segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O Homem Impossível...



Ele tinha tudo pra ter morrido muitas mortes. Mas, preferiu viver muitas vidas, feliz, como poucos sabem viver. Agora que decidiu mesmo partir... Não posso deixar de lembrar de uma pequena parte de sua história que tanto me ensinou...

A vida ali no antigo Aldeamento de Nossa Senhora das Montanhas, mais tarde chamada simplesmente de Morada Nova, nunca foi fácil. Porque sobreviver na secura e aspereza da caatinga nordestina era quase impossível mesmo. E, naquele longínquo ano de 1926, o menino Lupércio Freire Maia tinha tudo pra não vingar como costumava acontecer com muitos dos meninos nascidos no sertão inclemente. Ainda assim vingou pra viver a primeira de suas muitas vidas.
Mas, nem bem havia completado 16 anos, em incerto dia que Lupércio estava com o pai no roçado, chegaram os recrutadores do Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (o conhecido SEMTA) para arrebanhar jovens para a Batalha da Borracha. Bem que seu pai ainda tentou resistir: “Não, ele não vai agora não. Vai depois.” Ao que respondeu o recrutador com a arrogância dos que encarnam a autoridade oficial: “Tem depois não. Suba aqui no caminhão é agora mesmo.”

Foto de Dario de Domenices
 Corria o ano de 1943 e o mundo estava em guerra já fazia três anos. Do outro lado do oceano a Segunda Grande Guerra Mundial matava milhões. Em razão disso o Brasil não só mandava homens pra lutar na Itália como enviava milhares de outros jovens pra Amazônia produzir borracha para os norte-americanos em nome dos Acordos de Washington. E foi assim que Lupércio teve que nascer outra vez. Repentinamente havia deixado de ser apenas um jovem sertanejo para se tornar um Soldado da Borracha.
Para muitos foi mesmo impossível sobreviver a tudo que se sucedeu naqueles longínquos e terríveis anos da Segunda Grande Guerra no percurso entre o Nordeste e a Amazônia. O transporte na carroceria dos caminhões do SEMTA pelas precárias estradas que levavam do nordeste ao norte. A viagem nos navios do Lloyd sob constante ameaça de bombardeio pelos submarinos alemães. Os alojamentos insalubres de Belém e Manaus, com sua péssima comida e nenhuma condição de higiene que faziam grassar a febre amarela, o impaludismo (malária), entre outras epidemias que vitimavam dezenas de homens todos os dias. Tanto assim que dos mais de 50.000 homens enviados pra Amazônia cerca de metade morreu.
Mas, Lupércio sobreviveu para nascer outra vez mais. Agora ele era um seringueiro brabo, submetido ao duro sistema de vida nos seringais acreanos e ao domínio e exploração dos patrões. Teve então que aprender a andar na floresta úmida e escura, tão distinta de seu sertão seco e solar, a se defender das cobras traiçoeiras e da possibilidade de um encontro inesperado com uma onça faminta. Ou, ainda pior, tendo que estar pronto caso se deparasse com o temível e lendário Mapinguari.
Perigos muitos, alguns insuspeitos até. Como o perigo da solidão nas colocações distantes e isoladas do centro da mata que foi capaz de enlouquecer muitos que nunca mais conseguiram voltar a ser os mesmos. Ou, ainda, o perigo eminente de um bom “Baile das quatro bolas” num dos raros momentos de lazer nos seringais de então. Afinal foi Seu Lupércio mesmo que contou sobre aquele Baile, que já ia muito animado pela cachaçada que rolava entre os homens, quando chegou uma velha de uns 82 anos, trajando um lindo vestido, mas tinha mais nós na canela do que maniva de macaxeira amarela. Mesmo assim a seringueirada, que há muito tempo não via uma mulher, se alvoroçou toda e o resultado não podia ser outro: acabou o baile por conta da briga de todos contra todos pela velha.
Ainda assim Lupércio mais uma vez conseguiu sobreviver. E o término da Batalha da Borracha com o fim da Grande Guerra em 1945 foi motivo de muita satisfação pra todos os soldados da borracha que enfim poderiam voltar pra casa se assim quisessem. Mas Lupércio já tinha se acreanizado definitivamente. Tinha mais jeito de voltar pro Ceará não. O jeito era nascer pra uma outra vida novamente. 

