sábado, 30 de abril de 2011

O Joca Escangota

(ou Entre a fome e a vontade de saber)

Quando a gente pensa que já viu de tudo nessa vida, sempre surge alguém revelando algo que foge de nossa compreensão. Há alguns dias passei por Mâncio Lima e a história que ouvi por lá, a respeito de um misterioso peixinho que só pode ser encontrado nos igarapés dessa região e que possui extraordinários efeitos afrodisíacos, me deixou de boca aberta e vazia...

Quando a fome aperta é difícil pensar em outra coisa, senão em comer. E este dia já andava pelo meio da tarde e nada de comida. Como eu já vinha, nos dois dias anteriores, comendo pouco e de forma irregular, estava particularmente faminto. Por esse motivo quando a bóia finalmente saiu, naquela bela chácara construída às margens do Igarapé Branco, eu tinha muito pouco interesse em qualquer outra coisa senão no lindo e cheio prato que estava diante de mim.
Assim, quando o senhor que estava ao meu lado começou a contar uma curiosa história, eu nem quis prestar atenção de início, mas aos poucos a história que ouvia se revelava tão surpreendente que não consegui mais manter a atenção exclusiva em matar aquilo que me matava e comecei a me concentrar, e o que é ainda pior: comecei a perguntar mais e mais sobre o tal estranho e misterioso peixe chamado JOCA.




Segundo ele, as autoridades locais começaram a perceber que poderia haver algo diferente em Mâncio Lima, quando, mesmo sabendo que o povo dali é tradicionalmente filhento, se percebeu que a maioria dos nascimentos de crianças nas famílias de baixa renda se dava de forma concentrada em uma determinada época do ano (fevereiro e março). Exatamente nove meses depois do período (maio e junho) em que se costumava pescar o tal peixinho chamado Joca.
Foram atrás de investigar se isso era apenas coincidência e descobriram aquilo que o povo que vive à margem dos muitos igarapés de Mâncio Lima já sabia há muito tempo. O tal peixe Joca é um poderoso afrodisíaco, talvez o mais poderoso e efetivo de que já se tenha tido noticia na história da humanidade.
Neste ponto da narrativa, contada com um irônico e curioso sorriso nos lábios, é bom que se diga, eu já tinha quase esquecido do prato que ainda estava pela metade diante de mim. E me pus a perguntar: E esse peixinho é fácil de pegar? Tem muito dele por aqui? Ao que recebi uma desconsoladora resposta: Mais ou menos. Acontece que o Joca tem hábitos estranhos. Passa a maior parte do ano sumido pra dentro das locas, mas depois da época da cheia ele vem pros poços que se formam em quase todas as curvas dos igarapés para se reproduzir. Mas, é preciso atenção! Ele não tem paradeiro certo. De repente ele aparece em algum poço, mas é preciso aproveitar na hora, se você voltar no dia seguinte, já não tem mais nenhum pra contar história, eles somem tão rapidamente quanto aparecem.
Por outro lado, tem uma vantagem no Joca. Se você acertar o lugar onde ele está, pega o bando todinho. Um atrás do outro, vão mordendo a isca e você vai pegando tudinho, até não restar mais nenhum. Ou o Joca é muito guloso, ou é muito burro. Pode até ser que seja excesso de confiança já que ele é muito difícil de morrer. Passa o dia todinho no fundo da canoa se debatendo, correndo de um lado pra outro, mas não morre. Enquanto tu não põe ele pra fritar na panela, fica lá vivo.
Além disso, o bicho é tão poderoso que, quando a gente frita, ele vai aos poucos ficando cada vez mais ereto, chegando a escangotar o corpo assim pra cima (e neste ponto nosso narrador faz um gesto com o braço pra mostrar como o Joca vai torcendo o corpo pra cima até ficar totalmente ereto). Acho que nem preciso falar que neste ponto da conversa de meu parceiro de mesa, eu já tinha esquecido totalmente o prato ainda cheio e mesmo a fome que me corroia as entranhas. A curiosidade humana é realmente uma força extraordinariamente poderosa.
Mas ainda tinha mais e sorrindo, agora escancaradamente, diante de meu olhar de desconfiança, o vizinho evocou o testemunho do cidadão que estava na outra ponta da longa mesa, montada ao ar livre, em que nós almoçávamos. Ei fulano, conta pra ele do Joca Escangota! Ao que o outro respondeu sem titubear. É verdade, o Joca é fantástico, funciona mesmo. Mas só se você comer a cabeça dele. Nem adianta comer só a carne do corpo porque não dá nada. Todo o poder afrodisíaco do Joca está num óleo que ele tem só na cabeça.
Neste ponto eu já estava decidido a questionar aquela história, pela absoluta desconfiança de que eles estavam tirando uma onda com a minha cara. Mas, ignorando solenemente minha descrença, ele prosseguiram. Rapaz é verdade. Teve aqui um pessoal da Unicamp que levou alguns Jocas pra analisar no laboratório e confirmaram que o óleo da cabeça dele é mesmo afrodisíaco. O mais potente tipo de afrodisíaco já encontrado e estudado. Ao que eu respondi: então este peixe é uma mina de ouro!
Pois é. Concordaram comigo meus interlocutores. O problema é que não adianta criar ele em cativeiro que não dá nada. Não foi possível disfarçar, então, meu completo espanto. Ué??? Mas, como assim???



