terça-feira, 13 de setembro de 2011

Foi um Rio que passou em minha vida

(e meu coração se deixou levar...)

Esta semana, excepcionalmente, estou escrevendo este artigo num outro rio que não minha querida Rio Branco. Estou no Rio de Janeiro que me viu nascer. Vim a trabalho, como tem sido nos últimos anos, para gravar uma participação no programa “Livros que amei” que está em fase de produção e deverá ser exibido pelo canal Futura entre dezembro e fevereiro. Quando souber ao certo, aviso. Até porque, como não poderia deixar de ser, falei muito do Acre através do original olhar de Euclides da Cunha em seu “Paraíso Perdido”. Mas já vou adiantando que foi um dia de trabalho muito agradável numa antiga casa do Alto da Boa Vista, um dos lugares mais bonitos deste vasto mundo.
Ou seja, esta tinha tudo pra ser uma viagem muito prazerosa. Entretanto, nesta sexta feira, aconteceu algo que, sinceramente, eu não esperava e mexeu profundamente comigo.
É que, como sempre faço quando venho ao Rio e tenho tempo disponível, fui ao centro da cidade onde, durante anos a fio, costumava perambular em meio aquele verdadeiro formigueiro humano observando pessoas, ouvindo fragmentos de conversas e conferindo a profusão de novidades e velhidades das vitrines.
Mas, em todos estes anos, estivesse eu fazendo o que fosse, ocupado ou ocioso, sempre que vinha ao centro dava um jeito de passar num lugar muito especial: o tradicional sebo do edifício Avenida Central, que já havia sido em um passado não muito remoto, o prédio mais alto do Rio de Janeiro. Pra mim, a melhor e mais importante livraria do Rio e, por conseguinte, do mundo.
Ali passei intermináveis horas de minha vida. Na maioria das vezes sem nem comprar nada. Apenas olhando, namorando, desejando livros que um dia eu haveria de conseguir levar pra casa, nem que pra isso tivesse que juntar dinheiro por meses. Entranhou-se assim, em meu ser, o gosto pelo delicioso cheiro de papel velho, o vício incurável de respirar ácaros literários, a estranha admiração por livros empilhados em anarquia absoluta - como em todo e qualquer sebo que se preza e que constitui aquela santa confusão que tanto revela quanto esconde - mantendo viva a possibilidade de novas e surpreendentes descobertas no dia seguinte e fazendo-me voltar e voltar e voltar sempre...



Por isso amo os sebos


Porém, mal saltei da escada rolante, meu olhar buscou o lugar do sebo, naquele gesto tantas vezes repetido que se tornou quase automático, e só havia uma profusão de lojas de informática. Confesso que fiquei instantaneamente atordoado. Devia ter alguma coisa errada. Será que me enganei de entrada, devia ser a do outro lado e me confundi. Afinal já faz mais de cinco anos desde que vim aqui pela ultima vez. Dei a volta apressado na sobreloja inteira, angustiado, peito oprimido, só pra ter certeza do que eu já tinha. O velho sebo não está mais ali. Em todo o andar, só lojas e mais lojas de notebooks, periféricos, softwares, jogos para Play Station, X-box e outras tantas tranqueiras informáticas desse nosso estranho mundo virtual. Confesso que fiquei tão atordoado que acabei entrando na loja que agora ocupa o lugar do sebo e, sem ter o que fazer ali, comprei um carregador de celular pirata. Acho que foi uma pequena, surda e inútil vingança. Uma forma de não me render ao não deixar de entrar naquele, agora irreconhecível, lugar que eu tanto amara... Como se dissesse silenciosamente: vocês acabaram com o Sebo mas eu estou aqui pra continuar comprando nele... Coitada da vendedora, não deve ter entendido porque eu trazia tamanha raiva e frustração nos olhos e na voz...
Mas eu não estava mesmo disposto a me dar por vencido. Tanto que no mesmo passo em que vinha me mandei lá pro outro lado da Avenida Rio Branco. Fui pra Rua do Rosário, uma viela estreita, repleta de sobrados antigos, perto da Praça 15, que abrigava o meu segundo sebo predileto. Um sebo muito charmoso porque, se não era tão maravilhosamente entulhado como o primeiro, tinha um jirau alto e estreito onde as estantes empoeiradas costumavam guardar algumas das melhores preciosidades em forma de livros velhos que já encontrei. Este sim deveria ainda estar em seu lugar. Afinal aquela não era uma das áreas comerciais mais valorizadas do centro da cidade.
Mas pra quê? Antes eu tivesse ido embora sem espernear. No lugar deste outro sebo agora está instalada uma charmosa loja de produtos para decoração...


Onde foi parar aquele Rio que conheci tão bem? Nada aqui é mais como era antes. Compreendi então o misto de saudade e melancolia que os mais velhos costumam sentir em relação aos tempos passados. É completamente estranho e desesperador ver que o mundo que você conhece e confia, já não existe mais. Que está tudo diferente, tudo mudado pra pior. Ver que livros foram substituídos por computadores ou bibelôs. Perceber que coisas muito, muito, muito importantes foram destruídas e substituídas por absurdas inutilidades, dói.



Palacio Monroe que ficava no fim da Avenida Rio Branco e que foi demolido de forma insana, para a construção do Metrô quando eu era apenas um menino, demarcando um Rio de Janeiro que não existe mais...


Acho que, pela primeira vez na minha vida, tive a absoluta certeza de estar envelhecendo.
Decidi, então, não prolongar mais aquele suplício e fui pra estação do Metrô. Dizia-me: vou-me embora antes que piore e descubra que não há mais nada aqui que eu conheça e de que goste de verdade. Voltei então pro edifício Avenida Central pra pegar o Metrô na Estação da Carioca que fica ali do lado. Mas, nem bem botei o pé na rua da estação, ouvi um som grave e doce de saxofone. Era aquela musica linda que já foi cantada por tanta gente (inclusive o bom e velho Elvis) e mais recentemente virou tema do filme Ghost – do outro lado da vida. Meu coração deu um pulo. Não conseguia acreditar que o velho do sax continuava tocando aqui no meio da rua.
Imediatamente minha mente voltou anos atrás, quando aquele menino que subia feliz pro sebo, parava pra ouvir o negro de enormes bochechas que sopravam e sopravam musicas intermináveis num surrado sax, só pra ganhar umas poucas moedas que os passantes colocavam em seu chapéu. Quantas vezes o menino havia parado pra ouvir e ver com tristeza que aquele formigueiro humano agitado e incessante parecia nem perceber verdadeiramente a arte do velho saxofonista, que ainda assim prosseguia entoando suas longas e quentes melodias, indiferente à indiferença dos passantes apressados.
Me senti salvo, então. E, antes de descer a escada do Metrô, sorri (um sorriso de puro agradecimento) pro velho do sax e suas enormes bochechas que sopravam e sopravam “Unchained Melody”. Durante muito tempo ainda, mesmo dentro do barulhento trem do Metrô, eu segui assobiando aquela “melodia” que “libertou” e aqueceu novamente meu coração.
“And time goes by, so slowly… (E o tempo vai passando, tão lentamente...)
Lonely rivers flow to the sea, to the sea,” (Os rios só fluem ao mar, ao mar...)

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