domingo, 18 de abril de 2010

Do ressoar das Sapupemas à Rádio Cipó




“Poder conservar uma tranquila alegria no coração, e ainda assim estar apreensivo em pensamento: desse modo se pode determinar a boa fortuna ou o infortúnio na terra e concluir tudo o que é difícil sobre a terra.”(I Ching, o Livro das Mutações, Pág. 268)




Seção Memórias (Crônicas) de agora



Esta semana, um dos eventos mais importantes de que já participei, foi em grande medida ignorado ou, quando não, incompreendido pela “poderosa” mídia tradicional. O que, aliás, vem se tornando uma tônica da imprensa brasileira quando o assunto é o uso cultural da Ayahuasca. Felizmente, e paradoxalmente, este foi também um dos eventos mais discutidos e repercutidos nas ruas de Rio Branco e de muitos outros cantos do planeta, o que, no mínimo, nos faz refletir sobre o pretenso “poder” dos veículos de comunicação formais.
Coincidentemente, nesta sexta-feira conversava por telefone com uma querida amiga que está passando uma temporada longe do Acre em busca de se aperfeiçoar na arte da comunicação. E, como sempre, conversamos sobre diversos assuntos que fazem parte de nossa pauta usual. Novas mídias, promoção cultural em tempos de internet, limites e possibilidades das mídias formais como tv, rádio e jornais.
Mas, como já confessei aqui - diversas vezes, aliás - tenho certas dificuldades (ou implicâncias) com esse novo mundo pós-moderno chamado internet. Por isso nunca deixo passar a chance de mexer com essa amiga (blogueira de primeira hora) enfatizando as lacunas e as falhas que as novíssimas e fascinantes ferramentas digitais, bem como as mídias mais tradicionais, revelam a todo instante. Daí para meu velho conjunto de argumentos sobre o fascínio e a duração da palavra escrita, é um pulo. Mas dessa vez a conversa tomou um rumo um pouco diferente.
Acontece que, ao longo de toda a história da humanidade, cada um dos diferentes povos que já existiu sobre a face da terra sempre engendra, inventa, suas próprias formas de comunicação. O que nos faz constatar que a necessidade de transmitir notícias, informações, impressões, acontecimentos, é tão antiga quanto o próprio homem. Ou, como diria o Velho Guerreiro, em sua forma simples e direta: “Quem não se comunica se trumbica”. E no Acre não teria porque ser diferente.
Assim me lembrei de uma história antiga que li de algum alfarrábio do qual não me lembro ao certo (a idade é mesmo um problema) que contava que a comunicação na floresta amazônica nunca foi fácil. E nem é difícil de entender por que. Trata-se de um meio-ambiente com características muito especiais. A vegetação extremamente densa restringe muito o campo de visão e faz com que no meio da mata os principais sentidos sejam a audição e o olfato. O que já é muito diferente para nós seres urbanos que somos tão guiados pela visão. Sem mencionar as grandes distancias que normalmente separam os que moram na floresta,
Além disso, a densa vegetação também impede a propagação ao longe de sons agudos (que são os mais altos). Assim, os povos indígenas da Amazônia criaram sistemas de comunicação muito originais. Diferente dos famosos (graças ao cinema) povos indígenas das pradarias norte-americanas que usavam sinais de fumaça para se comunicar à distancia, nossos povos da floresta descobriram que só os sons muito graves possuíam a capacidade de se propagar em meio a floresta para atingir locais mais longínquos. Por isso desenvolveram buzinas feitas de cerâmica, rabo de tatu e outros materiais cuja finalidade era mandar breves mensagens entre uma comunidade e outra, ou para viabilizar o contato entre grupos que se deslocavam em expedições de caça ou de guerra.
Outro meio também muito utilizado pelos povos indígenas, e que mais tarde foi assimilado por seringueiros, é bater nas enormes abas das sapupemas das gigantescas árvores amazônicas. O som grave assim produzido ecoa muito longe dentro da mata e consegue transmitir notícias e informações através de códigos bem estabelecidos. Uma batida significa isso, duas aquilo, e assim por diante.

