No começo do ano propus fazer aqui nesta coluna, de vez em quando, uma sub-coluna sobre corridas. Mas foi uma promessa vã, nunca a cumpri. Talvez me falte traquejo para tanto. Afinal, a crônica esportiva em nosso país foi alçada à condição de arte literária da mais alta qualidade por craques como Nelson Rodrigues, João Saldanha, Armando Nogueira e, localmente, Dandão. Como poderia contar sobre corridas senão com um tanto de arte, o que talvez me falte.
Entretanto, hoje queria arriscar dividir algo que sinto e que é difícil de explicar.
Lembro-me com grande clareza daquele fim de semana. O que não deixa de ser estranho por conta de que hoje em dia mais me esqueço do que lembro. Mas nada indicava que iria ser um fim de semana diferente. A não ser pelo fato de que tinha corrida e logo em seguida, na segunda-feira, eu teria uma importante viagem de trabalho. Ia escavar cavernas no sertão das Minas Gerais. Havia, por isso, certa excitação especial naqueles dias.
Já na sexta-feira saiu a notícia e a imagem da espetacular decolagem do carro do Rubinho Barrichelo durante os treinos livres. Vi no Jornal Nacional. E o acidente foi grave a ponto de Rubinho ficar fora daquela corrida. Normal, corridas implicam em riscos e acidentes ocasionalmente. Aliás, penso que é exatamente o alto risco que faz as corridas valerem o que custam. Não dá pra negar que o insano desafio à morte perpetrado por esses gladiadores pós-modernos é o que me prende a esse fútil subproduto da indústria automobilística.
Afinal, haveria outro motivo pra correr? Poderia haver outro motivo pra morrer? Dinheiro, fama? Que nada, é óbvio que os caras correm porque o desejo de desafiar a morte é maior e mais poderoso do que a própria necessidade de preservar a vida. Porque, não sei. Parte das contradições inerentes aos humanos, talvez.
 
O fato é que o sábado já foi bem diferente. Eu estava assistindo a classificação na hora da batida do Ratzenberger. No instante mesmo em que ele bateu compreendi: Fudeu! A pancada, meio de frente, um pouco de lado, a cabeça pendente no cockpit, inerte, não dava margem a duvida. Acho até que me lembro de grandes acidentes anteriores em que pilotos lendários como José Carlos Pace e Villeneuve morreram. Mas nunca antes, até esse momento, senti com tanta intensidade e inequívoca consciência o travo amargo da morte.
E foi um arraso. Não só na minha cabeça, mas, ao que pude perceber, também lá em Imola. Parece que todos os pilotos sentiram como eu que algo estava muito errado. A morte rondava irresistivelmente. Era uma hora difícil de suportar. Ainda assim, o show tinha que continuar!!!! Nessas ocasiões é que compreendemos nosso verdadeiro tamanho. Porra nenhuma, subextrato de pó de bosta! Apenas mais um entre os sete bilhões de seres humanos do planeta. Não faz a menor diferença, seja famoso ou anônimo. Apenas mais um nome pros almanaques (ixê coisa antiga), pros sites e blogs, digo.
Lembro-me também que um dos pilotos que mais parecem ter sentido o peso da morte de Ratzenberger foi o Senna. Logo ele que sempre foi o mais destemido, desassombrado, o mais rápido e determinado de todos - de quantos existiram na história da fórmula um, acredito eu - acusou o golpe. Estranho. Mas, se até eu a milhares de quilômetros de distancia havia sentido, não deveria estranhar que ele, um cara meio iluminado em sua santa e insana loucura, sentisse.
Manhã de domingo, 1º de Maio. Acorrida prometia ser boa com Schumaker correndo atrás do Senna que já não tinha um carro tão bom quanto se esperava. E não deu outra. Senna na frente, Schumaker atrás, numa perseguição alucinante. Até que na curva Tamburello a pancada inesperada. Senna saiu da pista pra se espatifar meio de frente, um pouco de lado, do pior jeito, portanto, no muro. Deu pra sentir na hora de novo o que havia sentido um dia antes: Fudeu!
Mas é o Senna, nosso super-homem, imbatível, irresistível, indestrutível. Nada pode acontecer com ele, pensava eu. Mas a cabeça pendente, inerte, novamente não deixava dúvida. O locutor se esgoelava tentando encontrar algum movimento em Senna, em vão. Eu até juro que o vi se mexendo no mesmo instante em que o enlouquecido narrador. E, como ele, eu sabia então que era apenas o estertor da morte. Inevitável, ainda que inacreditável. Mas era. Eu sabia, o locutor sabia e, mais importante que tudo, Senna também sabia, com a única diferença que antes de todos nós. Ainda hoje acredito que Senna sabia desde o dia anterior que a morte estava ali pra cobrar seu caro tributo. Eu nunca mais esqueci aquele soco no estomago, o amargo na boca, o choro incontido e irresistível...

E no dia seguinte viajei pra trabalhar, como previsto. Afinal, aconteça o que acontecer o show tem que continuar. Só nunca esqueci.
E, vocês sabem, estes têm sido dias estranhos novamente. Dois fins de semana seguidos, duas mortes impressionantes: Dan Wheldon na Indy e depois Simoncelli na MotoGP. Dois caras que acreditavam no que faziam e morreram fazendo o que amavam mais que a própria vida: desafiar a morte.
Porque é assim eu não sei. Só sei que assim são as corridas. E corridas são como a vida, carecem de motivos, razões ou sentidos.
* Frase da musica “Pense e dance” do Barão Vermelho.

Diferente do Pinhão Roxo que, desde que cheguei por aqui, teima em ficar na porta de casa. E ainda muda de lugar. Uma hora ele está do lado de cá, cresce, dá flores e sementes e murcha e some. Tempos depois um de seus filhotes reaparece pra lá do portão. Mas nunca deixa de ficar por ali, perto da porta rondando. Ainda bem! O povo diz que é bom ter Pinhão Roxo na porta de casa, porque afasta o mau-olhado, dizem. Eu até gosto de suas flores breves e brutas, como gosto do vermelho meio verde que suas folhas tem de vez em quando. Mas gosto mesmo é de pensar que eu protejo ela no quintal e ela protege nós todos aqui em casa das maldades do mundo lá fora.
Na verdade, meu quintal é muito generoso. Tanto que, às vezes, chega a ser inacreditável. Pra você ver. Teve um dia em que Maria Duy, da janela de nosso quarto, olhava o espaço vazio entre o muro e a casa e pensou alto: “Bem que podia ter um pé de goiaba aqui. Ai eu ia poder colher da janela e comer sentada no batente.” E achando pouco o que ainda só imaginava, exagerou: “Mas tem que ser da vermelha, minha preferida!”
Melhor é o cajá. Casquinha fininha, doce e azedinho, suculento que só. Podia dar mais cajá, mas só dá duas vezes no ano. Tem problema não. Gosto de ter a Cajazeira aqui com a gente. Certa vez conheci um lugar de pretos antigos que tinha uma Cajazeira Sagrada, imensa no meio do terreiro. Como haviam, muito tempo antes, me pedido que assim fizesse fui lá e toquei em suas raízes. Por isso e por outros acontecimentos, aquele foi um dia muito especial e abençoado. Mais tarde, uma senhora daqui, vizinha nesse perto-longe que é o São Francisco, pediu pra entrar e tirar um pedaço da casca de minha jovem Cajazeira. Deixei ressabiado, já que era pra fazer remédio. Mas ela teve cuidado e tirou só o bocado que estava precisando. Santa sabedoria desse povo mais antigo que os jovens não conseguem compreender.