segunda-feira, 24 de setembro de 2012

“Cuando los hombres lloran, por algo lloran”* (II)


Diário de campanha do cabo boliviano Hernan Lopez



30 de junho
Noticias mais tranquilizadoras nos chegam do Acre e motivam o animo da tropa. A flotilha federal afastou Galvez e parece haver mais receptividade a um governo boliviano. Dom Muñoz nos dá ordem para preparar a partida rumo ao Acre. Finalmente chegaremos ao teatro das operações e poderei provar meu valor em combate.

22 de agosto
Chegamos ao seringal Capatará com D. Muñoz e mais 200 homens.


30 de agosto
Ao passarmos pelo Seringal Humaitá, um dos mais ricos do Acre, fomos recebidos com honras pelo Capitão Leite, defensor da causa boliviana.

22 de setembro
Chegamos a Puerto Alonso, quase um ano após nossa partida de La Paz. Dom Muñoz recebeu o povoado das mãos de Alberto Moreira Júnior, arrendatário legal da alfândega. Nosso comandante decretou o fim do estado de sítio e proclamou um manifesto que falou em paz e ordem, com respeito às propriedades constituídas e com justiça para todos. Finalizou com um elogio para os soldados que efetuaram a longa travessia. Bem que a gente mereceu.
Nossa animação é ainda maior quando recebemos notícias dando conta de que as duas novas expedições que partiram da Bolívia, uma sob o comando do Ministro da Guerra e outra do próprio Vice-presidente da Bolívia, estão próximas do Acre.

19 de outubro
Recebemos a grave noticia de que em Bagaço o Cel. Gentil Norberto aprisionou nosso Vice-presidente Velasco e o Ministro da Guerra Ismael Montes. Por isso Dom Muñoz ordenou que movimentássemos as tropas visando libertar aquelas autoridades. Porém, sentindo que sua situação não era das melhores, o facínora brasileiro Gentil Norberto voltou atrás e libertou nossos comandantes.

30 de outubro
Partimos de Puerto Alonso para Capatará sob o comando de Dom Muñoz para angariar víveres enquanto o Cel. Ismael Montes ficou de trazer o restante da tropa estacionada no Órton. A situação de Puerto Alonso é precária, falta comida, a beribéri grassa e faz inúmeras baixas. Eu também já estou doente, mas de impaludismo. A moral de todos os soldados está cada vez mais baixa.

20 de Novembro
A situação é grave. Estão ocorrendo diversos incidentes e guerrilhas entre os militares e milícias brasileiras armadas ao longo do rio. Tocaias e pequenos combates já explodiram no Paperi, no Cajueiro, na Volta da Glória e no Bom Destino. A lancha Íris que fazia os contatos entre nossas tropas de Puerto Alonso e da Volta da Empreza, foi alvejada durante a viagem. Chegam boatos de que uma expedição armada pelo governo do Amazonas já sobe o rio.


12 de dezembro
Novas notícias dão conta que as tropas do Órton comandadas por Ismael Montes se estabeleceram no seringal Riosinho e foram atacadas pelos acreanos pela manhã em três flancos sob o Comando de Hipólito Moreira e Edmundo Bastos. Uma hora depois José Alexandrino e Leonico Moreira chegaram com mais homens pelo lado oposto do rio. O tiroteio durou duas horas ao fim dos quais os acreanos foram postos para correr. Ficamos todos animados com essa vitória, mas ninguém conseguiu disfarçar a preocupação que sentimos ao saber da morte de pelo menos cinco dos nossos durante o combate. Uma guerra sempre é cruel e cobra alto preço pela glória.

24 de dezembro
A situação está cada vez mais difícil. Se não nos matam os brasileiros da tal Expedição dos Poetas que já nos cerca em Caquetá, nos mata a fome. Não temos mais víveres e a retirada é eminente. Além de fraco estou imensamente triste porque o impaludismo tomou conta de mim e já nem posso guerrear. Destino ingrato que me fez vir lutar nestas distantes florestas perdidas do mundo. Porque temos que nos sacrificar desse modo desumano se estas terras são legitimamente nossas? Que pecado o povo boliviano cometeu para ter esse destino de ser assaltado por todas as outras republicas da América Latina? Certamente um pecado tão grave quanto o meu, que ousei sonhar com as honras da guerra, mas só ganhei cicatrizes pelo corpo, fome e medo de ser morto em uma emboscada inglória. E essa maldita doença que me consome...
Ouço tiros lá fora... É o combate que começou... Preciso me juntar aos soldados... agora...

Tellegrama oficial
Comunicamos morte Cabo Hernan Lopes VG morreu Puerto Alonso VG 24/12/1900 VG motivo impaludismo PT


Obs: Antes que alguém pense o contrário devo esclarecer que, embora as informações históricas sejam todas verídicas, o cabo Hernan Lópes é ficcional...

