segunda-feira, 10 de maio de 2010

Quase tão bom quanto sexo...

Este ano e, em especial, estas últimas semanas tem me deixado muito animado pela profusão de eventos, publicações e palestras de alta qualidade que vem acontecendo. Pra facilitar um breve passeio por esse conjunto de “animações” serei, grosso modo, cronológico.

Relicário
Logo no reinício desta coluna prometi tratar mais detalhadamente do excepcional livro de Edson Lodi, um dos principais dirigentes da União do Vegetal, chamado “Relicário – Imagens do Sertão”. Um verdadeiro primor, a começar pela edição do livro, realizada com material de primeira qualidade e uma programação visual agradável, limpa e, o mais importante, que valoriza ainda mais o extraordinário conteúdo deste enorme trabalho de pesquisa.
Em “Relicário”, Edson Lodi descreve boa parte da trajetória desse importante personagem da história da Amazônia Ocidental e do Brasil: a vida e a obra do Mestre José Gabriel da Costa, criador da mais recente das três doutrinas que fundaram uma nova religiosidade, originada da floresta e dos povos que nela vivem, em nosso planeta já tão sofrido de tantas guerras e sofrimentos.
Mas, como já falei no lançamento acreano (realizado como parte da programação do Seminário das Culturas Ayahuasqueiras – que pra mim foi um dos mais importantes eventos ocorridos no Acre nos últimos tempos – mas que, por isso mesmo, merece um artigo específico) deste livro tão belo quanto importante, seu maior mérito talvez nem esteja em sua primorosa e bem cuidada edição, e nem mesmo em seu tema tão relevante. Talvez, sua mais importante contribuição esteja no original meio que Edson Lodi encontrou para tratar de assuntos tão difíceis quanto perigosos, como os que envolvem práticas religiosas. É que o caminho encontrado por Lodi foi o da arte, tão pouco lembrada quanto se fala de manifestações religiosas da Ayahuasca.
Ou seja, este livro desfia sua história através da vida e da atividade do fotógrafo oficial dos primeiros tempos da União do Vegetal e das musicas que foram utilizadas por Mestre Gabriel e seus seguidores em suas praticas espirituais. Um repertório musical constituído pelos estilos e canções mais populares e tradicionais de nosso vasto sertão interior. Um Brasil de trabalhadores e homens simples tão pouco conhecido, e menos ainda reconhecido, repleto de arte e de fé. E por isso, improváveis leitores desta coluna, importante saber que este é um grande livro, daqueles que precisam ser lidos.

Sueño de La Razón
Mais recentemente fui convidado a participar do Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre (FESTFOTOPOA), onde as mesas redondas discutiram temas como preservação de acervos fotográficos, implantação de Pontos de Memória Fotográfica a partir da experiência dos Pontos de Cultura efetivada pelo MinC e os desafios contemporâneos da fotografia digital e sua profusão de imagens que parecem impossíveis de serem armazenadas na mesma velocidade com que são produzidas.
Mas o que mais me falou ao coração durante este festival - coordenado pelo grande parceiro do Acre, com vasta produção junto aos seringueiros daqui, Carlos Carvalho, a quem devo agradecer o convite e os meios necessários à minha participação - foi mesmo o lançamento da revista “Sueño de La Razón”. Produto de um coletivo de fotógrafos que atuam em nove países da América Latina e que se reúnem, mesmo sem nenhuma remuneração, em Santa Cruz de La Sierra para produzir esta linda revista, que destemidamente revela, não só a excepcional qualidade da fotografia que se pratica por aqui, como as entranhas dessa estranha América despedaçada que somos nós. Sobre, por exemplo a América do povo Mapuche que ainda luta no Chile, como faz já há quinhentos anos, por seu território original. Metáfora de um continente invadido, expropriado e ainda hoje dividido entre povos que não se conhecem e nem se respeitam.
O coletivo que produz essa revista está disponibilizando suas edições em PDF pra quem quiser conhecê-la (já disponível em www.olhave.com.br). Os números 0 e 1 já estão circulando e o financiamento que conseguiram garante apenas a publicação dos dez primeiros números. Torço muito pra que essa iniciativa possa durar muito mais porque nos serve de referência para o que deveríamos estar fazendo desde sempre: olhar atentamente pro interior dessa surpreendente e assustadora América, ainda que por mais nada, só pra nos inundar de sua beleza e força.

