sábado, 20 de agosto de 2011

Machu Picchu – Um século (II)

(ou: Mistérios de uma jovem alma)

Já não me lembro o dia exato em que cheguei a Machu Picchu. Lembro apenas que isso faz vinte e cinco anos e que foi um dia inesquecível. Afinal “naquele tempo eu tinha estrelas nos olhos e um jeito de herói, era mais forte e veloz que qualquer mocinho de cowboy.”

Acredito que 1986 foi um ano diferente para muitos brasileiros. Pra quem não se lembra, ou ainda não estava por aqui, basta recordar que este foi o ano do plano Cruzado instituído pelo Presidente José Sarney para tentar acabar com a enlouquecida hiperinflação que parecia não ter limites.
Na verdade o Brasil ainda vivia o rescaldo da enorme frustração que havia sido a derrota das “Diretas Já” e a morte de Tancredo Neves. Mas por breves momentos, o tabelamento de preços imposto pelo Plano Cruzado parecia que poderia sim resultar no fim do dragão da inflação. A tal ponto que muitas donas de casa brasileiras foram convertidas em “fiscais do Sarney” para impedir que as famigeradas máquinas de remarcação voltassem a aumentar o preço das coisas. Mas, infelizmente, durou pouco o sonho. Só o tempo que os interesses político-eleitorais demoraram para ferir de morte o tal plano econômico de forma a garantir mais poder ao PMDB do Sarney de triste memória para todos nós que lá estávamos. Porém, antes de seu fim, esse mesmo Plano Cruzado abriu uma janela de novas oportunidades que nos apressamos em aproveitar. Afinal, a gana de viver mais e mais é uma das melhores qualidades dos jovens, não é?
Acontece que nesta época a diferença entre o dólar oficial e o paralelo era imensa e só podia comprar dólar pelo cambio oficial quem saísse do país de avião. Bolamos um plano perfeito então. Como queríamos ir à Machu Picchu, eu e alguns amigos da Faculdade, a gente fez as contas para sair por via aérea do Brasil pela menor rota possível - por conseguinte, com o menor custo possível - e só a diferença do cambio já pagaria boa parte de nossa viagem.
Não deu outra. Fomos de ônibus até Foz do Iguaçu onde pegamos um avião para Puerto Stroessener, no Paraguai, e assim nos habilitamos a pegar U$1.000 cada um, pelo preço galinha morta do cambio oficial. A conseqüência imediata disso é que já começamos nossa viagem por uma rota completamente louca.
A partir do Paraguai tivemos que cruzar o norte da Argentina, pela bela região de Salta, para entrar no sul da Bolívia e atravessar este belo e pobre país até alcançar o Peru ao norte. Viajávamos em cinco. Eu, Waltinho, Tereza, Lili e Carlinha. Todos nós estudantes da mesma Universidade, mas cada um de um curso diferente, um grupo meio, digamos, exótico. Eu namorava Tereza e Waltinho namorava Lili, o que deixava Carlinha solta pra arrumar namorados ao longo da viagem e assim conseguir pequenas vantagens (como refeições por conta dos caras) em alguns dos lugares por onde passávamos. Mas, infelizmente, seria impossível contar aqui tudo o que vivemos naqueles dias extraordinários, precisaria do espaço de um livro inteiro e não de apenas um artigo para contar sobre as belezas e as tragédias de nossa encantadora América Latina. Ainda mais porque éramos jovens e, na estrada, livres. E tudo é mais bonito e mais intenso quando se é jovem e livre. Alguém duvida?



