sábado, 22 de maio de 2010

Botija de Histórias



No próximo dia 03 de julho a cidade de Brasiléia completará cem anos de sua fundação. O que faz com que esta cidade seja uma das mais antigas do Acre. Por isso, além de aproveitar o já tradicional e animado Carnavale, esta é também uma boa ocasião pra lembrarmos algumas das peculiaridades da vida nos limites do Brasil.
Assim, nas próximas semanas esta coluna vai trazer alguns textos mais antigos e outros inéditos sobre as histórias de Brasiléia, fim do Brasil, início do Acre.




Do outro lado do igarapé*




Quando chegamos em Cobija - cidade boliviana situada na fronteira, do outro lado do Igarapé Bahia, em frente à cidade de Brasiléia - era sábado de carnaval e o que vimos foi diferente de tudo que podíamos imaginar. Ao invés da multidão pulando e dançando ao som de marchinhas carnavalescas com que estamos acostumados, as crianças corriam pra todos os lados tentando acertar bexigas cheias d’água umas nas outras. Não entendíamos nada, mas a brincadeira era divertida. Especialmente porque ninguém parecia ficar chateado ao ser atingido e infalivelmente encharcado.
Mais na frente encontramos diversos grupos fantasiados ricamente. Eram grupos de dez a vinte pessoas caracterizadas de acordo com as várias regiões dos Andes ou com grupos étnicos específicos. Foi engraçado ver aquele grupo de bolivianos pintados de preto dos pés à cabeça representando, parece, os africanos que foram trazidos para a América há séculos atrás. Outro grupo nos chamou a atenção pela beleza e luxo das fantasias de veludo negro bordadas com fios dourados e lantejoulas simetricamente distribuídas. Como nosso tempo era pouco, não pudemos assistir, mas ficamos sabendo por informações, que todos aqueles grupos desfilariam na avenida principal da cidade ao som de bandas formadas por instrumentos de sopro e de corda. Quanta diferença de nossas batucadas e blocos de “piranhas” tão familiares para nós quanto devem parecer estranhos para olhos estrangeiros.
Seguimos, então, para longe da fronteira, em direção ao interior da Bolívia, rumo à cidade de Porvenir, ponto terminal da estrada asfaltada - a margem do rio Tahuamano - e inicio de um longo caminho de lama, poeira e pedras montanha acima até alcançar La Paz, a longínqua capital boliviana, distante dali 1.145 Km.
Mais uma pequena cidade, em quase nada diferente das pequenas cidades de nosso próprio interior, Porvenir existe em torno de uma praça dominada por um monumento que ao invés de possuir a tradicional estatua do herói local ou nacional, é diferente, possui três estatuas. Paramos a frente do estranho monumento tentando entender seu significado. E o que logo nos chamou a atenção em sua placa comemorativa foi a referencia ao combate, de triste memória para os brasileiros, do Igarapé Bahia. Grande vitória boliviana, conquistada às margens do igarapé que hoje divide o que é Brasil e o que é Bolívia.
Isso nos fez procurar alguém que pudesse contar o significado daquelas três estátuas e encontramos dona Ana Aguilera, uma simpática “maestra jubilada” que com menos de meia hora de conversa havia encantado a todos com a objetividade e sinceridade que expressava em todas as suas opiniões. E foi assim que além de nos explicar o significado do monumento, Dona Ana nos revelou algumas verdades que nunca havíamos sido capazes de compreender.
Com imensa surpresa aprendemos com a simpática professora aposentada que a Bolívia não foi derrotada na Guerra do Acre. A Bolívia perdeu o Acre sim. Mas não pelas armas. Perdeu pela lei, pelos tratados negociados com honra e honestidade e recebeu suas compensações por isso. Soubemos também que aquela famosa coluna Porvenir vitoriosa sobre os brasileiros à margem do igarapé Bahia, não era do exército regular boliviano, mas formada por seringueiros e campesinos da região, em nada diferente do exército de seringueiros brasileiros que tanto nos orgulhamos de lembrar.
Foi assim, numa tarde de sábado, em plena Bolívia, que tivemos uma aula de história e também uma lição inesperada sobre a secular necessidade do encontro entre dois povos vizinhos que não se conhecem.
Quanto ao combate do igarapé Bahia e à estatua de Porvenir só no próximo artigo.

* Artigo publicado no Jornal Estado do Acre, em 25 de fevereiro de 2002


Um comentário:

  1. Só lembrando que La Paz é a capital administrativa dos nossos hermanos, sendo a capital boliviana oficial, a cidade de Sucre, localizada mais ou menos no centro da Bolívia.

    Paz irmão.

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