segunda-feira, 30 de julho de 2012

Breve história da música no (vale do) Acre - IV*

Desde a influência das músicas sacras do Daime, passando pelas serenatas nas noites de lua e pela inesperada “Batalha da Borracha”, até a chegada do rádio ao Acre, a música acreana foi se transformando e adquirindo novas características.


Dentro da mesma linha de atuação, mas com resultados completamente distintos, está a formação, a partir de meados da década de 20, dos primeiros centros de Daime que sob o comando do Mestre Irineu, e mais tarde de outros como Daniel Matos, deram início a uma nova faceta musical típica do Acre: a musica sacra do Daime. A partir do contato de Irineu Serra com os trabalhos espirituais desenvolvidos pelos irmãos Antônio e André Costa em Brasiléia, os adeptos do Daime criaram movimentos musicais-religiosos que mesclaram elementos indígenas, nordestinos e católicos e desenvolveram uma forma característica de prece cantada que tornou-se conhecida como hinário.
 
Mestre Daniel Pereira de Mattos

Essa vertente musical, apesar de passar quase despercebida nos primeiros anos, deu origem a uma grande variação nos rituais das diversas igrejas de Daime que existem atualmente. Foram assim desenvolvidos bailados diversos, repertórios musicais variados - que incluem ritmos como valsas, marchas e nordestinos - e instrumentos tradicionais (violão, violino, teclados, etc.) ao lado daqueles de origem claramente indígena como os maracás.

Estavam delineadas, então, as bases sobre as quais se assentaria a evolução musical do Acre nos anos subsequentes.

No início dos anos 40 o Acre possuía uma produção musical bastante eclética. A Banda da Polícia Militar, como sempre havia feito, ainda começava suas apresentações pelo Segundo Distrito de Rio Branco, bairro mais antigo que concentrava o comércio e as residências das camadas mais populares da sociedade. Só depois de percorrer as ruas 17 de Novembro, 24 de Janeiro e 6 de Agosto, a banda atravessava o rio Acre e completava suas apresentações no Primeiro Distrito, sede do poder político e local de moradia das classes dominantes. Durante essas retretas, realizadas em frente ao Palácio do Governo, na Praça Eurico Dutra, tocava-se uma seleta dos melhores estilos consagrados às bandas. Predominavam as marchas, os dobrados, os foxes e as valsas, mas tocavam-se também boleros e sambas. Muitas dessas músicas já estavam sendo compostas pelos próprios integrantes da Banda que estabeleceram o costume de homenagear com suas novas composições os personagens ilustres da sociedade, os políticos e suas esposas ou os comandantes da corporação à qual pertencia a Banda. Getúlio Vargas, Guiomard Santos, Ten. Cel. Fontenele, Dacy Fontenele, Cap. Francisco Sobreira, são os nomes de algumas das músicas compostas por integrantes da Banda dessa época. Mas nem só de oficialismos viviam os músicos e boa parte dos sambas e valsas compostos foram dedicados às belas mulheres de então (como nas musicas “Nazira”, “Cleide Elizabeth”, “Estelita”, “Ivone”, etc.).

Banda da Guarda Territorial do Acre

Os conjuntos de pau e corda, por sua vez, também continuavam fazendo suas serenatas por toda a cidade. Houve mesmo uma época em que o sucesso desse gênero de musica era tanto que “nas noites de lua ninguém dormia” (Bararu). Nestas ocasiões, as serenatas e alvoradas causavam uma certa confluência dos músicos de pau e corda e dos instrumentistas da Banda, embora houvessem sempre aqueles músicos que preferiam mesmo tocar sozinhos. Os conjuntos de pau e corda eram formados por instrumentos variados - juntando dois violões, ou violões e zabumbas, ou sanfonas, ou instrumentos de sopro - e tocavam não só nas serenatas mas em todas as oportunidades que surgiam, tais como: em bailes populares, clubes e bares.

O panorama musical só começou realmente a modificar-se a partir de uma série de eventos que, rápida e inesperadamente, alteraram completamente a vida acreana: a eclosão da Segunda Guerra Mundial, a nova valorização da borracha e a avassaladora onda de imigração nordestina da “Batalha da Borracha”. Fatores esses, potencializados ainda mais por outros aspectos inerentes à nova situação, e que causaram uma radical transformação na cultura e na sociedade acreana e por consequência em sua música.

