretido por esses pensamentos quando chegamos a Porto Acre e fui forçado a
voltar para o mundo real. Depois de mais de hora debaixo de sol, era preciso
encostar a voadeira no barranco. Pelo menos carregávamos um motor relativamente
limpo, apesar de enguiçado. Mas a essa altura, nem raiva eu sentia mais. O que
uma boa viagem de bubuia não é capaz de curar?
Publicado na revista Outras
Palavras, n. 18, dezembro de 2002.
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