 Foto de Dario de Domenices
E assim fez. Casou, constituiu uma linda família e formou uma das mais belas “colonhas” de Assis Brasil. A propriedade de Seu Lupércio se tornou famosa por ser um dos melhores exemplos de como é possível produzir o suficiente pra se viver bem, sem abrir mão da floresta, que ele fez questão de preservar porque em seus tempos de seringueiro aprendeu a não só respeitar, como amar a floresta. Por isso, quando asfaltaram o trecho da BR-317 até Assis Brasil, escolheram exatamente Seu Lupércio para dar um depoimento sobre as mudanças que estavam acontecendo no Acre para material institucional que foi exibido na televisão e fez um estrondoso sucesso.
Aliás, foi graças à exibição desse material na televisão que Seu Lupércio reencontrou um irmão que também tinha vindo pro Acre na Batalha da Borracha, mas como foi pro vale do Juruá, se perderam um do outro. Coisas do isolamento entre os vales do Acre. O certo é que durante algum tempo a frase que Seu Lupércio disse na televisão, enquanto se abaixava pra beijar a nova estrada pavimentada, virou moda e passou a ser repetida por todo canto: “Isso aqui mudou muito, ôôô se mudou!” É que, não custa ressaltar, ele era um dos homens mais alegres, carismáticos e divertidos que já conheci na vida.
Entretanto, Lupércio nunca se conformou com o fato do governo brasileiro não ter cumprido as promessas feitas aos soldados da borracha. Ele não se cansava de repetir: “As vezes me dá assim uma tristeza. Nós somos combatentes de guerra... meu sonho é antes de morrer ser considerado assim e o nosso Brasil pagar nós...”

Foto de Chico Gadelha
Por isso quando, no inicio do mês passado, Seu Lupércio foi convidado para ir a Brasília para participar da homenagem aos Soldados da Borracha feita no Panteão dos Heróis da Pátria, ficou muito animado. Afinal, ele que se tornou um sobrevivente de muitas vidas, não iria se recusar a tentar mais uma vez tentar fazer valer seus direitos de cidadão brasileiro e de combatente de guerra. E na audiência que aconteceu no Palácio do Planalto com o poderoso Gilberto Carvalho, atual Ministro-Chefe da Secretaria Geral da Presidência da República do Brasil, mais uma vez prendeu a atenção de todos ao contar sua extraordinária história de vida (ou de tantas vidas) diante de atônitas autoridades (ver foto).
Porque era mesmo impossível resistir à alegria, à inteligência e ao brilho dos olhos e das palavras de Seu Lupércio... Como será impossível pra mim, e pra todos que o conheceram, esquecê-lo...

Obs: Agradeço a cessão das fotos deste artigo à Bucanero Filmes (Wolney Oliveira, Lucia Ramos e toda equipe), que estiveram aqui no Acre mês passado filmando um novo documentário sobre a história da Batalha da Borracha, e que, como eu, também se apaixonaram perdidamente pelas muitas vidas impossíveis de Seu Lupércio.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Uma cidade em guerra



Não, o titulo deste artigo não diz respeito ao período eleitoral que estamos vivendo, apesar de, em alguns momentos, parecer mesmo que a eleição é uma guerra. Este artigo é sobre o combate que aconteceu aqui em Rio Branco cujo término completa 110 ano, nesta segunda-feira, 15 de outubro.

As primeiras chuvas de outubro chegaram, como chegam todos os anos às margens dos rios acreanos, e encontraram uma terra varrida por tempos de guerra. A ameaça do domínio estrangeiro agora era uma realidade. O sangue tingia as águas que anunciavam o inicio do inverno amazônico. Na cidade, que mais tarde seria conhecida como Rio Branco, a população assistia atemorizada ao primeiro grande combate do exército formado por centenas de seringueiros e o resultado deste combate poderia determinar os rumos da guerra.
15 de outubro de 1902. Fazia 11 dias desde que começaram as lutas na Volta da Empresa. Agora, não se tratava mais de simples emboscadas nos varadouros e barrancos do Acre. Dessa vez era guerra de verdade. Os militares bolivianos haviam derrotado, pouco menos de um mês antes, os mal armados e mal treinados seringueiros que, comandados por Plácido de Castro, se constituíam ainda num arremedo de exército. Com isso, a Volta da Empresa (Rio Branco) se tornou domínio boliviano e junto com Puerto Alonso (Porto Acre) passara a se constituir numa de suas praças fortes.