Sem dúvida, uma das mais importantes transformações (no que diz respeito à música) desse período foi a superação do isolamento crônico em que vivia o Acre. Desde meados da década de 30 que os aviões do Sindicat Kondor, da Panair e depois do CAN vinham regularmente ao Acre, facilitando as idas e vindas das pessoas e, portanto, das idéias. Porém, neste sentido, os efeitos da aviação não podem ser comparados ao impacto causado pela chegada dos primeiros rádioreceptores em diversas cidades do Acre (1940 em Sena Madureira e em 1942 em Rio Branco, por exemplo). O rádio podia trazer, enfim, as novidades do mundo para o Acre, como a Grande Guerra, a política populista de Getúlio Vargas e a música que se praticava no Brasil e em outras partes do mundo.
 
Para termos uma imagem mais nítida dessa influência imediata basta lembrar que o primeiro radioreceptor de Rio Branco foi instalado no Pavilhão, tradicional reduto dos poetas, músicos e intelectuais da cidade, demonstrando que a presença do rádio, desde seu inicio, atuou coletivamente sobre a sociedade.

Somado a isso, temos ainda a chegada de massivas levas de imigrantes nordestinos durante o que convencionou-se chamar de “Batalha da Borracha”. Milhares de homens e mulheres oriundos de todos os estados do norte e nordeste que chegavam diariamente para trabalhar no Acre em nome do “esforço de guerra”. Enquanto uma parte desses imigrantes era conduzida para o trabalho nos seringais, outro tanto ficava pelas cidades trabalhando na agricultura ou em serviços urbanos gerais. A década de 40 registraria assim uma renovação das influencias nordestinas sobre a cultura acreana. Influencias essas que já estavam bastante enfraquecidas pelas décadas de misturas culturais ocorridas desde que os primeiros imigrantes nordestinos por aqui aportaram no século XIX. Ainda mais que foi exatamente nessa época que Luiz Gonzaga estourou nas rádios de todo o país como o “Rei do Baião”. Assim o gosto pelos gêneros musicais marcadamente nordestinos conheceu acentuado crescimento com a proliferação dos forrós tanto nos seringais, quanto nas cidades.

Sintetizando e completando todas as modificações já citadas aparece como fator extremamente importante a criação da Rádio Difusora Acreana em 1944. Rapidamente o Acre deixava de ser simples consumidor das rádios nacionais e estrangeiras para tornar-se produtor regional de uma programação jornalística, musical, artística e de serviços. Mais importante ainda, a “ZYD-9 - A Voz das Selvas” conseguiu, finalmente, operar uma relativa integração do Acre, ao ter suas ondas captadas também nos seringais e cidades do interior. Por isso, além do acesso rápido que o rádio possibilitava ao que se estava produzindo em termos musicais pelo país, a presença de uma emissora na região significava que os músicos acreanos passaram a ter um novo campo de trabalho e de veiculação de suas composições, certamente incentivando sua modernização e dinamização.

*Texto publicado originalmente na Revista Registro Musical, FGB, 1996

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Breve história da música no (vale do) Acre - III*

A “Banda da Companhia Regional” dominou o movimento musical de Rio Branco até os anos 50, enquanto que nos outros municípios, onde não existia esse tipo de banda institucionalizada, acabou ocorrendo uma musica mais variada e espontânea.


Essa hegemonia musical da Banda pode ser explicada pela caracterização de suas atividades como instrumentos da política clientelista e da dominação social das elites sobre a  população em geral. A Banda de Pedro de Vasconcelos Filho estava presente em todas as atividades oficiais do governo, nas solenidades, nas inaugurações, nas posses de políticos, nos desfiles cívicos, mas atuava também nas retretas realizadas nas ruas e praças e que serviam como pano de fundo para os namoros e para o lazer popular. 

Como a Banda era militar (leia-se à serviço do Governo) os integrantes do poder e seus correligionários podiam desfrutar dos melhores músicos da banda em seus saraus ou alvoradas realizadas quase que diuturnamente. As famílias urbanas menos abastadas, integrantes dos escalões inferiores da maquina publica, ainda recebiam parte dessas benesses oficiais ao terem os músicos menos destacados da banda escalados para tocarem em suas alvoradas. Quanto ao povo em geral, esse devia se contentar mesmo só com os eventos públicos patrocinados pelo governo.