Mais tarde os seringueiros do ciclo da borracha readaptaram esse sistema usando tiros de papo-amarelo para anunciar o nascimento de uma criança, um acidente, uma morte, a chegada de viajantes à certa colocação, etc. Provando que a capacidade do homem de se reinventar e adaptar a qualquer meio-ambiente do planeta, por mais hostil que pareça, é infinita.
Assim, me aproveitei do fato de que essa minha amiga, além de jornalista, toca(va) baixo num conjunto de Rock e, portanto, é apaixonada pelos sons graves, para provar a tese que eu defendia no momento: de que não será por ausência de internet, televisão ou jornais, que vamos deixar de nos comunicar. Como nos lembra, aliás, todos os dias, um dos meios mais populares da comunicação destas terras de Galvez, a famosa e eficiente Rádio Cipó.
É como está escrito em nosso tradicional Senadinho: “Quando o povo diz, ou é, ou foi, ou será”. Antes assim.

domingo, 11 de abril de 2010

No coração de Rio Branco*

“Quando o sol se vai, a lua surge. Quando a lua se vai, o sol surge. O sol e a lua se alternam, e assim nasce a luz.(...) O passado se contrai. O futuro se expande. A contração e a expansão agem um sobre o outro, despertando, assim, o que favorece.
(...)Assim , a entrada de uma idéia em estado ainda germinal, na mente, promove a atividade desta ultima. Quando o homem torna fecunda sua atividade e traz paz à vida, sua natureza se eleva.
O que quer que vá além disso, ultrapassa todo conhecimento. Quando um homem apreende o divino e compreende as transformações, ele eleva sua natureza ao nível do miraculoso.”
(I Ching, o Livro das Mutações, Pág. 258)

Amanhã, segunda-feira, tem início um importante seminário organizado pelas Comunidades Tradicionais da Ayahuasca. Então não resisti à tentação de trazer de novo a esta coluna um texto que escrevi há quase três anos...

Botija de histórias

Nesta ultima sexta-feira, 08 de junho, a cidade de Rio Branco viveu, de forma muito discreta - mas, extremamente bela - um dos momentos de mais importantes e significativos de sua história. Me refiro à comemoração dos cinqüenta anos de missão da Madrinha Chica Gabriel. Um momento tão singelo e emocionante como própria trajetória dessa extraordinária mulher, que fez de sua fragilidade física uma força tão grande, que se tornou capaz de guiar centenas de irmãos nos caminhos da caridade e do amor ao próximo.
Como testemunha desse importante evento, eu não poderia deixar de registrar aqui toda a admiração que sinto pelo trabalho da Madrinha e de seus irmãos e filhos de missão. E assisti, encantado, a cerimônia de homenagem a Madrinha Chica Gabriel que contou com a presença de Antonio Geraldo, Francisco Hipólito, Luis Mendes e outras lideranças religiosas da doutrina do Daime.
E ouvindo a Madrinha contar os motivos de saúde que a levaram a procurar Frei Daniel Mattos e tudo o que lhe ocorreu desde então, não pude evitar uma breve volta no tempo, a uma época em que a atual Vila Ivonete ainda não passava de uma colocação do velho seringal Empreza, afinal...

Já lá se vão mais de cem anos desde que o povo da Villa Rio Branco, cansado de esperar pelos padres católicos que só vinham ao Acre durante poucos meses no ano - e mesmo assim, sempre com a rapidez das desobrigas - decidiu erguer uma capelinha em homenagem a N.S. da Conceição, como padroeira de Rio Branco. Ali pertinho da secular Gameleira que havia visto a cidade nascer.
Já lá se vão mais de oitenta anos desde que a Igreja Católica, representada pelo Bispo da Prelazia do Alto Purus, resolveu destituir a pequenina capela de sua imagem de N. S. da Conceição, já que o Bispo queria usar essa imagem para adornar a igreja de São Sebastião, recentemente construída na Rua Epaminondas Jácome (onde hoje se encontra o colégio Meta). Isso levou à revolta os moradores da cidade que, armados de foices e terçados, foram em procissão retomar a santa “roubada” para devolvê-la à pequena capela do Segundo Distrito.
Já lá se vão mais de setenta anos desde que o maranhense Raimundo Irineu Serra resolveu dar baixa da Guarda Territorial e fundar uma comunidade religiosa ali nas margens do Igarapé Fundo, em terras do antigo Seringal Empreza. Mestre Irineu dava inicio então ao estabelecimento das bases doutrinárias do uso ritual do Daime (ou Ayahuasca, como preferem alguns) louvando a Jesus Cristo e a N.S.da Conceição, agora identificada como a Rainha da Floresta. Uma doutrina que através da fé, do amor e da caridade curou, entre muitos outros, o também maranhense Daniel Pereira de Mattos, que se encontrava à beira da morte.
Já lá se vão mais de sessenta anos desde que Mestre Irineu decidiu se mudar das margens do Igarapé Fundo para as terras altas da Colônia Custódio Freire e estabeleceu sua comunidade no lugar que passou a denominar de Alto da Santa Cruz, hoje mais conhecido como Alto Santo. E coube a Daniel Mattos prosseguir com seu próprio trabalho espiritual em uma capelinha construída ali mesmo nas proximidades do Igarapé Fundo, dando origem à Barquinha que em sua viagem pelo Mar Sagrado continua indistintamente praticando o bem e obras de caridade.
Já lá se vão cinqüenta anos desde que Frei Daniel começou a curar a doença que atormentava a jovem Francisca Campos do Nascimento e causava sofrimento também a seu marido Francisco Gabriel, bem como às suas filhas. Um tratamento longo e doloroso, mas que, após sete anos, deu origem a uma nova pessoa, a Irmã de Caridade Chica Gabriel (um nome que sintetiza a Madrinha e seu marido que, na verdade, são um só).
Já lá se vai uma noite inteira desde que ouvi alguns dos belos hinos da Madrinha Chica e seu emocionante relato de vida. E me surpreendi pensando que esses hinos bem poderiam estar sendo cantados indistintamente em qualquer igreja católica, evangélica ou daimista, porque falam da fé e do amor a Jesus. Foi quando compreendi que este lugar guardado por três igrejas - filhas diletas da obra de Frei Daniel - comandadas hoje por Francisco Hipólito, Antonio Geraldo e Madrinha Chica Gabriel se constitui no meio de um caminho sagrado que cruza toda nossa cidade. Um caminho que começa lá na velha Gameleira, passa pela Vila Ivonete e finda no Alto Santo, seguindo no rumo da imensa floresta que nos cerca.
Já lá se vai mais que uma noite inteira, apenas uma pequena parte da longa noite dos tempos, desde que senti pulsando a partir daqui, da Vila Ivonete, o coração de Rio Branco.


