domingo, 29 de abril de 2012

Mestre Irineu e a Esfinge Amazonica (II)

Depois de um longo intervalo alheio à minha vontade, hoje trazemos a segunda parte do resumo de um texto que me foi pedido e publicado, à guisa de introdução, no extraordinario livro de Paulo Moreira e Edward MacRae: “Eu venho de longe - Mestre Irineu e seus companheiros”


O movimento espiritual, cultural e social criado por Raimundo Irineu Serra - junto com outros homens como Daniel Mattos e Gabriel Costa - se espalhou desde sua genese por áreas da política, das instituições publicas e privadas, pelo campo artístico, simbólico e estéticos integrantes do Acre do século XX, e, por conseguinte, também do nosso próprio mundo pós-moderno.
Por isso, em certas passagens deste livro, seus autores se confrontam com questões relacionadas ao contexto político acreano. Momentos sobre os quais a aplicação de parâmetros gerais da história política brasileira ao caso do Acre e à atuação de Irineu junto às lideranças políticas locais, pode parecer extraordinariamente tentadora. Porém, no Acre não existe direita, centro, esquerda; neo-liberais, democratas ou socialistas da forma como nos acostumamos a pensar em relação ao Brasil.
Por força de seu contexto político diferenciado, como Território Federal desde 1904, os acreanos não tinham direitos políticos que os possibilitassem ter partidos e disputas eleitorais que consolidassem espectros ideológicos claramente definidos.
Daí, por exemplo, porque a Legião Autonomista que originou o PTB local e que teoricamente representava setores mais populares e “autonomistas” da sociedade, foi contra o projeto que transformava o Território Federal em Estado Autônomo, ao final dos anos 50. Ao passo, que o PSD, originado do antigo Partido Construtor e, portanto, pelo menos teoricamente, mais conservador, elitista e favorável às políticas do governo federal, foi quem levantou e defendeu o movimento que resultou na tardia criação do Estado do Acre, em 1962.
Da mesma forma não se pode transformar a amizade de Mestre Irineu com o Cel. Fontenele de Castro e com o Governador Guiomard Santos, lideres maiores do PSD acreano, que após 1964 seria transformado na Arena, em um possível apoio político à Ditadura Militar. Esta tentativa pode não ser mais do que uma extrapolação de inexistentes composições políticas e sociais do contexto acreano. Ao passo que se constitui num dos temas mais importantes do trabalho desenvolvido neste livro.


Na verdade, as relações de Mestre Irineu com Fontenele e Guiomard eram muito mais pessoais, corporativas e até mesmo afetivas, do que propriamente políticas. O apoio político de Fontenele e Guiomard, com toda a força de representantes da elite governante, foi o que possibilitou certa distensão de muitos dos preconceitos da sociedade acreana em geral ao uso religioso do Daíme. Daí que um apoio eleitoral de Irineu a eles era também natural, permanente e independente de qualquer mudança conjuntural no longínquo Brasil.
Até porque os vinte anos de Ditadura Militar foram, aqui no Acre, em grande medida, simples continuidade do autoritarismo e do regime de exceção até então vigente. Aqui no Acre a democracia ainda não havia chegado, a não ser pelo breve período de 1962-64. Importante não esquecer, portanto, que não podemos interpretar a história política do Acre no período militar sob os mesmos parâmetros que aplicamos para o restante do país. Apenas mais uma das inúmeras armadilhas da esfinge acreana.
Daí o desafio imenso a que se propuseram Paulo e Edward ao pretender, e conseguir, reunir documentos, depoimentos e eventos significativos na trajetória deste personagem histórico tão singular que foi Mestre Irineu. Por que esse trabalho tem o potencial de ressignificar não só a formação do Acre, mas de imensas áreas até então invisíveis da própria história brasileira.
Afinal, em que outro lugar do Brasil, índios, negros, caboclos, brasileiros e estrangeiros conseguiram interagir a ponto de dar origem a uma nova manifestação religiosa, totalmente original? O advento do Santo Daíme já é, por si só, um acontecimento extraordinário. Surgiu da floresta, de uma cultura gestada a partir do conhecimento e da vivencia na floresta e seguiu expressando suas sínteses mesmo quando transportada para o meio urbano sem, em grande medida, ceder às manipulações e forças de mercado.
Talvez por isso o Acre tenha sido ao longo de sua breve história e, ainda seja, terreno fértil para tantos homens e mulheres diferenciados. Quem poderia dizer que neste pedaço esquecido, desprezado, ignorado de floresta um dia iria surgir um líder espiritual da estatura de Mestre Irineu? Da mesma forma que ninguém poderia imaginar que daqui, das distantes florestas acreanas, surgiria também um líder popular e mundialmente significativo como Chico Mendes. Ambos coincidentemente nascidos em 15 de dezembro, ainda que com meio século de diferença entre eles.
O que há, enfim, de tão diferente no Acre? Não sei dizer. Posso adiantar somente que Paulo e Edward com sua importante pesquisa, agora materializada neste belo e instigante livro, dão uma enorme e inequívoca contribuição para qualquer um que se proponha a, ao menos tentar, desvendar a fascinante esfinge acreana.

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