Vila Rio Branco (atual 2º Distrito), pouco depois da Revolução, 
próximo à Gameleira onde aconteceu o combate.

Era preciso reagir logo uma vez que a notícia da derrota havia se espalhado rapidamente pelos rios acreanos e poderia levar seringalistas e seringueiros à desmobilização, pondo fim a Revolução. Por isso, o comando revolucionário do exército acreano, reunindo cerca de trezentos homens, decidiu atacar o inimigo ainda no dia 05 de outubro.
A inferioridade numérica dos bolivianos, que não passavam de 180, era compensada pela presença de extensas trincheiras e pelo alambrado que protegiam o acampamento principal boliviano. Isso tornou a luta muito penosa. Os acreanos não podiam atacar diretamente as fortificações, sob pena de serem fragorosamente derrotados. A única forma de conquistar as trincheiras inimigas seria escavando trincheiras que em zigue-zague, lentamente se aproximavam das posições bolivianas.
Foram dias terríveis para ambos os lados em luta. Os mortos que tombavam nas trincheiras não podiam ser removidos por causa das balas que a todo o momento cortavam o ar pesado do campo de batalha. Logo a decomposição dos corpos tornou a permanência dentro das trincheiras, meio alagadas pela chuva, insuportável.

Sede do Seringal Empreza (atual 1º Distrito) 
que serviu como hospital de sangue do combate.

Porém, a cada dia, a vitória acreana ficava mais evidente. O grande temor boliviano era de que o boato que circulava nas linhas de combate fosse verdadeiro. Dizia-se que os acreanos, cujas posições estavam a apenas seis metros da ultima linha de trincheiras bolivianas estavam prestes a executar o ataque final, onde não utilizariam armas de fogo, mas tão somente armas brancas. E não havia boliviano que não conhecesse a terrível fama dos punhais dos cearenses, que eram manejados com extrema destreza e, em tempos de guerra, crueldade.
Diante disso tudo, no dia 15 de outubro, o Coronel Rozendo Rojas, comandante das forças bolivianas, finalmente se decidiu pela rendição. Assim, a velha Volta da Empresa, hoje Rio Branco, voltou a pertencer aos acreanos e a primeira grande vitória do exército revolucionário encheu de coragem e esperança o coração daqueles homens que somente queriam o direito de ser o que eram... brasileiros.

Texto publicado no jornal “O Estado do Acre”, série “O Acre é Cem”, 15 de outubro de 2001.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

De onde veio, pra onde vai: a Balsa



Como hoje é domingo, dia de eleição, não custa lembrar as origens da famosa balsa que haverá de partir hoje à noite com destino a Manacapuru.

O dia de sol nos prometia um belo dia de trabalho. Pior pra Edunira que vinha do Dia das Bruxas no qual, por força do destino, faz aniversário e é, todos os anos, obrigada a comemorar. Dava dó vê-la na inclemência do sol acreano depois de uma noite inteira de Beatles. Quem manda cantar?!
Manda a boa educação embarcar os visitantes na melhor voadeira, enquanto nós ficamos com o barco bichado. E lá se foi a missão oficial junto com o Libério e a Danuza e nada do nosso motor funcionar. Até que depois de longos 40 minutos, pegou! Vamos embora!
Como seria de se imaginar, bastou subirmos três curvas do rio Acre para o motor pifar novamente. E, pra meu espanto, descobri que nosso barqueiro não entendia nada de mecânica e se limitava a esfregar um paninho sujo em todos os cantos do motor já sem cobertura. Como se o motor fosse funcionar de novo só por estar limpo. Ou pior, como se aquele paninho sujo pudesse limpar qualquer coisa.
E foi o Chiquinho, do alto de seus muitos anos fiscalizando obras por todos os cantos deste Acre, quem anunciou: “Vamos ter que remar de volta pra Porto Acre.” Só faltava um detalhe: o remo! Por isso coube de novo ao Chiquinho concluir: “É! O jeito é descer de bubuia! Só temos que cuidar pra não cair num remanso e ficar rodando sem sair do lugar o resto do dia.”
E lá fomos nós, rio abaixo, cada qual com uma mão na água pra não deixar a voadeira sair da correnteza e assim ganhar alguma velocidade. E foi exatamente nesse ponto que a mansidão das águas barrentas do velho Acre me levou pra outros lugares distantes.