O Povo Manchineri e os Sítios Arqueológicos do Acre
Como já me estendi demasiadamente, vou ter que ser muito breve ao me referir a palestra da Pirjo Kristiina Virtanen. Tenho que reconhecer aqui que foi um grande prazer assistir a essa doce Finlandesa, que transita entre nós já há alguns anos, trazer de volta o resultado de seus trabalhos sobre temas tão variados como: jovens indígenas acreanos, mitos e história Manchineri e relações entre povos indígenas e os sítios arqueológicos geométricos (os ainda sensacionalistas geoglífos).
É raro ver pesquisadores comprometidos com as comunidades e sociedade com as quais se envolve durante sua pesquisa. A grande maioria dos mestres e doutores que escolhem coisas e gentes do Acre como tema, vem pra cá durante a pesquisa, ocupa a mídia, faz sua autopromoção travestida de genuíno interesse e colaboração com a sociedade regional e nunca mais aparece pra contar o que fez com tudo o que aprendeu por aqui.
Pois a Pirjo é uma exceção (daquelas que confirma a regra). Se envolveu com as pessoas daqui, foi sincera em suas intenções e praticas, produziu o que prometeu, e o que é ainda mais raro, reconheceu o que já estava sendo feito por aqui e voltou pra devolver seus resultados.
Com isso a Pirjo reflete a mesma conduta correta que seu mestre, o Prof. Martti Pârssinen, vem demonstrando em seus trabalhos, nos quais sempre cita corretamente as pesquisas, as datações, as hipóteses e conclusões que Ondemar Dias Jr, Célia Souza (que já acumula dez anos de saudades) e eu produzimos acerca dos sítios arqueológicos acreanos, nos últimos 30 anos. Quanta diferença em relação aos doutos senhores que, em sua extrema arrogância, acham que descobriram tudo e tomam descaradamente as conclusões alheias como se deles fossem, distorcendo as informações científicas de acordo com seus interesses pessoais inconfessados.
Assim a palestra da Pirjo foi mais uma comprovação cabal de que nada é superior à ética, quando lidamos com coisas tão sensíveis quanto o imaginário e a constituição cultural dos povos da floresta. Como vem demonstrando tão bem diversos pesquisadores que atuam no Acre.
Esta atuação eticamente irrepreensível pode ser facilmente encontrada, por exemplo, nos excepcionais trabalhos que vem sendo desenvolvidos por Manuela Carneiro e Mauro Almeida, cuja citação aqui não é gratuita, mas está relacionada à ultima publicação que ainda queria mencionar neste artigo.

Amazônia Antiga
É que esta semana recebi um presente muito precioso do grande amigo Marcelo Piedrafita. Trata-se do estraordinário livro “Tastevin, Parrisier: Fontes sobre Índios e Seringueiros do Alto Juruá” com transcrições de textos destes dois missionários franceses que percorreram o Juruá acreano ainda no final do século XIX e início do século XX. Uma leitura indispensável para a escrita da milenar história indígena acreana (assunto ao qual terei que voltar no futuro). O que me tem forçado, prazerosamente, é bom que se diga, há algum tempo na rede da varanda, sempre que o trabalho e os meninos deixam, enquanto desfolho esse verdadeiro tesouro em forma de livro.
Tenho mesmo que admitir, ler livros como esses aqui relacionados - que descrevem com maestria diferentes aspectos de nosso interior latino americano, amazônico, espiritual - é quase tão bom quanto sexo.

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