* Frase do General Baldivieso descrevendo anos depois os acontecimentos (in Tocantins, 1979, pag.417)

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

“Cuando los hombres lloran, por algo lloran”* (I)


Diário de campanha do cabo boliviano Hernan Lopez


25 de outubro de 1899
Estamos começando hoje uma grande aventura. Minha alma de soldado está feliz porque finalmente terei oportunidade para provar meu valor. Não existe nenhuma felicidade maior do que a guerra para um homem que se quer guerreiro.
Esse é o sentimento que toma conta de toda a tropa quando saímos de La Paz para cumprir importante missão na selva. É verdade que sabemos muito pouco acerca do que nos espera. Só sei que na região do rio Acre, alguns brasileiros insistem em não reconhecer nossa soberania sobre aquelas terras. Portanto somos portadores da grave missão de impor a lei e a ordem sobre aquela sociedade degenerada.
Nunca mais poderei esquecer essa manhã de um sol radiante que ilumina o nosso caminho, como que nos desejando boa sorte e sucesso. 

31 de outubro
Nosso comandante, Dom André Muñoz, novo Delegado Nacional da Republica, conduz os soldados com altivez pelo altiplano andino. Porém os 3.000 metros de altitude das montanhas, a aridez das estepes e o peso do equipamento militar torna a caminhada bastante cansativa.


25 de novembro
Completamos um mês de jornada e só agora alcançamos a região de neve eterna. Agora temos que atravessar os afiados cumes da Cordilheira Real dos Andes, cujos picos brancos eternamente nevados rasgam o céu. O ar muito fino parece não ser suficiente para encher os pulmões ansiosos por oxigênio. Por todos os lados os soldados, e mesmo os oficiais que viajam menos carregados, dão mostras de cansaço. Mas nosso comandante não nos deixa esmorecer lembrando-nos da importância de nossa missão.

9 de dezembro
Depois de tantos dias de caminhada por entre os abismos e penhascos da descida dos contrafortes do oriente alcançamos as ultimas encostas andinas e pudemos ver, pela primeira vez, um espetáculo soberbo. A selva imensamente verde preenchendo o horizonte com um mar de folhas até onde alcança nosso olhar. Larga planura somente recortada pelas águas tranqüilas do rio Beni.

14 de dezembro
Alcançamos Riberalta, povoado à margem do rio Beni, onde Dom Muñoz estabeleceu nosso acampamento base.  Do rio Acre chegam notícias alarmantes. Um espanhol chamado Galvez conflagrou todo o Acre proclamando uma Republiqueta da borracha. Mas antes de marchar sobre o Acre precisávamos repor nossas forças depois da extenuante caminhada. Pelo menos ainda poderemos ter um natal tranqüilo esse ano.


02 de Março de 1900
O Major Tapias foi ao Acre e voltou com mais noticias ruins. O governo de Souza Braga que tomou o lugar de Galvez é ainda mais duro no que diz respeito a nós bolivianos. Por isso nosso comandante decretou estado de sítio em todo o território do noroeste e começou a recrutar homens, víveres, armas na vasta região do alto e baixo Beni, Vila Bela, Madre de Díos e afluentes do Orton. Impressionante é perceber que nossa própria população não nos dá apoio material ou moral. Parecem completamente indiferentes à sorte do Acre.

01 de maio
Partimos de Riberalta em direção a Mercedes, barracão no rio Órton, que tornou-se nossa nova base de operações. Começamos imediatamente a abrir um varadouro em direção ao rio Acre que permitisse o deslocamento dos 400 homens que agora integram nossa tropa.

30 de junho
Noticias mais tranqüilizadoras nos chegam do Acre e motivam o animo da tropa. A flotilha federal afastou Galvez e parece haver mais receptividade a um governo boliviano. Dom Muñoz nos dá ordem para preparar a partida rumo ao Acre. Finalmente chegaremos ao teatro das operações e poderei provar meu valor em combate.

22 de agosto - Chegamos ao seringal Capatará com D. Muñoz e mais 200 homens.

* Frase do General Baldivieso descrevendo anos depois os acontecimentos (in Tocantins, 1979, pag.417)

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Borracha para a memória



Nessa semana os soldados da borracha foram inscritos no Panteão da Pátria e da Liberdade como heróis brasileiros. Coincidentemente está em Rio Branco a equipe do cineasta Wolney Oliveira que está produzindo um documentário de longa metragem sobre a história daqueles que deixaram o sertão nordestino para fazer a Amazônia sob promessas que nunca foram cumpridas.

Durante a segunda grande guerra mundial, em fins de 1941, nenhuma matéria prima tinha situação mais preocupante do que a da borracha, cujas reservas estavam tão baixas que o governo americano se viu obrigado a tomar uma série de duras medidas internas. Toda a borracha disponível deveria ser utilizada somente pela maquina de guerra. E a entrada do Japão no conflito, a partir do ataque de Pearl Harbour, significou o bloqueio definitivo dos produtores de borracha. 