Assim a Banda passou a atender, ao longo dos anos, ao clientelismo característico do fazer político acreano. Tinha dias, em que as solicitações de músicos para serenatas e alvoradas eram tantas que faltavam músicos, apesar da Banda ser dividida em cinco, seis ou mais conjuntos menores. Como a escala de serviço vinha de cima, do comando, a composição dos conjuntos favorecia sempre as principais famílias da cidade que só queriam os melhores músicos, até porque os favores da Banda eram de graça. Mesmo a música dos bailes realizados nos clubes, como a Tentâmen e o Rio Branco, corria por conta dos conjuntos formados por integrantes da Banda e, por conseguinte, do Estado.

É claro que essa hegemonia da Banda oficial não se deu logo ao início de suas atividades, mas foi sendo estabelecida entre as décadas de 10 e 40. A própria composição de músicos da Banda variou muito ao longo do tempo e a presença de indivíduos de origens mais simples no seu interior amenizava muito essa situação de elitização musical. 

Voltamos aqui à existência de certa tensão entre duas tendências mais gerais da musica em Rio Branco. Tratava-se de estabelecer um tênue equilíbrio entre os diversos segmentos sociais reunidos na área urbana. Um bom indício disso é a dissimulada participação dos músicos da banda, nos salões dos bares e cassinos noturnos, aproximando o oficial e o marginal, o militar e o boêmio. Tanto que disseminou-se entre os músicos da Banda a tradição de que um músico só podia se considerar como tal depois de haver tocado no Papôco (Mela Coxa), Seis de Agosto (Bagunça do Cicarelli) ou no Quinze (Rodovaldo). Nessas áreas de prostituição e vida noturna agitada, o músico tinha que tocar das seis da tarde até as quatro da manhã sem muito descanso e mantendo a animação, no mais das vezes tocando sozinho.

Além disso, haviam também os chamados grupos de “pau e corda”, que opondo-se a predominância dos instrumentos de metal característicos das bandas, possuíam um repertório bem mais popular, composto especialmente por ritmos brasileiros, ou por estilos musicais que apesar da origem européia já haviam sido disseminados de tal forma que possuíam caráter verdadeiramente popular como a valsa, o tango, o fox, e ainda por ritmos mais recentes mas igualmente populares como o samba e toda a sua variação rítmica e melódica (samba, samba-canção, choro, etc.). Assim as camadas populares exerciam seu potencial artístico atuando na boêmia, fabricando seus próprios instrumentos, fazendo festas nas casas mais humildes das cidades e dos seringais, que ainda mantinham-se praticamente com o mesmo modo de vida, apesar da imensa crise que assolou a economia da borracha a partir de meados da década de 10.
 
Os aspectos até aqui abordados compõe um pequeno panorama da musica acreana compreendida entre o final do século XIX e a década de 40, entretanto para completá-lo dois pontos mais precisam ser ainda mencionados. 

Primeiro é necessário atentar para o relativo isolamento geográfico e de comunicações do Acre com o restante do país e entre as próprias cidades acreanas. A inexistência de estradas que possibilitassem o contato regular entre as cidades do Acre e com a capital do pais produziram um isolamento musical que ao início só era superado pelos gramofones que supriam a necessidade de musicas mais elaboradas ou mais “modernas”. Quanto a isso é necessário lembrar, por exemplo, que a Casa Edison, que já gravava discos com compositores populares desde 1902, possuía uma filial em Belém. Ainda assim, esse era um contato bastante restrito, já que os rios acreanos só apresentavam franca navegação durante metade do ano, na estação das cheias, quando chegavam pelos vapores as novidades musicais gravadas nos grossos e pesados discos de então. 


Depois, com o auge da economia gumífera, tornou-se comum a vinda de companhias artísticas das praças de Belém e Manaus. Boa parte dessas companhias eram estrangeiras e imprimiam geralmente um conteúdo elitizante em suas apresentações.

Essas companhias estrangeiras foram muito comuns nas décadas de 10 e 20, quando apresentavam-se nos Cine-teatros - mais uma moda urbana dessas décadas -  diminuindo drasticamente sua presença nos anos 30, com o acirramento da crise da borracha. Fica fácil de compreender, portanto, como o Acre sofreu, nesse período, de uma grande dificuldade para acompanhar as influencias e tendências musicais do restante do país.

