sábado, 13 de agosto de 2011

Histórias d'alem fronteira

Os poderes constituídos não conseguem compreender o espírito da fronteira. Para os governos em geral a fronteira é um problema, é o limite e com ele a sempre presente possibilidade da transgressão dos limites. Limite da Pátria, limite da moeda, da língua, da cor, do gesto, do jeito, limite da alma, enfim. É preciso, portanto, cuidar (o que na maioria das vezes significa apenas proibir).
Em geral, não vemos o que está lá e cá ao mesmo tempo, o que transpira de um lado ao outro, o que une, o que liga, o caminho que leva e traz, o limite do outro, do novo, do distinto, o limiar que junta o início e o fim, o que transcende tudo aquilo que não pode ser limitado. Neste sentido, a fronteira é a alma dessa terra limite.
Hoje ouvi uma nova história sobre a fronteira. Uma boa história que preciso dividir com vocês. Adianto que se trata de uma história prosaica, simples, em alguns momentos até mesmo de palavreado impróprio, pelo que já peço perdão antecipadamente. Mas, também garanto que se trata de uma daquelas histórias singulares, que revela a complexidade oculta por trás dos cartões postais, ou no nosso caso, o que esta para além das lojas coloridas que nos vendem importados piratas da China, dessa derradeira relíquia comunista que anda travestida em grande e universal consumista. Síntese perfeita de nosso louco tempo, pré-apocalipse.
Mas... Sem mais enrolação, com vocês a história que me encantou e me fez sorrir, hoy dia.


A Triste e Trepidante Balada de Tio Ivo

Ele era mais um dos milhares de bolivianos(as) nascidos de mistura com brasileiros(as) que passaram toda a vida do lado de lá da fronteira. Um bom homem era Tio Ivo, trabalhador, íntegro, sincero, um bom boliviano. A única coisa que ainda se permitia era tomar uns tragos de vez em quando.
Na verdade, de vez em sempre. Todo fim de semana bebia até ficar borracho. Depois sossegava Tio Ivo, que era um bom homem. Não chegava a ser alcoólatra, apenas bebia nos fins de semana.
Na verdade, era mesmo alcoólatra, porque bebia pra valer, todo fim de semana. Mas era um bom boliviano e disso ninguém duvidava.
Mas, naquele dia, ficou bravo Tio Ivo. Outro golpe de estado estava bagunçando tudo na Bolívia. De novo, novamente, outra vez, pensava revoltado. Todo ano golpe militar, golpe, golpe atrás de golpe. Não teria fim nunca essa triste história de seu país sofrido?
Neste dia então, depois dos tantos tragos regulamentares, inesperadamente, se embrabeceu Tio Ivo, resolveu sair às ruas e declarar toda sua indignação pra quem quisesse escutar. Bradava assim:
- Me cago em Bolívia!!!!!! Carajo!!!!
Quem via aquela cena, nem podia acreditar no que via. Não era apenas um grito, um protesto qualquer. Tio Ivo falava do fundo de sua alma. Estava cansado de ver seu país desse jeito, maltratado por autoridades que se sucediam no poder através da força e da sempre renovada tragédia de seu povo. Andava, com os passos incertos de todo e qualquer bêbado, Tio Ivo, e de repente parava pra tornar a bradar...
- Me cago em Bolívia!!!!!! Carajo!!!!
Estava cansado. Definitivamente cansado de ver seus conterrâneos ter que atravessar as águas do rio Acre a nado, fugindo para o Brasil, a cada novo golpe. Todo ano, golpe de novo e a mesma coisa, lá se vão a nadar pro outro lado meus amigos. Ano que vem, de novo, golpe e lá sem vão os inimigos de meus amigos a nadar pro outro lado desse rio chamado Acre. Outra dor, outra indignação, outra vez:
- Me cago em Bolívia!!!!!! Carajo!!!!
Tanto fez Tio Ivo que, como não podia deixar de ser, chamou a atenção dos soldados em patrulha pelas ruas em razão do estado de sítio em que se encontrava a Bolívia naquela tarde de Cobija. E não deu outra. Vieram os soldados, truculentos, a interrogar: Mas! Que passa, Hombre! Que Passa!!! Ao que não teve duvidas Tio Ivo que, duplicando o tom e o volume de sua voz, redobrou a força e a dor de seu brado de protesto.
- Me caaaaaago em Bolívia!!!!!! Caraaajoooooo!!!!
Os militares - nitidamente collas, filhos do altiplano, ao ver aquele homem grande que, de muito branco, estava em vermelho de fogo, indignado, sob o sol escaldante da tarde de Cobija, legítimo filho dessa mistura que a floresta produziu ao longo dos séculos últimos - não também não tiveram duvidas. Prenderam Tio Ivo. Onde já se viu tamanha ofensa à Pátria. Ainda mais em pleno Golpe de Estado...


Quase tão rápida quanto aquela prisão, percorreu as ruas quentes da tarde de Cobija, a notícia, que, como era de se esperar, logo foi bater no ouvido de Tia Vitória. A mulher de Tio Ivo. Como és?!!!? Preso mi Ivo? Eso no puede ser, me voy a ver eso ahora, ahorita!
Um metro e meio de pura valentia Tia Vitória. Pense numa mulher braba. Decidida - um metro e meio pleno, bem cheio e medido, de autoridade - partiu para o quartel Tia Vitória. Já na porta, o soldado bem que tentou lhe barrar, ao que ouviu assustado: Quiero hablar con el Comandante! E era tanta firmeza que o soldado não lhe pôde impedir de prosseguir. Logo acudiu o Oficial do dia tentando por ordem na casa. Mas de nada resultou. Me llame el Comandante! Mas, Señora... No me importa, quiero hablar con el Comandante y solo con el Comandante, ahora!
Não demorou pra se convencerem que não havia outro jeito de acalmar Tia Vitória e logo apareceu El Comandante de la tropa. Atônito, talvez até mesmo intimidado, por tamanha autoridade em tão reduzido espaço de gente, indagou a seus comandados: Más que sucedió??? E coube ao Tenente explicar o motivo de tão justificada prisão. El señor Ivo estava en la calle del ciudad a gritar insultos contra nuestra pátria. El dijo, con su pérdon mi Comandante: Me cago em Bolívia!!!!!! Carajo!!!!
Mas antes mesmo que o Comandante pudesse olhar para baixo, no rumo da pequena mulher, com reprovação. Tia Vitória desancou a comandar... Más hombre. Ivo és un buen hombre. Aquí vive, aquí trabaja de sol a sol, y usted, ahora, desea que Ivo vaya a la orilla del rio, coja una catraia, cruce el rio y vaya a cagar em Brasiléia? No, no, no. Ivo vive aquí em Bolívia, tiene que cagar aquí mismo en Cobija. Suelte mi Ivo ahora, ahorita. VAMOS!
Ao que o comandante, olhando firme, com indisfarçável ar de reprovação, para o Tenente, não demorou em decretar... Andelante hombre, lo que está esperando, suelte Dom Ivo. AHORA!
E lá se foi... com a moleza típica dos borrachos, naquela tarde quente de Cobija, Tio Ivo, seguindo, capisbaixo, aquele metro e meio de pura valentia e autoridade, chamado Tia Vitória.

Obs: Ganha um exemplar deste jornal o primeiro que souber dizer quem me contou, há pouco, essa história... e ainda dou pistas: Dom Ivo é tio deste nuestro amigo, meio cholo, meio Acre que tantos de nós conhecemos e gostamos por demais... e que, há algum tempo atrás, nasceu de novo, para nossa felicidade (agora ficou fácil!!!)

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