Foi essa seqüência de acontecimentos, ocorridos em sua maioria no hemisfério norte ou do outro lado do Oceano Pacífico, que deu origem no Brasil à quase desconhecida Batalha da Borracha. Uma história de imensos sacrifícios para milhares de brasileiros mandados para os seringais amazônicos em nome da grande guerra que conflagrava o mundo civilizado.
Quando a extensão da guerra ao Pacífico e ao Indico, interrompeu o fornecimento da borracha asiática as autoridades norte-americanas entraram em pânico. As atenções do governo americano se voltaram então para a Amazônia. Entretanto, nessa época, só havia na região cerca de 35.000 seringueiros em atividade com uma produção de 16.000-17.000 toneladas na safra de 1940-41. 


Para alcançar esse objetivo foram estabelecidos os Acordos de Washington através dos quais o governo americano financiaria a produção de borracha amazônica, enquanto ao governo brasileiro caberia o encaminhar milhares de trabalhadores para os seringais. Para o governo brasileiro era juntar a fome com a vontade de comer, literalmente. Somente em Fortaleza cerca de 30.000 flagelados da seca de 41-42 estavam disponíveis para serem enviados imediatamente para os seringais. 

Em todas as regiões do Brasil aliciadores tratavam de convencer trabalhadores a se alistar como soldados da borracha para auxiliar na vitória aliada. O artista suíço Chabloz foi contratado para produzir material de divulgação acerca da “realidade” que os esperava. Nos cartazes coloridos os seringueiros apareciam recolhendo baldes de látex que escorria como água de grossas seringueiras. O bordão “Borracha para a Vitória” tornou-se o emblema da mobilização realizada por todo o nordeste.

Histórias de enriquecimento fácil circulavam de boca em boca. “Na Amazônia se junta dinheiro com rodo”. Os velhos mitos do Eldorado amazônico voltavam a ganhar força no imaginário popular. O paraíso perdido, a terra da fartura e da promissão, onde a floresta era sempre verde e a seca desconhecida. Quando nem todas as promessas e quimeras funcionavam, sempre restava o bom e velho recrutamento forçado de jovens. A muitas famílias do sertão nordestino foram dadas somente duas opções: ou seus filhos partiam para os seringais como soldados da borracha ou então deveriam seguir para o front lutar contra os italianos e alemães. Muitos preferiram a Amazônia.


A partir do Maranhão não havia um fluxo organizado de encaminhamento de trabalhadores para os seringais. A maioria dos alojamentos que recebiam os imigrantes em transito eram verdadeiros campos de concentração onde as péssimas condições de alimentação e higiene acabavam com a saúde dos trabalhadores antes mesmo que fizessem o primeiro corte nas seringueiras. 

Muitos alojamentos foram construídos em lugares infestados pela malária, febre amarela e icterícia. A desordem era tanta que muitos abandonaram os alojamentos e passaram a perambular pelas ruas de Manaus e outras cidades buscando um modo de retornar a sua terra de origem.

Os que conseguiam efetivamente chegar aos seringais já sabiam que, desde o momento em que era escolhido e embarcado para o seringal, o brabo já começava a acumular uma divida com o patrão. Cedo os soldados da borracha descobriam que no seringal a palavra do patrão era a lei e a lógica daquela guerra e por isso os seringueiros não podiam abandonar o seringal enquanto não saldassem suas dividas com o patrão.

Ainda assim o crescimento da produção de borracha na Amazônia nesse período foi infinitamente menor do que o esperado. E tão logo a Guerra Mundial chegou ao fim, no ano seguinte, os Estados Unidos se apressaram em cancelar todos os acordos referentes à produção de borracha amazônica. Afinal de contas, o acesso às regiões produtoras do sudeste asiático estava novamente aberto e o mercado internacional logo se normalizaria.


Era o fim da Batalha da Borracha, mas não da guerra travada pelos soldados dela. Muitos, sequer foram avisados que a guerra tinha terminado, só vindo a descobrir isso anos depois. Alguns voltaram para suas regiões de origem. Outros conseguiram criar raízes na floresta e ali construir suas vidas. Poucos, muito poucos, conseguiram tirar algum proveito econômico dessa batalha incompreensível, aparentemente sem armas, sem tiros, mas com tantas vítimas.

Cerca de 60.000 pessoas foram enviadas para os seringais amazônicos entre 1942 e 1945 para a Batalha da Borracha. Desse total quase a metade acabou morrendo em razão das péssimas condições de transporte, alojamento e alimentação durante a viagem. Enquanto que dos 20.000 brasileiros que lutaram na Itália morreram somente 454 combatentes. Apesar disso, com a mesma intensidade com que os pracinhas foram recebidos triunfalmente pela sociedade brasileira, após o fim da Segunda Grande Guerra Mundial, os soldados da borracha foram incompreensivelmente abandonados e esquecidos.

Apesar de todos os acordos e promessas só a partir da Constituição de 1988, mais de quarenta anos depois do fim da Guerra Mundial, os soldados da borracha passaram a receber uma pensão dez vezes menor que a pensão recebida por aqueles que foram lutar na Itália. Um capítulo obscuro e sem glórias de nossa história que só permanece vivo na memória e no abandono dos últimos soldados da borracha.