sábado, 3 de setembro de 2011

Machu Picchu – Um século (III)

(ou: Mistérios da floresta na montanha)

Faz um século desde que a cidadela de Machu Picchu foi redescoberta e passou a nos inundar de perguntas e paradoxos. E o que isso a tem a ver com o Acre? Tudo indica que muito mais do que podemos desconfiar a principio.

No artigo anterior dessa série contei, com muito menos detalhes do que eu gostaria, sobre a experiência de percorrer o Caminho Inca. Uma das longas trilhas construídas pelos Incas para interligar seu vasto império. Na verdade, foi seu extenso e bem consolidado sistema de estradas, chamado como “Qhapaq Ñan” por alguns autores, que fez com que a civilização Inca fosse uma das mais extraordinárias da antiguidade americana e possibilitou que o Tahuantinsuyu se tornasse o Império das quatro direções.
Já mencionei no artigo anterior meu espanto ao percorrer o trecho do “Caminho Inca” que leva a Machu Picchu e ver a excelência e a engenhosidade com que foi construído. A todo o momento nos surpreendíamos. Aqui um túnel que possibilitava ultrapassar uma rocha enorme sem ter que fazer um extenso contorno. Acolá, um tanque de água cristalina que nos esperava no topo de um dos muitos “passos” (ponto culminante de uma montanha do caminho) para nos refrescar, como há de ter refrescado muitos “Chasquis” (os corredores que constituíam o serviço de correio dos Incas) há séculos antes de nós.



Mas, surpreso mesmo fiquei quando entramos no ultimo trecho do “Caminho”. É que, nas três horas finais de caminhada, antes de alcançarmos Machu Picchu, percorremos uma espessa floresta, aparentemente muito semelhante à floresta que nos acostumamos a conhecer por aqui pelo Acre. E depois de dois dias e meio caminhando por campos amarelos ressecados e pelas franjas dos brancos picos nevados das montanhas andinas causa um profundo estranhamento se ver em meio a uma vegetação tão verde e fechada que chega a provocar certa sensação de sufocamento.
Começamos assim a descobrir que Machu Picchu se encontra estrategicamente localizada no limiar entre dois mundos: o do altiplano e o das florestas. Alguns autores inclusive levantam a hipótese de que Machu Picchu teria sido construída por exatamente com a finalidade de coordenar e controlar povos da floresta submetidos pelo Império Inca, garantindo o acesso e o fluxo dos diversos produtos que vinham do Antisuyu para abastecer a nobreza Inca.


Para quem não está familiarizado com a história incaica, talvez seja importante ressaltar que este Império se dividia em quatro reinos, ou suyus. O Chinchaysuyu se encontrava ao norte, correspondendo ao rico litoral norte do Peru e se estendia até a Colômbia e o Equador. O Collasuyu ficava ao sul, era o maior dos quatro reinos e incluía o Lago Titicaca, tido como região mítica de onde se originaram os primeiros Incas. O Cuntisuyu ficava a oeste do Império e era formado pelas terras áridas da vertente ocidental dos Andes e pelo litoral centro-sul peruano. Já o Antisuyu ficava a leste de Cuzco (que era o centro de todo o Império) e era constituído pelas vastas florestas que se estendiam desde as vertentes orientais dos Andes (também chamada de região de Montaña) até as terras baixas amazônicas.
E foi exatamente este ultimo reino o mais difícil de ser dominado pelos Incas. Segundo a historiadora María Rostworowski foi no reinado do Inca Pachacutec (apontado também como o possível construtor de Machu Picchu) que se deu a expansão do Império na direção dos povos “Antis”, como eram denominados pelos Incas os povos da floresta. A dispersão territorial característica desses povos, os inúmeros obstáculos enfrentados por exércitos acostumados aos territórios abertos do altiplano em meio à floresta fechada, a própria resistência empreendida pelos “Antis” tornaram essa conquista extremamente difícil.




Tanto assim que “os exércitos cuzquenhos, sempre vitoriosos, sofreram na selva sua primeira derrota” (Rostworowski, 2001, pg.188). Sobre este acontecimento o cronista Cieza de León contou que as tropas incas foram dizimadas na densa floresta e poucos conseguiram voltar a Cuzco com a notícia do desastre. Como maneira de se explicar frente ao enfurecido Inca, os sobreviventes teriam inventado uma lenda: a de que haviam sido monstruosas serpentes que haviam atacado e matado o grosso das tropas. Foi quando uma velha feiticeira se apresentou para apaziguar os monstruosos animais com magias e encantamentos, depois do que os exércitos puderam se internar na floresta sem temer ser destruídos pelos monstros lendários.
Com ou sem feiticeira, Pachacutec Inca Yupanqui decidiu comandar ele mesmo uma nova expedição à região. Para tanto mandou batedores e espiões para as florestas das terras baixas com a missão de observar seus misteriosos habitantes e a frente de um grande exército invadiu a região. Entretanto, ao chegar a Marcapata, Pachacutec teria recebido noticias de uma rebelião que agitava seu Império, o que o fez retornar rapidamente a Cuzco.
Coincidentemente, ao observarmos os mapas da região entre Cuzco e o Acre, vemos que as nascentes do rio Madre de Diós se encontram muito próximas da capital Inca. E o nome Quéchua deste rio é Amaru Mayo, ou Rio da Serpente. O que pode nos levar a concluir que foi este rio a rota seguida por aquela expedição militar que teria sido derrotada por monstruosas serpentes. Até porque é obvio que um numeroso exército teria muita dificuldade em avançar por terra na região da densa floresta amazônica, tornando o rio o caminho natural para este avanço.




Além disso, muito recentemente arqueólogos finlandeses e bolivianos encontraram em Riberalta, na confluência entre os rios Beni e Madre de Diós (o velho Amarumayo), uma ruína Inca, que parece comprovar definitivamente a expansão do Império e do comércio Inca até bem próximo do Acre.
O certo é que, hoje, quando penso na rodovia do Pacífico, não consigo me livrar da sensação de que essa estrada não tem nada de novo. É como se, depois de alguns poucos cinco séculos, apenas começássemos a nos lembrar de um outro caminho, muito antigo, do qual havíamos nos esquecido.

OBS: Outras informações sobre as possíveis ligações entre os Incas e os povos da floresta, já foram disponibilizadas nesta coluna através da longa série “Do Acre aos Andes” que publiquei aqui, em 2009.

Um comentário:

  1. Não esqueça dos geoglifos do Acre e dos Geoglifos de Rondônia,principalmente os de Alta Floresta do Oeste-RO,Geoglifos Antropomorfos e Zoomorfos com temática Andina.Detalhes no Blog http://eldorado-paititi.blogspot.com/

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