Acho que não existe nada mais característico do espírito acreano do que a história da Balsa. Ao pensar em tudo que vem acontecendo nestas eleições, é que consigo perceber como a história da Balsa pra Manacapuru é um santo remédio pra curar a ressaca da derrota e arrefecer o entusiasmo dos vitoriosos.
Afinal de contas, a folclórica embarcação imaginária iguala a todos: desde os poderosos do momento, passando pelos iniciantes que fazem sua primeira viagem, até os eternos passageiros de todas as eleições. Mas o melhor de tudo é que a falada balsa leva para Manacapuru não só os políticos derrotados, mas também todos os seus eleitores. Por isso as conversas que tomam conta das ruas acreanas depois da eleição são muito estranhas para os visitantes que ainda não conhecem a fina ironia acreana: “E aí, pegou alguma balsa nesta eleição? Eu não. Pois eu peguei balsa em três.”
Assim, entre uma galhofa e outra, seguem os acreanos a rir da própria desgraça. Com isso a democrática balsa leva rio abaixo todos os males, rancores e desavenças da campanha. O que há que se reconhecer: é um jeito estranho de aceitar a derrota. Mas é um jeito eficiente.
Olhando mais para trás, lembro que li num dos alfarrábios do Acre antigo a história da deposição de um dos tantos Prefeitos Departamentais que os acreanos tiveram que engolir depois que o governo brasileiro resolveu transformar isto aqui num território. Porém, o que realmente chamou minha atenção não foi a expulsão de um dos muitos ditadores, larápios ou escroques que foram nomeados para governar o Acre. Mas sim o fato de que ele foi expulso sem o direito, sequer, de esperar o próximo vapor, sendo logo embarcado em uma balsa pra pagar sua pena descendo o rio Acre. E lá se foi, sob os aplausos da população que assistia do barranco, o malfeitor exilado. Descendo lentamente de bubuia, curva após curva, pegando pium, fugindo dos remansos e esperando receber uma ajuda que não viria, pois que era um passageiro da balsa, e nunca houve um que prestasse.
Lembro perfeitamente de ter lido uma passagem do livro Na Planície Amazônica, de Raimundo Morais, que diz exatamente o seguinte: “Reconhecidamente daninho ao comércio comedido, o regatão paga alto imposto. Apanhado a negociar com a freguesia alheia e comprometida, os proprietários de seringais fraudados metem-no a ferros, surram-no e largam-no de bubuia.”
Como também lembro de um dos textos de Euclides da Cunha chamado “Judas Asvero” onde ele conta de um estranho costume que encontrou entre os seringais do Purus, no início do século XX.
Com sua prosa delirante e barroca, Euclides descreve passo a passo a atitude dos seringueiros que, em vez de simplesmente malharem o Judas no sábado de aleluia, como é comum em todo o mundo católico, fazem o boneco com todo o capricho e depois embarcam-no numa tosca balsa que largam ao sabor da correnteza. Mas deixemos o próprio Euclides contar o que acontece a seguir: “E o Judas feito Asvero vai avançando... Então os vizinhos mais próximos, que se adensam, curiosos, no alto das barrancas, intervêm... com repetidas descargas de rifle aquele bota-fora... E a figura desgraciosa, trágica, arrepiadoramente burlesca,... desafiando maldições e risadas, lá se vai na lúgubre viagem sem destino e sem fim, a descer, a descer sempre,... à mercê das correntezas, ‘de bubuia’ sobre as grandes águas.”
Depois disso tudo, só posso chegar à conclusão de que se a balsa é uma importante instituição acreana, então, descer o rio “de bubuia” é um santo e secular remédio amazônico para curar alguns dos males que afligem o povo sofrido dessas margens. É descendo o rio que se podem purgar as penas e cumprir os destinos perdidos.
E foi por esses antecedentes que eu acredito que o venerável mestre da Crônica da Cidade, Aloísio Maia, criou a moderna versão mais light, na qual a balsa reserva aos seus passageiros apenas uma breve e bucólica estada em Manacapuru, ouvindo o melancólico choro dos surubins. Não consigo deixar de ver uma estreita conexão, quase sociológica, entre a balsa contemporânea e aquelas antigas que carregavam os malditos de todos os tipos, reais ou simbólicos, pra bem longe do Acre...
Eu ainda estava entretido por esses pensamentos quando chegamos a Porto Acre e fui forçado a voltar para o mundo real. Depois de mais de hora debaixo de sol, era preciso encostar a voadeira no barranco. Pelo menos carregávamos um motor relativamente limpo, apesar de enguiçado. Mas a essa altura, nem raiva eu sentia mais. O que uma boa viagem de bubuia não é capaz de curar?