O segundo aspecto que ainda precisa ser destacado neste período diz respeito à caracterização da musica religiosa no Acre. Para tanto torna-se necessário considerar o papel desempenhado pelos muitos padres que em suas desobrigas perambulavam por todo o interior acreano fazendo e incentivando a prática da musica como possibilidade de congraçamento dos fiéis. Além disso, não foram poucas as ocasiões em que as igrejas localizadas nas cidades organizaram festas religiosas que também davam vazão aos talentos e às composições musicais acreanas.

*Texto publicado originalmente na Revista Registro Musical, FGB, 1996

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Breve história da música no (vale do) Acre - II*

Durante o apogeu dos seringais no início do século XX a tensão entre músicas eruditas e populares era tão permanente quanto a tensão entre os seringais e as cidades acreanas. E foi a partir dessas tensões que teve inicio a formação de um cenário musical na região.


Com o fim da Revolução Acreana o retorno ao cotidiano de trabalho e prosperidade renovou a distinção entre os seringais e as cidades, agora com uma importância e concentração populacional considerável por parte das ultimas. Dois mundos mais distintos ainda devido ao caráter metropolizante e burguês que caracterizava as cidades do inicio do século, assimilando as influencias da “Belle Epóque” européia, com seus maneirismos, modas e forte elitização da sociedade.

Mas os modos de vida do seringal e da cidade ainda que diversos não podiam ser excludentes, já que só existiam em mútua relação. Através da complementação funcional entre os seringais e as cidades de então, as diferentes tendências reuniam-se sob uma mesma identidade cultural. É evidente que em uma relação desse tipo as cidades, por menores que fossem, com sua vocação para o comércio do lazer e do prazer, acabaram exercendo acentuada influencia musical sobre os seringais.

Ou seja, na medida em que as cidades acreanas consolidavam-se, aumentavam as influencias exercidas por outros núcleos urbanos, especialmente Manaus, Belém e Rio de Janeiro (então capital da Republica), que possuíam ligações diretas e permanentes com o Acre. Estas cidades vinham assumindo ares de metrópoles em seu processo urbanístico e impunham, por conseguinte, a presença de uma cultura e música tidas como eruditas. O resultado disso é que a música podia ser encontrada nas casas das famílias mais abonadas das cidades acreanas (estendendo-se aos principais seringais) que exibiam pianos trazidos com grande dificuldade e custo pelos vapores da rota dos altos rios. Mais amplamente ainda, os modismos burgueses da “Belle Epóque” eram seguidos nas reuniões sociais realizadas entre essas mesmas famílias da elite acreana.


Mas também havia nas cidades uma forte, por vezes até maior, presença de uma música mais popular, afeita aos bares, cassinos e casas de prostituição, instituições importantes que eram no relacionamento seringal-cidade da época. Nestes locais, era possível encontrar músicas de salão de origem européia, como valsas, scotichs, operetas e polcas, misturadas aos ritmos e musicas brasileiras do início do século tiradas nas violas, ou qualquer outro instrumento que estivesse à mão. As camadas populares apropriavam-se assim das linguagens e recursos da elite para tornar seu próprio universo mais atraente e desejável, provocando a reação inversa por parte das elites que também acabavam adotando gostos e comportamentos da população em geral.

A tensão resultante desse confronto dissimulado entre uma cultura elitizada e outra mais popular gerou embates interessantes durante o desenrolar das primeiras décadas deste século, como a criação da Tentamen. A fundação desse clube, na década de 20, foi uma clara reação da elite de Rio Branco ao predomino dos cassinos e casas de prostituição na oferta de lazer do que hoje seria chamada “a indústria do entretenimento”.

Neste contexto começaram, a partir da década de 10, a formar-se em diversas cidades do Acre, orquestras e bandas que tinham como objetivo animar os bailes, as exibições de cinema mudo e as apresentações teatrais, sempre sob inspiração dos padrões europeus.