Da esquerda pra direita sentadas: Tereza, Carlinha e Lili; em pé: Waltinho e eu - Fotografados por um lambe-lambe das ruas de La Paz



Bueno. O certo é que depois de muitas peripécias chegamos à Cuzco e decidimos fazer o Caminho Inca ao invés de conhecer Machu Picchu através do trem que todos os dias ali despeja milhares de turistas de todas as partes do mundo. É que fazendo o Caminho Inca, além de conhecermos diversas ruínas ao atravessar as altas montanhas andinas, ainda poderíamos, se bem programados, chegar a Machu Picchu antes das dez horas da manhã, hora em que começam a chegar os milhares de turistas que vão de trem. E, segundo o que ficamos sabendo, era tanta gente que desembarcava na cidadela perdida dos Incas que visitá-la depois das dez não tinha a menor graça. Ou seja, tudo que queríamos era Machu Picchu só pra gente. Afinal, a ousadia parece ser outro traço indelével da juventude.
Porém, no dia anterior à viagem, exatamente na hora de alugarmos os equipamentos (já que em Cuzco se pode alugar barraca, saco de dormir e todo o mais necessário para a caminhada), as meninas arrumaram diferentes justificativas pra não ir (dor de cabeça, TPM e outras cositas do gênero). No fundo, no fundo, sabíamos, todos, que era só cagaço mesmo. Uma pena, porque decidimos ir assim mesmo, eu e Waltinho.
Já no trem conhecemos muitos outros mochileiros que iam também fazer o Caminho Inca e colamos com uma Finlandesa que viajava sozinha por nome Irene e um cucaracho brasileño, que estava a tanto tempo na estrada que já nem conseguia mais falar português direito e se expressava misturando inglês, português e espanhol. Um novo e ainda mais exótico grupo de quatro pessoas que nos três dias seguintes se ajudaram a vencer a altitude, o cansaço extremo, o frio que congelava nossos ossos. Afinal, a capacidade de fazer grandes e sinceras amizades de repente, também parece ser uma capacidade fácil e natural quando se é jovem.
Ainda bem, porque logo descobrimos que o trem não parava pra quem fosse fazer o caminho Inca poder descer. Ou seja, teríamos que nos jogar do trem em movimento ao chegar o km 88 (nunca mais esqueci). Assim, desde o início ficou claro que se não ajudássemos uns aos outros aquela aventura poderia não terminar bem. E assim foi feito. Três dias uns carregando a mochila uns dos outros quando o esgotamento batia, mas também trocando impressões e sensações sobre este caminho que é uma das mais fascinantes experiências que um ser humano pode viver.



Perigoso trecho do Caminho Inca (Foto Sergio Neves - AE)


Vocês não imaginam a beleza das montanhas e picos nevados que atravessamos então. Os Incas haviam sido tão caprichosos ao construir seus caminhos, que chegaram à sofisticação de trazer pedras brancas de muito longe só para pavimentar o caminho em meio às rochas negras e garantir que seus correios pudessem transitar dia e noite com facilidade. Túneis, fortalezas em ruínas, pontes suspensas, escadas esculpidas nas pedras, fontes de água cristalina no cume dos “passos”, enfim... Não se pode ter uma idéia completa da grandiosidade e da engenhosidade dos Incas só visitando Cuzco.
Mas, por outro lado, não posso mentir, não é fácil não. É muito, muito, difícil caminhar aos quatro mil metros de altitude já que o ar é extremamente fino e o oxigênio parece não fazer parte dele, ao mesmo tempo em que as pernas muitas vezes insistem em não suportar o peso do próprio corpo, tamanho o cansaço.
Em compensação, é indescritível a felicidade que se sente ao, depois de longos e penosos três dias, chegar à Porta do Sol e vislumbrar do alto, pela primeira vez, Machu Picchu. Só posso dizer que é como se naquele momento pudesse finalmente ver - não com os olhos do corpo, mas com os olhos do espírito - o poder e a eternidade em forma de montanhas e mistérios inesgotáveis. Beleza e encanto em sua expressão mais pura. Afinal, a vida é mesmo mágica diante de olhos jovens. Ou alguém não acredita???




Vista de Machu Picchu desde a porta do sol (foto de Sergio Neves - AE)

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