segunda-feira, 9 de julho de 2012

Breve história da música no (vale do) Acre - I*


Com os meses de junho e julho, além dos dias e noites mais bonitos do ano, chegam também as festas e arraiais que mobilizam os acreanos. E como, esse ano, ainda voltou o FAMP, começo hoje a trazer pra cá uma nova série de artigos sobre a música acreana.

As ultimas décadas do século passado e o despontar do século XX, encontraram uma região da Amazônia, que tornou-se conhecida como Acre, cujo universo cultural, assim como o econômico, girava em torno dos seringais. Um modo de vida original em sua organização, cotidiano e relações foi criado naqueles anos em que milhares de homens chegaram pelos rios, vindos de diversas partes do Brasil, e do mundo, para tentar a sorte na extração da borracha. Os povos indígenas acuados por aquela invasão arrebatadora, ora resistiam, ora colaboravam, buscando mecanismos de sobrevivência étnica e individual.

Um mundo tenso onde as raças encontravam-se, as nacionalidades chocavam-se e as culturas mesclavam-se. Um mundo novo, onde os homens passavam semanas a fio isolados em meio à floresta gigantesca e inesgotável, vencendo a dureza do trabalho, a umidade do ambiente, a ameaça do impaludismo, em nome do sonho de uma vida pródiga.

Mas nem só de sacrifícios podiam viver os homens e era preciso esquecer um pouco a batalha diária, como era preciso lembrar a doçura da terra natal, dos parentes distantes e das mulheres amadas que os esperavam na volta para casa. Por isso o seringal criou suas próprias possibilidades de festejar, cantar, dançar e lembrar o que existia de belo no passado e no futuro de cada um. A casa de algum seringueiro ou o barracão do abastado e poderoso seringalista, eram assim transformados regularmente em lugar de encontro e por consequência de música. As festas nos dias santos, nos dias da pátria, nos dias de aniversário do pessoal do barracão, na chegada de visitantes importantes pelos vapores, tudo servia de motivo para a comemoração. Os bailes deveriam então tirar o atraso em que homens e mulheres encontravam-se depois de meses sem uma folguinha para distrair o pensamento. Por isso tornou-se tradicional que as festas, ou bailes (se realizados na casa do patrão), durassem a noite inteira, até que o amanhecer de domingo viesse decretar o necessário descanso para a luta a ser reiniciada na segunda-feira.
O único registro possível dessas antigas festas seringueiras nos ficou pelas páginas dos romances de José Potyguara, Océlio de Medeiros, Ferreira de Castro e quantos outros pintaram as cores da ficção-real daqueles anos longínquos em que a riqueza da borracha era tanta que chegou a ganhar o apelido de ouro negro (em razão da cor escura das pelas de borracha defumadas).

Porém, para além dos possíveis registros escritos ou gravados, permaneceu registrado, principalmente, aquele modo de vida criado nos seringais. Modo de vida tradicional e pouco alterado a ponto de ainda hoje possuir algumas de suas antigas características. Quem anda pelo interior acreano não deve, portanto, surpreender-se ao encontrar com patrões e regatões que aviam mercadorias por preços exorbitantes e com seringueiros que ainda dividem seu tempo entre a borracha, a pequena roça e a caça para a mistura das refeições. Tão pouco pode surpreender aos desavisados o costume dos forrós de final de semana, por ocasião dos dias especiais, tocados pelas sanfonas, ou pelas violas, ou pelas rabecas, ou pelas zabumbas (dificilmente por todos juntos), até o dia amanhecer.


 Já as cidades das três ultimas décadas do século passado nem podiam ser chamadas assim. Eram, na verdade, povoados com meia dúzia de casas alinhadas a margem dos rios, onde realizava-se o comércio e o abastecimento de embarcações em viagem. Essa característica comercial implicava naturalmente na diversidade dos produtos oferecidos à freguesia e o lazer aparecia como um desses produtos a ser oferecido aos consumidores esporádicos ou regulares dos povoados. Criou-se assim um modo de vida divergente daquele do seringal e que lhe servia como complemento e/ou oposição. Se os seringais eram o local da dispersão dos homens e do trabalho, os povoados eram o lugar da concentração e do lazer, onde podia-se gastar o dinheiro tão duramente obtido na faina da borracha. 

O período da entre-safra anual da seringa, que coincidia com as cheias do rio e a consequente invasão dos vapores trazendo gentes e novidades, era a época em que os povoados tornavam-se ainda mais movimentados e importantes. Aqui a música de salão predominava - com suas valsas, polcas, mazurcas e lundus - mas sem as restrições impostas pelo trabalho nos seringais. As casas onde o jogo rolava solto e onde os seringueiros em atraso podiam visitar mulheres especialmente trazidas de Manaus e Belém (o que incluía algumas européias), invariavelmente eram também os salões onde a música e a dança reuniam homens e mulheres dos mais variados interesses e atitudes.

Mas o primeiro registro realmente documental que pudemos encontrar diz respeito àquela música presente nos dias das revoluções acreanas, quando a música tornara-se menos lazer e mais reafirmação do poder ou da identidade. Data dessa época a história da música emblemática do Acre, que nem era musica ainda, mas uma poesia do soldado-médico-poeta Dr. Francisco Mangabeira que em um momento de descanso, nas trincheiras da Revolução, escreveu os versos que anos mais tarde seria musicado por Mozart Donizeti e tornaria-se o hino acreano.

É desse período também a foto dos batalhões acreanos em marcha pela floresta com parte de seus soldados carregando instrumentos musicais, além das armas, demonstrando que a música era então, como todo o resto, guerra. 


Aliás, um dos episódios mais interessantes da Revolução Acreana não é a história de um combate, mas de um pequeno acontecimento entre as renhidas lutas que travavam-se em Porto Acre. Foi quando brasileiros e bolivianos em trincheiras opostas juntaram-se por alguns minutos unidos pelo som tirado de uma flauta. Esse episódio, com toda sua simplicidade, tornou-se um dos eventos mais memoráveis daquela época, reafirmando a capacidade exclusiva da música de unir aos contrários mesmo que durante o mais intenso confronto.

* Este artigo, que aqui na coluna será publicado em partes, foi feito para a revista do Registro Musical, um projeto muito bacana do qual participei junto com Jorge Nazaré, Silvio Margarido e Danilo de S`Acre nos idos de 1996.

Um comentário:

  1. Essa história da cultura Acreana sao as bases da cultura Brasileira muito obrigado por ensinar a cultura Brasileira

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