Como se não bastasse o poderio econômico e político das elites sobre os setores menos favorecidos da sociedade, a história da música no Acre registraria ainda mais uma forma de dominação sutil, porém eficiente: a intervenção do Estado na cultura popular através da criação de uma banda oficial.
Sena Madureira, sede do Departamento do Alto Purus, havia saído na frente criando uma Banda da Companhia Regional em 1914, mas essa iniciativa não resultou duradoura. Nova investida foi efetivada em Rio Branco, em 1916, durante o governo do Prefeito do Departamento do Alto Acre Augusto Monteiro que criou também uma “Banda da Companhia Regional”. O comando dessa Banda foi entregue a Pedro de Vasconcelos Filho que possuía uma “charanga” em Rio Branco e já havia passado por Xapuri, dois anos antes, para organizar uma banda por lá também.

A partir daí, a “Banda da Companhia Regional”, com atividade centrada em Rio Branco, sofreria diversas modificações institucionais porém não mais deixaria de estar presente em todos os atos oficiais promovidos pelo Estado e em grande parte das manifestações populares.

Não é novidade que a presença da maquina oficial do Estado impôs-se nos mais diversos níveis da vida no Acre. Isto se deve, entre outros fatores, ao sistema territorial mantido pelo governo federal que impossibilitava o exercício político da maioria da sociedade acreana. A surpresa é constatar que esse intervencionismo oficial ocorreu até mesmo na música, enquanto movimento coletivo.


O que pode parecer exagero, à primeira vista, é uma constatação feita a partir dos depoimentos de antigos moradores de Rio Branco e de Sena Madureira, bem como dos ex-integrantes da Banda. Segundo esses depoimentos, a Banda oficial dominou o movimento musical de Rio Branco até os anos 50, enquanto que nos outros municípios onde não existia esse tipo de banda institucionalizada, acabou ocorrendo uma musica mais variada e espontânea.

*Texto publicado originalmente na Revista Registro Musical, FGB, 1996

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Breve história da música no (vale do) Acre - I*


Com os meses de junho e julho, além dos dias e noites mais bonitos do ano, chegam também as festas e arraiais que mobilizam os acreanos. E como, esse ano, ainda voltou o FAMP, começo hoje a trazer pra cá uma nova série de artigos sobre a música acreana.

As ultimas décadas do século passado e o despontar do século XX, encontraram uma região da Amazônia, que tornou-se conhecida como Acre, cujo universo cultural, assim como o econômico, girava em torno dos seringais. Um modo de vida original em sua organização, cotidiano e relações foi criado naqueles anos em que milhares de homens chegaram pelos rios, vindos de diversas partes do Brasil, e do mundo, para tentar a sorte na extração da borracha. Os povos indígenas acuados por aquela invasão arrebatadora, ora resistiam, ora colaboravam, buscando mecanismos de sobrevivência étnica e individual.

Um mundo tenso onde as raças encontravam-se, as nacionalidades chocavam-se e as culturas mesclavam-se. Um mundo novo, onde os homens passavam semanas a fio isolados em meio à floresta gigantesca e inesgotável, vencendo a dureza do trabalho, a umidade do ambiente, a ameaça do impaludismo, em nome do sonho de uma vida pródiga.

Mas nem só de sacrifícios podiam viver os homens e era preciso esquecer um pouco a batalha diária, como era preciso lembrar a doçura da terra natal, dos parentes distantes e das mulheres amadas que os esperavam na volta para casa. Por isso o seringal criou suas próprias possibilidades de festejar, cantar, dançar e lembrar o que existia de belo no passado e no futuro de cada um. A casa de algum seringueiro ou o barracão do abastado e poderoso seringalista, eram assim transformados regularmente em lugar de encontro e por consequência de música. As festas nos dias santos, nos dias da pátria, nos dias de aniversário do pessoal do barracão, na chegada de visitantes importantes pelos vapores, tudo servia de motivo para a comemoração. Os bailes deveriam então tirar o atraso em que homens e mulheres encontravam-se depois de meses sem uma folguinha para distrair o pensamento. Por isso tornou-se tradicional que as festas, ou bailes (se realizados na casa do patrão), durassem a noite inteira, até que o amanhecer de domingo viesse decretar o necessário descanso para a luta a ser reiniciada na segunda-feira.
O único registro possível dessas antigas festas seringueiras nos ficou pelas páginas dos romances de José Potyguara, Océlio de Medeiros, Ferreira de Castro e quantos outros pintaram as cores da ficção-real daqueles anos longínquos em que a riqueza da borracha era tanta que chegou a ganhar o apelido de ouro negro (em razão da cor escura das pelas de borracha defumadas).