Publicado na revista Outras Palavras, n. 18, dezembro de 2002.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Cenas contemporâneas da antiga Sena



Nesta semana o aniversário de 108 anos de Sena Madureira me fez lembrar, com muita saudade, aliás, de um dos trabalhos mais bonitos que já tive oportunidade de participar: a Cavalhada. Por isso, fui buscar no fundo do baú um texto que publiquei em 1999 na Revista Outras Palavras.


Certo dia entrou no Departamento de Patrimônio Histórico, parecendo um furacão como sempre, o Luís Doido. Entre outras coisas ele vinha nos contar que tinha ficado sabendo de uma antiga tradição que existiu em Sena Madureira há muitos anos atrás e que havia sido perdida. Tratava-se de uma festa com forte apelo popular e era chamada de Cavalhada. A partir desse dia fomos assaltados por uma verdadeira enxurrada de informações e referências às tais cavalhadas. Tanto sobre aquelas que acontecem tradicionalmente em diversos estados do nordeste e do centro-oeste, quanto sobre essa cavalhada acreana que desde a década de 40, pelo menos, mobilizava intensamente a população de Sena Madureira.
Eu sempre digo que existem histórias que se contam. Por mais que tentemos não nos envolver com elas, quando percebemos... já era, "tomaram de conta" de nosso trabalho, cotidiano e atenção. Definitivamente este era o caso da tal Cavalhada de Sena Madureira. Não foi preciso procurar muito. Logo na primeira ida para Sena, guiados por meu querido e saudoso Agnaldo Moreno, descobrimos que apesar de não acontecer há 35 anos, havia muitas pessoas que se lembravam perfeitamente dos detalhes e de todo o ritual seguido pela tradicional Cavalhada. Desde então percebemos que não conseguiríamos nos limitar a pesquisar e conhecer a tal tradição perdida. Logo se impôs que tentássemos realizar uma nova Cavalhada, seguindo, é claro, a característica original das cavalhadas antigas. Essa necessidade estava expressa na dolorida ausência demonstrada por todos com quem conversávamos sobre o assunto. Invariavelmente as pessoas declaravam de forma espontânea a presença daquele velho sentimento:
- Eu sou do Encarnado.
Ou então:
- Eu sempre fui do partido Azul.


Assim sendo, não nos restou outra saída além de, junto com o pessoal da Rádio Difusora de Sena, trabalhar para trazer de volta a festa que tanta falta e saudade provocava naquela cidade. O que não significa que tenha sido fácil. Pelo contrário, o local escolhido para a construção da pista parecia ter uma caveira de burro enterrada, mostrou-se impossível realizar a cavalhada no dia tradicional (25 de setembro) em função das sempre inúteis disputas políticas locais, seria preciso realizar pelo menos um mês de treinos para adestrar cavalos e cavaleiros. Enfim, foram diversos os obstáculos e as dificuldades que apareciam a cada momento. Por outro lado, a disposição que os antigos senhores de Sena Madureira - encabeçados por Seu Nacélio, Anazi e José Seda que haviam participado das cavalhadas de 35 anos atrás - demonstravam para ajudar na organização e realização dessa nova cavalhada, não nos permitia esmorecer. Até mesmo os tradicionais ódios políticos que recheiam a história do Acre de paixão e tragédias, e que em Sena Madureira dão a impressão de serem ainda mais radicais, pareciam perder força diante da enorme vontade coletiva de reviver aquela antiga tradição.

