sexta-feira, 3 de setembro de 2010

de Bubuia*

(Mutações III)


Nesta época em que tudo se agita, devido à proximidade das eleições, é bom lembrar que nem sempre as coisas são tão simples quanto podem parecer à primeira vista. Assim, mais do que simplesmente identificar o criador da tradicional Balsa de Manacapuru, que serve de folclórico transporte para os que perdem as eleições no Acre, devemos buscar no vasto imaginário amazônico as insuspeitas raízes dessa original criação que ocupa todos os jornais acreanos no dia seguinte à apuração dos votos de cada eleição e anima as conversas e a generalizada gozação que toma conta de nossas ruas e esquinas.











Acho que não existe nada mais característico do pensamento acreano do que a história da Balsa. Ao pensar em tudo o que costuma acontecer nas eleições, é que consigo perceber como a Balsa pra Manacapuru é um santo remédio pra curar a ressaca dos derrotados e ao mesmo tempo controlar o entusiasmo dos vitoriosos.
Afinal de contas, a folclórica embarcação imaginária iguala a todos: desde os poderosos do momento, passando pelos iniciantes que fazem sua primeira viagem, até os eternos passageiros de todas as eleições. Mas o melhor de tudo é que a falada balsa leva para Manacapuru não só os políticos derrotados, mas também todos os seus eleitores. Por isso as conversas que tomam conta das ruas acreanas depois da eleição são muito estranhas para os visitantes que ainda não conhecem a fina ironia acreana:
- E aí, pegou alguma balsa nesta eleição?
- Eu não.
- Pois eu peguei balsa em três.
Assim, entre uma galhofa e outra, seguem os acreanos a rir da própria desgraça. Com isso a democrática balsa leva rio abaixo todos os males, rancores e desavenças da campanha. O que há que se reconhecer: é um jeito estranho, ou peculiar, de aceitar uma derrota. Mas é um jeito eficiente.
Olhando mais para atrás ainda, lembro que li num dos alfarrábios do Acre antigo a história da deposição de um dos tantos Prefeitos Departamentais que os acreanos tiveram que engolir depois que o governo brasileiro resolveu transformar isto aqui num território. Porém, o que realmente chamou minha atenção não foi a expulsão de mais um dos muitos ditadores, larápios ou escroques que foram nomeados para governar o Acre. Mas sim o fato de que ele foi expulso sem o direito, sequer, de esperar o próximo vapor, sendo logo embarcado em uma balsa pra pagar sua pena descendo o rio Acre. E lá se foi, sob os aplausos da população que assistia do barranco, o malfeitor exilado. Descendo lentamente de bubuia, curva após curva, pegando picada de pium, fugindo dos remansos e esperando receber uma ajuda que não viria, pois que era um passageiro da balsa, e nunca houve um que prestasse.
Por mais que eu tente não consigo me lembrar onde foi que li essa história e muito menos o nome dos envolvidos nela. Tá igual àquela outra história de uma família de hansenianos (como se dizia na época) que também descia o rio Acre de bubuia, parando só em lugares isolados para não sofrerem a hostilidade, filha da ignorância, dos que moravam nas margens. Tempos obscuros sobre os quais eu não lembro se li no livro “A Represa” de Océlio de Medeiros, ou no Certos Caminhos do Mundo de Abguar Bastos. Acho que estou ficando velho.
Em compensação, lembro perfeitamente de ter lido uma passagem do livro Na Planície Amazônica, de Raimundo Morais, que diz o seguinte: “Reconhecidamente daninho ao comércio comedido, o regatão paga alto imposto. Apanhado a negociar com a freguesia alheia e comprometida, os proprietários de seringais fraudados metem-no a ferros, surram-no e largam-no de bubuia.”
Como também lembro de um dos textos de Euclides da Cunha chamado “Judas Asvero” onde ele conta de um estranho costume que encontrou entre os seringais do Purus, no início do século XX.
Com sua prosa delirante e barroca, Euclides descreve passo a passo a atitude dos seringueiros que, em vez de simplesmente malharem o Judas no sábado de aleluia, como é comum em todo o mundo católico, fazem o boneco com muito capricho e depois embarcam-no numa tosca balsa que largam ao sabor da correnteza. Mas deixemos o próprio Euclides contar o que acontece a seguir: “E o Judas feito Asvero vai avançando... Então os vizinhos mais próximos, que se adensam, curiosos, no alto das barrancas, intervêm... com repetidas descargas de rifle aquele bota-fora... E a figura desgraciosa, trágica, arrepiadoramente burlesca,... desafiando maldições e risadas, lá se vai na lúgubre viagem sem destino e sem fim, a descer, a descer sempre,... à mercê das correntezas, ‘de bubuia’ sobre as grandes águas.”
Depois disso tudo, só posso chegar à conclusão de que se a balsa eleitoral é uma das mais importantes e populares instituições acreanas, então, descer o rio “de bubuia” é um santo e secular remédio amazônico para curar alguns dos males que afligem o povo sofrido dessas margens. É descendo o rio que se podem purgar as penas e cumprir os destinos perdidos, transmutando o que era ruim em algo bom.
E se é certo que foi o venerável mestre da Crônica da Cidade, Aloísio Maia, o responsável pela moderna versão mais light, na qual a balsa reserva aos seus passageiros apenas uma breve e bucólica estada em Manacapuru, ouvindo o melancólico choro dos surubins. Não podemos deixar de ver uma estreita conexão, quase arquetípica, entre a balsa eleitoral contemporânea e aquelas antigas que carregavam os malditos de todos os tipos, reais ou simbólicos, pra bem longe do Acre, bubuiando rio abaixo...

*Adaptado do texto publicado na revista “Outras Palavras”, coluna “Histórias das Margens”, em 2002.

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