Porém, para além dos possíveis registros escritos ou gravados, permaneceu registrado, principalmente, aquele modo de vida criado nos seringais. Modo de vida tradicional e pouco alterado a ponto de ainda hoje possuir algumas de suas antigas características. Quem anda pelo interior acreano não deve, portanto, surpreender-se ao encontrar com patrões e regatões que aviam mercadorias por preços exorbitantes e com seringueiros que ainda dividem seu tempo entre a borracha, a pequena roça e a caça para a mistura das refeições. Tão pouco pode surpreender aos desavisados o costume dos forrós de final de semana, por ocasião dos dias especiais, tocados pelas sanfonas, ou pelas violas, ou pelas rabecas, ou pelas zabumbas (dificilmente por todos juntos), até o dia amanhecer.


 Já as cidades das três ultimas décadas do século passado nem podiam ser chamadas assim. Eram, na verdade, povoados com meia dúzia de casas alinhadas a margem dos rios, onde realizava-se o comércio e o abastecimento de embarcações em viagem. Essa característica comercial implicava naturalmente na diversidade dos produtos oferecidos à freguesia e o lazer aparecia como um desses produtos a ser oferecido aos consumidores esporádicos ou regulares dos povoados. Criou-se assim um modo de vida divergente daquele do seringal e que lhe servia como complemento e/ou oposição. Se os seringais eram o local da dispersão dos homens e do trabalho, os povoados eram o lugar da concentração e do lazer, onde podia-se gastar o dinheiro tão duramente obtido na faina da borracha. 

O período da entre-safra anual da seringa, que coincidia com as cheias do rio e a consequente invasão dos vapores trazendo gentes e novidades, era a época em que os povoados tornavam-se ainda mais movimentados e importantes. Aqui a música de salão predominava - com suas valsas, polcas, mazurcas e lundus - mas sem as restrições impostas pelo trabalho nos seringais. As casas onde o jogo rolava solto e onde os seringueiros em atraso podiam visitar mulheres especialmente trazidas de Manaus e Belém (o que incluía algumas européias), invariavelmente eram também os salões onde a música e a dança reuniam homens e mulheres dos mais variados interesses e atitudes.

Mas o primeiro registro realmente documental que pudemos encontrar diz respeito àquela música presente nos dias das revoluções acreanas, quando a música tornara-se menos lazer e mais reafirmação do poder ou da identidade. Data dessa época a história da música emblemática do Acre, que nem era musica ainda, mas uma poesia do soldado-médico-poeta Dr. Francisco Mangabeira que em um momento de descanso, nas trincheiras da Revolução, escreveu os versos que anos mais tarde seria musicado por Mozart Donizeti e tornaria-se o hino acreano.

É desse período também a foto dos batalhões acreanos em marcha pela floresta com parte de seus soldados carregando instrumentos musicais, além das armas, demonstrando que a música era então, como todo o resto, guerra. 


Aliás, um dos episódios mais interessantes da Revolução Acreana não é a história de um combate, mas de um pequeno acontecimento entre as renhidas lutas que travavam-se em Porto Acre. Foi quando brasileiros e bolivianos em trincheiras opostas juntaram-se por alguns minutos unidos pelo som tirado de uma flauta. Esse episódio, com toda sua simplicidade, tornou-se um dos eventos mais memoráveis daquela época, reafirmando a capacidade exclusiva da música de unir aos contrários mesmo que durante o mais intenso confronto.

* Este artigo, que aqui na coluna será publicado em partes, foi feito para a revista do Registro Musical, um projeto muito bacana do qual participei junto com Jorge Nazaré, Silvio Margarido e Danilo de S`Acre nos idos de 1996.

domingo, 1 de julho de 2012

Antes tarde do que tarde demais!

Nesta semana, no último dia 27, numero que se tornou como que um talismã pra mim (basta ver o endereço de meu email, rsrsrsrs), completei 49 anos. Assim, seria impossível não escrever hoje sobre os acontecimentos que, normalmente, insistem em nos assaltar nestas ocasiões.



Já confessei várias vezes aqui, nos artigos desta coluna, uma certa implicância com as tais “redes sociais”. Demorei um tempão para ter um blog, mas não teve jeito, a pressão dos amigos foi grande e já estou no segundo deles... Apesar dos blogs, no geral, já terem ficado em segundo plano nesse etéreo e fugidio mundo virtual em que vivemos ultimamente.