E do alto de um, agora, grande e largo sorriso meus interlocutores prosseguiram em sua explicação. Estamos falando porque nós já tentamos. Pegamos algumas matrizes e jogamos num açude. Eles até se criaram bem, mas quando comemos, não tinha nenhum efeito, era só mais um peixinho comum. E prosseguiram.
É que parece que o segredo não está no Joca em si, mas no que ele come na mata. O pessoal da Unicamp não soube explicar, mas o povo que vive nessas beiras daqui nos contou o mistério deste peixinho. É que na época da cheia as águas invadem boa parte da floresta. Durante este período o Joca se espalha na mata alagada e come as frutas que caem na água. E é de uma dessas frutinhas o óleo, que se concentra na cabeça do Joca, que possui um imenso poder afrodisíaco. Portanto, quando o criamos no açude, ele não come da fruta e não tem poder nenhum.
E que fruta é essa, afinal??? (perguntei desconcertado) E eles, já gargalhando, me concederam ainda essa ultima resposta: Isso é o que ninguém sabe!!! E é provável que nunca fiquemos sabendo, faz parte dos mistérios do Joca Escangota que só nós de Mâncio Lima temos.
Neste ponto eu tinha chegado à fatídica conclusão. Eles estavam mesmo me enganando. Mas a história toda tinha sido tão bem construída e tão cheia de detalhes e respostas já prontas, que eu mesmo tentava me convencer que havia algum fundo de verdade em tudo isso. Assim, quando duvidei abertamente de meus interlocutores, eles sabiam que eu já tinha mordido a isca (faminto com o tal Joca). Rapaz! Isso é mentira!!! Vocês estão me enganando!!! Mas era tarde. Eles juraram que era tudo verdade e que bastava perguntar pro Deputado tal, pro Governador, pro Bispo, enfim, pra quem eu quisesse, porque todos eles sabiam da extraordinária história do Joca Escangota.
Só me restou então, engolir minha descrença (e, de quebra, minha fome de um almoço não totalmente concluído) e me render, no mínimo, às maravilhas da criatividade humana. Pois ainda que essa história toda seja mentira, não deixa de ser uma história muito da sua boa e, além disso, muito bem contada por meus simpáticos companheiros de quase-almoço. Era hora de, com ou sem fome, prosseguir viagem.

Um comentário:

  1. Tive o privilégio de ouvir essa história maravilhosa, se é verdade não sei, mas que foi muito engraçado foi. Salve os contos acreanos!

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