sábado, 22 de maio de 2010

Dez anos ... (1ª Parte)

“Retrocedendo aos primórdios e acompanhando o curso das coisas até o fim, aprendemos os ensinamentos do nascimento e da morte. A união da semente e da força gera todas as coisas; a evasão da alma causa a mutação. Através disso podemos reconhecer as condições dos espíritos que partem e dos que retornam.”
(I Ching, o Livro das Mutações, Pág. 226)

“Ando devagar
Porque já tive pressa.
E levo esse sorriso
Porque já chorei demais.
Cada um de nós
Compõe a sua história.
Cada ser em si carrega o dom
de ser capaz e ser feliz...”
(Almir Sater)

Formalmente seu nome todo era Mauricélia Barrozo Alves de Sousa (Barrozo com z e Sousa com s, favor não se enganar). Mas ninguém a chamava assim. Nem em casa e nem na rua. Para todos ela era apenas Célia e para alguns, muitos, ainda, simplesmente Célinha.
Quem não a conhecia achava, à primeira vista, que era integrante de uma das muitas tribos acreanas. Uma bela índia de olhos claros, da cor do mel. E, na verdade, ela era mesmo tão doce quanto o mel de seus olhos. Mas não era indígena. Pelo menos não assim, de forma direta.
Seu pai, Seu João, era mais um dos muitos nordestinos vindos na loucura da Batalha da Borracha. Sua mãe, Dona Joana, era do interior do Acre, filha de nordestinos e, talvez, também de indígenas dessa grande floresta acreana.
Aliás, para a grande maioria, a Célinha era acreana do pé rachado e isso de fato ela era. Mas, por força do destino, havia nascido em Guajará Mirim, nesta imensa fronteira entre o Brasil e a Bolívia, filha dessa infinita floresta sem fronteiras. E amava esta terra, com uma força e uma determinação impressionantes. Por isso mesmo, ninguém tinha dúvida que ela fosse daqui, filha daqui, do Aquiry.
Pra dizer a verdade ela era uma pessoa muito fácil de lidar, na dela, apesar do permanente brilho de seus olhos revelar aos mais atentos que ela era calada por jeito, mas de boba não tinha nada. Entretanto, apesar dessa característica e contagiante tranqüilidade, queria ver a mulher virar onça era só falar mal do Acre.
Quantas vezes eu vi ela, lá no distante e intolerante sul maravilha, defendendo com unhas e dentes o Acre. E olha que não era uma época muito fácil de fazer isso. Início dos anos 90, um monte de coisas dando errado por aqui. Mas isso não importava. Nunca fez a menor diferença. Em sua presença ninguém falava mal dessa terra que ela tanto amava.
E não estou, em absoluto, exagerando. Nem sequer estou falando isso pra valorizá-la, porque ela não precisava disso, e quem a conheceu sabe. Mas por uma questão de justiça. Não havia semana em que ela não ligasse algumas vezes pra família, pra saber como estavam as coisas por aqui, pra contar como tinha saudade e como não via a hora de voltar logo...
Era tanto Banzo, tanto sofrimento pela distancia inclemente, que acabou me convencendo a vir pra cá. Primeiro de visita; pra conhecer essa floresta já distante, estranha e inesperadamente restrita ao horizonte. Mas também pra conhecer a Rainha da Floresta e ver/ouvir/sentir (não há verbo na língua portuguesa que possa expressar essas coisas) suas lições, que ainda busco compreender, mesmo vinte anos depois, diga-se de passagem.
E com isso, mais tarde, me convenceu a vir de vez, largando emprego, mestrado, família, amigos e todo o resto; pra mudar definitivamente minha vida; pra aceitar o fato que ninguém vem ao Acre impunemente. Pra aprender de uma vez por todas que aqui não temos uma causa, no Acre, é a causa que nos tem. Como sabiamente ensina, outra das extraordinárias mulheres acreanas, Marina.
Foi só então que eu soube inteiramente quem era a Mauricélia, Célia, Celinha. Que pesquisadora extraordinária! A mais disciplinada, detalhista, organizada e perfeccionista pesquisadora que já conheci nesta vida. Daquelas que não aprendeu a ser assim. Sempre foi. ÔÔÔÔ que inveja monstra... ÔÔÔ que falta doida...
Até onde eu sei, contar o tanto que essa mulher produziu ao longo de sua tão breve atividade profissional, não caberia aqui... Essa é uma história que ainda vou ter que escrever um dia, apesar dela ser tão viva na cabeça/coração de tantas pessoas, apesar de estar registrada em tantas publicações, apesar de fazer parte da história de tantas instituições acreanas.
Mas como esse artigo é pra lembrar. Não custa lembrar pelo menos uma parte do tanto que nos deixou. Ela foi de uma turma de história antológica na UFAC. Uma turma que junto com a Profª. França (outra saudade doída) levantou todos os jornais antigos do Acre, do IGHA (Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas) e da Biblioteca Nacional, produzindo uma preciosa coleção de jornais microfilmados que ainda hoje está no CDIH-UFAC nos abastecendo de histórias e mais histórias. Jornais que, de outra forma, certamente já não estariam mais disponíveis para nós e para os pesquisadores que virão.


Um comentário:

  1. Meu amigo, conte para nós, acreanos a não muito tempo, onde se encontra Celinha??

    Abraço!
    E com saudades tb! rs

    ResponderExcluir