Orkut nem cheguei a entrar. Ainda bem, porque parece que já não acontece nada de muito interessante por lá mesmo. Assim economizei todo aquele trabalho de aprender como funciona e encontrar uma forma própria de usar, o que sempre demanda certo tempo e dedicação.

Já o Facebook me assusta. Não deixa de ser impressionante o tempo que as pessoas tem dedicado a essa inocente brincadeira (sobre essa possível inocência esclareço que escrevi a esse respeito na coluna Lá e Cá, no artigo intitulado “Quem acredita em Papai Noel? e no Facebook?”, de 25 de maio, no Jornal A Gazeta e que pode ser encontrado também no site www.jorgeviana.com.br). Ainda assim, não consegui mais resistir à pressão de ter que navegar por lá também e entrei na rede. Ou, talvez, fosse melhor mesmo dizer que... como um peixe pouco atento, cai na rede.

Mas, devo reconhecer que nem tudo são armadilhas ou superficialidades nesse novo mundo internético. Afinal, nas duas últimas semanas, desde que a Rio + 20 frustrou quem esperava o anúncio de uma nova concepção de mundo pelos governos de nosso combalido planeta, aconteceu um movimento muito bacana de encontro de vários antigos amigos meus. Pessoas com quem tive o prazer de conviver na época da Faculdade, nos já longínquos anos 80.

Pois o povo se reencontrou por lá pelo Rio e eu, que nem lá estava, também fui reencontrado por eles, via Facebook principalmente. Que prazer saber que pessoas que você amou intensamente durante certa fase da vida estão bem, tocando suas vidas, amadurecendo nessa difícil lida de encontrar um caminho com coração, como nos ensinou já naquela época o bom e velho Carlos Castañeda.

E ai o inevitável aconteceu. Fotos antigas publicadas, doces lembranças, conversas quentes. Enfim... Devo admitir que esse foi um grande presente de aniversario antecipado, possível graças a uma dessas tais “redes sociais”. Mas, porque sou teimoso, pro Twitter, Instagram e outras ainda não me rendi... só não sei mais dizer até quando...
* * *


Foi uma grande surpresa pra mim quando recebi um email anunciando o tal Simpósio Internacional de Arqueologia que aconteceu essa semana com a presença de Ondemar Dias e Franklim Levy, com a abertura do evento e a fala destes dois extraordinários pesquisadores exatamente no dia 27. Não pelo Simpósio em si que eu já sabia que ia acontecer. Mas haviam me informado que seria em julho. Portanto, ver o Ondemar mais uma vez em ação falando sobre arqueologia acreana exatamente no dia do meu aniversario foi um grande e inesperado presente.

Pra quem não leu os muitos artigos que publiquei aqui nesta coluna nos últimos cinco anos sobre arqueologia acreana, deve estar sendo difícil compreender porque tanta alegria. Para esses esclareço que foi com Ondemar Dias Jr que aprendi tudo que sei sobre o oficio dos arqueólogos em trabalhos memoráveis no litoral do Rio de Janeiro, nas cavernas de Minas Gerais e nos sítios com estruturas de terras do Acre.

Assim como tenho que aproveitar também pra dizer que o reconhecimento de Ondemar Dias e Franklin Levy como os verdadeiros descobridores daqueles sítios que hoje vem sendo tratados como geoglifos é mais do que merecido, ainda que muito tardio. Afinal, essas pesquisas aconteceram há 35 anos.

Tá certo que esse reconhecimento é ainda incompleto e insuficiente na medida em que insiste em ignorar o excepcional trabalho desenvolvido por Mauricélia Souza (mais conhecida como Celinha por todos aqui no Acre) que foi a primeira arqueóloga acreana de fato e responsável, junto com o próprio Ondemar Dias, pelas primeiras escavações em sítios deste tipo, nas igualmente memoráveis campanhas de 1992 e 1994. Porém sei que isso é apenas uma questão de tempo porque o poder das histórias que precisam ser contadas, porque definidoras do que somos, é inexorável.


Obs: Ainda em tempo não posso deixar de agradecer aos muitos amigos que fizeram questão de me dar suas sinceras felicitações no dia 27, seja através de telefone, email, ou mesmo do tal Facebook... Saibam que todos vocês me deixaram muito feliz, porque é bom demais ter bons amigos...