Finalmente, no sábado à tarde, dia 9 de outubro, estava tudo pronto para a realização da Cavalhada. Até São Pedro ajudou segurando as águas que certamente cairiam pelas previsões dos mais pessimistas. Só uma coisa me incomodava. Havia sobrado pra mim a função de fotógrafo da festa, o que além de não ser exatamente minha especialidade, não me permitia dar toda a atenção que eu gostaria nos acontecimentos ao redor.

A concentração de cavalos e homens na frente da casa do Seu Nacélio revelava que a tensão não era só minha. Afinal de contas tente reunir vinte cavalos, quase todos garanhões (ou inteiros, como o pessoal daqui fala) e vinte homens loucos para montar seus animais e vencer os adversários pra imaginar a eletricidade que percorria o ar. Foi quando eu comecei a ver algumas imagens inteiras ou fragmentadas, que lentamente começaram a operar dentro de mim aquela estranha ligação entre o hoje e o distante.

Infelizmente, no espaço deste artigo não cabe tudo quanto se passou naquele dia movimentado. Só o que posso fazer é mencionar um pouco do que foi ver a tarde da cidade sendo invadida pelos cavaleiros em desfile, tendo a frente as duas belas meninas-madrinhas, uma pelo partido Azul e a outra pelo Partido Encarnado, em meio às mútuas provocações dos cavaleiros: Dá-lhe Azul ! Viva o Encarnado! Essa Cavalhada será nossa! Situação que durou até a entrada da pista.
Aí, então, a hora era de disputa e, portanto, séria demais pra permitir brincadeiras. Enquanto os meninos da cidade, entre curiosos e excitados, tentavam entender que raio de torneio era aquele que nunca haviam visto antes, os respeitáveis senhores e senhoras de Sena Madureira voltavam a ser crianças diante das gostosas recordações que aquele evento lhes proporcionava.


De meu lado, diante daquela precária condição de fotógrafo, eu via as cenas que se desenrolavam na pista como quadros limitados pela objetiva da câmera. O desfile inicial dos cavaleiros vestindo as cores de seus partidos, sua evolução pela pista e a saudação ao governador e às madrinhas dos partidos. A partida, ao toque do corneteiro, dos pares de cavaleiros em direção à trave que sustentava as argolas. Os cavalos afogueados que, em pleno galope, pareciam não caber nos limites da pista da corrida. A habilidade dos cavaleiros de ambos os partidos em acertar e pegar as pequenas argolas com suas lanças de madeira. A emoção estampada no rosto do povo presente quando o juiz anunciava para quem ia o ponto de cada carreira, se para o Azul, para o Encarnado ou para ambos. As discussões porque aquele cavaleiro do Azul não havia cumprimentado a madrinha de seu partido durante a carreira, como mandava o regulamento.

A aglomeração cada vez maior de pessoas em todas as partes da pista, inclusive na área de dispersão dos cavalos, o que podia provocar algum acidente. A felicidade daquele hábil cavaleiro que com a argola capturada pela ponta de sua lança se encaminhava ao público e escolhia aquela que iria receber a argola recém conquistada. A alegria no rosto da velha senhora que também recebia uma argola de presente como justa homenagem de seu filho, agora importante cavaleiro representando o partido do seu coração. A decepção dos partidários do Encarnado ao perceber que o Azul estava conseguindo tirar mais argolas, fazendo com que sua vitória fosse iminente. A satisfação expressa no brilho dos olhos dos mais antigos moradores de Sena, ao ver que o passado não estava perdido, enfim.

Mas de todas as cenas que vi e fotografei naquele dia uma me pareceu especial. Foi quando, ainda durante o desfile, a imagem dos cavaleiros modernos em suas roupas tradicionais se sobrepôs à imagem da velha casa da família Queiroz, na principal avenida da cidade, e me causou uma estranha sensação. Eu já não sabia se o que via estava em colorido ou em preto e branco. Por alguns instantes, aquele enquadramento da máquina fotográfica limitava um tempo tão longo que eu tampouco sabia se fotografava o presente ou o passado. Foi só aí que entendi o sentido de tudo o que estava acontecendo naquele exato momento em Sena. E o melhor de tudo é que no ano que vem tem mais. Dá-lhe encarnado!