domingo, 11 de abril de 2010

No coração de Rio Branco*

“Quando o sol se vai, a lua surge. Quando a lua se vai, o sol surge. O sol e a lua se alternam, e assim nasce a luz.(...) O passado se contrai. O futuro se expande. A contração e a expansão agem um sobre o outro, despertando, assim, o que favorece.
(...)Assim , a entrada de uma idéia em estado ainda germinal, na mente, promove a atividade desta ultima. Quando o homem torna fecunda sua atividade e traz paz à vida, sua natureza se eleva.
O que quer que vá além disso, ultrapassa todo conhecimento. Quando um homem apreende o divino e compreende as transformações, ele eleva sua natureza ao nível do miraculoso.”
(I Ching, o Livro das Mutações, Pág. 258)

Amanhã, segunda-feira, tem início um importante seminário organizado pelas Comunidades Tradicionais da Ayahuasca. Então não resisti à tentação de trazer de novo a esta coluna um texto que escrevi há quase três anos...

Botija de histórias

Nesta ultima sexta-feira, 08 de junho, a cidade de Rio Branco viveu, de forma muito discreta - mas, extremamente bela - um dos momentos de mais importantes e significativos de sua história. Me refiro à comemoração dos cinqüenta anos de missão da Madrinha Chica Gabriel. Um momento tão singelo e emocionante como própria trajetória dessa extraordinária mulher, que fez de sua fragilidade física uma força tão grande, que se tornou capaz de guiar centenas de irmãos nos caminhos da caridade e do amor ao próximo.
Como testemunha desse importante evento, eu não poderia deixar de registrar aqui toda a admiração que sinto pelo trabalho da Madrinha e de seus irmãos e filhos de missão. E assisti, encantado, a cerimônia de homenagem a Madrinha Chica Gabriel que contou com a presença de Antonio Geraldo, Francisco Hipólito, Luis Mendes e outras lideranças religiosas da doutrina do Daime.
E ouvindo a Madrinha contar os motivos de saúde que a levaram a procurar Frei Daniel Mattos e tudo o que lhe ocorreu desde então, não pude evitar uma breve volta no tempo, a uma época em que a atual Vila Ivonete ainda não passava de uma colocação do velho seringal Empreza, afinal...

Já lá se vão mais de cem anos desde que o povo da Villa Rio Branco, cansado de esperar pelos padres católicos que só vinham ao Acre durante poucos meses no ano - e mesmo assim, sempre com a rapidez das desobrigas - decidiu erguer uma capelinha em homenagem a N.S. da Conceição, como padroeira de Rio Branco. Ali pertinho da secular Gameleira que havia visto a cidade nascer.
Já lá se vão mais de oitenta anos desde que a Igreja Católica, representada pelo Bispo da Prelazia do Alto Purus, resolveu destituir a pequenina capela de sua imagem de N. S. da Conceição, já que o Bispo queria usar essa imagem para adornar a igreja de São Sebastião, recentemente construída na Rua Epaminondas Jácome (onde hoje se encontra o colégio Meta). Isso levou à revolta os moradores da cidade que, armados de foices e terçados, foram em procissão retomar a santa “roubada” para devolvê-la à pequena capela do Segundo Distrito.
Já lá se vão mais de setenta anos desde que o maranhense Raimundo Irineu Serra resolveu dar baixa da Guarda Territorial e fundar uma comunidade religiosa ali nas margens do Igarapé Fundo, em terras do antigo Seringal Empreza. Mestre Irineu dava inicio então ao estabelecimento das bases doutrinárias do uso ritual do Daime (ou Ayahuasca, como preferem alguns) louvando a Jesus Cristo e a N.S.da Conceição, agora identificada como a Rainha da Floresta. Uma doutrina que através da fé, do amor e da caridade curou, entre muitos outros, o também maranhense Daniel Pereira de Mattos, que se encontrava à beira da morte.
Já lá se vão mais de sessenta anos desde que Mestre Irineu decidiu se mudar das margens do Igarapé Fundo para as terras altas da Colônia Custódio Freire e estabeleceu sua comunidade no lugar que passou a denominar de Alto da Santa Cruz, hoje mais conhecido como Alto Santo. E coube a Daniel Mattos prosseguir com seu próprio trabalho espiritual em uma capelinha construída ali mesmo nas proximidades do Igarapé Fundo, dando origem à Barquinha que em sua viagem pelo Mar Sagrado continua indistintamente praticando o bem e obras de caridade.
Já lá se vão cinqüenta anos desde que Frei Daniel começou a curar a doença que atormentava a jovem Francisca Campos do Nascimento e causava sofrimento também a seu marido Francisco Gabriel, bem como às suas filhas. Um tratamento longo e doloroso, mas que, após sete anos, deu origem a uma nova pessoa, a Irmã de Caridade Chica Gabriel (um nome que sintetiza a Madrinha e seu marido que, na verdade, são um só).
Já lá se vai uma noite inteira desde que ouvi alguns dos belos hinos da Madrinha Chica e seu emocionante relato de vida. E me surpreendi pensando que esses hinos bem poderiam estar sendo cantados indistintamente em qualquer igreja católica, evangélica ou daimista, porque falam da fé e do amor a Jesus. Foi quando compreendi que este lugar guardado por três igrejas - filhas diletas da obra de Frei Daniel - comandadas hoje por Francisco Hipólito, Antonio Geraldo e Madrinha Chica Gabriel se constitui no meio de um caminho sagrado que cruza toda nossa cidade. Um caminho que começa lá na velha Gameleira, passa pela Vila Ivonete e finda no Alto Santo, seguindo no rumo da imensa floresta que nos cerca.
Já lá se vai mais que uma noite inteira, apenas uma pequena parte da longa noite dos tempos, desde que senti pulsando a partir daqui, da Vila Ivonete, o coração de Rio Branco.


*Artigo publicado na coluna Miolo de Pote de 10 de junho de 2007

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