*Artigo publicado na coluna Miolo de Pote de 10 de junho de 2007

terça-feira, 6 de abril de 2010

Fora, à parte (acho que é escrito assim o que se diz)

Como já disse antes, criei esse blog por insistencia do Toinho. Tenho dificuldades, e faço questão de admitir, com esse universo da Internet. Gosto de livros, de cheiro de papel, de ler no banheiro, na rede, na cama e onde mais me oferecer o acaso... Me incomoda a virtualidade e a impermanencia dos blogs, a inconsistencia dos e-mails, a superficialidade do twiters (que ainda nem frequentei, na verdade).
Mas como gosto de ser fiel aos amigos (apesar de inconstante que sou), me lembro também que fazia parte da sugerencia de Toinho que esse blog, em forma de espelho da coluna do jornal, pudesse ir um pouco além do impresso, antecipando textos, ou mesmo trazendo coisas que não cabem lá no Miolo de Pote de papel.
Assim... lá vai...

Pr'aquilo que se oculta

Minha poesia tem gosto de deserto.
Árida poesia que nem mais quer florescer.

Voltas de meu coração,
Não mentiroso,
Mas irremediavelmente
fantasioso...

Causa última dessa
desimpaciência
que me aniquila o verbo.

Só te peço
que não traia
Minha poesia
Porque é rara... e breve
como estrela cadente
que risca o céu
sem deixar, ao menos,
lembrança na retina.
Mas enquanto brilha...
Brilha...

Gosto das margens,
de andar no fio da navalha,
de buscar o infinito
contido em tudo que limita.

As raias da insanidade
talvez escondam,
enfim,
liberdade...

Obs: de hoje em diante será assim, portanto, o que achar que devo coloco aqui, só por desencargo de consciência... só não estranhem minha inconstância (ou inconsistência, ou incoerência, sequer)

sábado, 3 de abril de 2010

A pedidos...

Mesmo com uma semana de atraso, lá vai...
Antes tarde do que tarde demais...

“O Livro das Mutações contém a medida do céu e da terra; por isso ele possibilita a compreensão do Tão do céu e da terra.
No livro se encontram as formas e os domínios de todas as configurações no céu e na terra, de modo que nada lhe escapa. Nele todos os seres se completam e nenhum lhe falta. Por isso, por seu intermédio, podemos penetrar o Tão do dia e da noite, de modo a compreende-lo. O espírito, portanto, não está vinculado a nenhum lugar específico, nem o Livro das Mutações a qualquer forma em particular.”(I Ching, o Livro das Mutações, Págs. 228 e 229)


Peço desculpas aos improváveis leitores desta coluna pelas duas ultimas semanas de ausência por aqui. Mas o tempo não para e as coisas, às vezes, acocham... Afinal, também preciso ganhar o pão de cada dia... Aliás, ôôôô tempinho agitado esse...


Botija de Histórias
“É chamado de caçador marupiara, aquele homem de sorte em suas caçadas que, além de profissional, conhece os mistérios da caça.
O Marupiara, quando anda na mata e vê muitos vestígios de caça grande, não atira para não espantar outras maiores. A caça grande é a anta, o caititu, o veado e outros. A caça miúda, ou seja, a embiara, o Nambu, Jacu, a Cutia e assim por diante.
Para alguns caçadores profissionais, panema, azar, tudo isso não passa de ilusão.
O caçador experiente, quando demora a matar a caça, não desanima, porque ele sabe que nem todo dia é dia de caça. A vezes, o caçador a procura para um lado e ela está pra outro bem diferente.
Também, o caçador, quando faz suas boas caçadas, dá carne de caça a quem quer que seja e não atinge moleza. Até parece dar sorte.
Por outro lado, sabe-se que existem mistérios, mas nem tanto como alguns pensam. Para ser bom caçador, tem que seguir a seguinte regra: não ter medo de onça; conhecer a mata; ter paciência e conhecer os mistérios da caça.”
In Hélio Melo – A experiência do caçador e os mistérios da caça – do seringueiro para o seringueiro; Rio Branco, 1996; pág. 10



Inter ativa
Agradeço aos comentários e sugestões dos leitores ao ultimo artigo desta coluna. E conforme prometido vou tentar atender aos seus pedidos e questionamentos. Portanto, nesta e nas próximas semanas vou tentar trazer pra cá algumas “histórias de seringal” conforme pedido por Kellen Maria.
Quanto à pergunta do Valdo: “Porque a igreja católica não divulga a Nossa Senhora da Seringueira?”
O que posso dizer é o seguinte... Se olharmos com atenção a trajetória da Igreja católica no Acre poderemos perceber que sua estratégia consistiu em aceitar os santos e mártires de devoção local. Condição, por exemplo, do São João do Guarani, da Santa Raimunda do Bonsucesso e tantos outros espalhados pelos seringais e cidades acreanas. Ou seja, a Igreja, oficialmente, fazia vista grossa às manifestações de fé a esses santos populares, sem reconhecê-los, mas também sem negá-los explicitamente. O que, convenhamos, era uma estratégia inteligente.
Ao mesmo tempo, entretanto, a Igreja tratava de importar Santos de origem européia tentando com isso estabelecer uma gradativa substituição ou sublimação da fé do povo em favor de seus preceitos tradicionais. O próprio Bispo Dom Joaquim Pertinez trata desse assunto em seu livro “História da Diocese de Rio Branco”, afirmando que “Ao chegarem ao Acre, os padres trouxeram toda a bagagem do catolicismo romano. (...) achavam que o catolicismo brasileiro fosse muito bagunçado. (...) não tendo na devida conta a experiência secular do catolicismo do povo. (...) Os santos de devoção italiana, começaram a tomar o lugar dos santos do povo(...) Estes santos, começaram até fazer mais milagres, sobretudo São Filipe e São Peregrino, que ganharam de São Sebastião e São Francisco (...)”(págs. 159, 160 e 161)
Mas, o mesmo Bispo Dom Joaquim, com muita coerência, aliás, ressalta que essa prática não foi assimilada sem reações da população e cita um dos muitos casos que tiveram lugar em diversas partes do, então, Território Federal do Acre: “(...) o povo de Sena Madureira não ficou conformado, afinal a imagem de São Peregrino estava ocupando o lugar central do Altar Mor, enquanto a de Nossa Senhora tinha sido rebaixada num altar lateral. Assim durante a noite a estátua do novo santo, que por sinal pesava mais de cem quilos, foi colocada por vinte homens no altar lateral e a de Nossa Senhora no Altar Mor. Os padres chamaram a polícia para verificar o acontecido que eles não teriam possibilidade de explicar. Só no dia seguinte, uma carta assinada ‘a união dos vinte’ procurava dar esclarecimentos sobre o gesto, pois o novo santo, recém chegado, não poderia ocupar o primeiro lugar na igreja.” (pág.161)
Portanto, no caso da N. S. do Acre e também da N.S. da Seringueira, penso que temos casos similares aos descritos acima. Por outro lado, me parece que desde os anos 80, a situação começou a mudar e diferentes manifestações da fé popular, voltaram a ser valorizadas pela igreja, como conseqüência de teologia da libertação e sua “opção pelos pobres”. E, mais recentemente, o trabalho de restauração e musealização do histórico quadro da N.S. da Seringueira empreendido conjuntamente pela Diocese de Rio Branco, Governo do Estado e Prefeitura revela um processo de valorização do Patrimônio Histórico e Cultural acreano. No qual se inserem também outras ações, como a realização de pesquisas, edição de livros sobre a história da Igreja no Acre e as obras realizadas na Catedral N.S.de Nazaré.