O que é a história, senão mera manifestação dessa estranha capacidade do espírito humano de se encantar com o que é belo e se indignar com o injusto... Historiadores há que dedicam toda sua vida a corroborar essa simples constatação.
Eu ainda estava na Faculdade quando o conheci. Desde então, a visão que eu tinha do mundo e dos processos históricos mudou completamente. Mais do que os professores-doutores na sala de aula, foi o livro “Veias abertas da América Latina” que me revelou a verdadeira dimensão de nossa tragédia histórica, graças a qual padecemos de grande parte dos problemas e da miséria social que ainda existem neste continente que já foi considerado, um dia, o paraíso na terra.
Anos mais tarde descobri que o uruguaio Eduardo Galeano havia nos retratado por inteiro na maravilhosa Trilogia “Memórias do Fogo”. E, há cerca de três ou quatro anos, recebi da Dani como presente por meu aniversário, o extraordinário “Livro dos Abraços”, onde dezenas de ignoradas, mas fundamentais, pequenas histórias fluem saborosamente misturando poesia, mitos, lendas, tradições orais e histórias clássicas. Foi quando definitivamente decidi: quando eu crescer quero ser igual a ele.
Pois bem, recentemente, transitando em uma livraria, encontrei, ou fui encontrado, por mais um livro de Galeano: “Espelhos – Uma história quase universal” que tem preenchido meus dias com prazer, espanto e encanto. Assim não pude resistir à vontade de compartilhar nesta coluna pelo menos um pouquinho do profundo e ético conhecimento desse que é, pra mim, o maior historiador vivo de nosso tempo.
De desejo somos
A vida, sem nome, sem memória, estava sozinha. Tinha mãos, mas não tinha em quem tocar. Tinha boca, mas não tinha com quem falar. A vida era uma, e sendo uma era nenhuma.
Então o desejo disparou sua flecha. E a flecha do desejo partiu a vida pela metade, e a vida tornou-se duas.
As duas metades se encontraram e riram. Ao se ver, riam; e ao se tocar, também.
Avós
Para muitos povos da África negra, os antepassados são os espíritos que estão vivos na arvore que cresce ao lado de sua casa ou na vaca que pasta no campo. O bisavô do seu tataravô é agora aquele arroio que serpenteia na montanha. E também seu ancestral pode ser qualquer espírito que queira acompanhar você na sua viagem pelo mundo, mesmo que nunca tenha sido seu parente, nem conhecido.
A família não tem fronteiras, explica Soboufu Somé, do povo Dagara:
- Nossas crianças têm muitas mães e muitos pais. Tem tantos quantos quiserem.
E os espíritos ancestrais, os que nos ajudam a caminhar, são os muitos avós que cada um tem. Tantos quanto quisermos.
Fundação da contaminação
Os pigmeus, que são de corpo curto e memória longa, recordam os tempos de antes do tempo, quando a terra estava em cima do céu.
Da terra caía sobre o céu uma chuva incessante de pó e de lixo, que sujava a casa dos deuses e envenenava sua comida.
Os deuses estavam há uma eternidade suportando aquela carga uimunda, quando de repente perderam a paciência.
Enviaram um raio que partiu a terra em dois. E através da terra aberta lançaram o sol para o alto, e a lua e as estrelas, e por esse mesmo caminho eles também subiram. E lá em cima, longe de nós a salvo de nós, os deuses fundaram seu novo reino.
Desde aquela época, estamos cá embaixo.
Servos e senhores
O cacau não precisa do sol, porque o traz por dentro.
Do sol de dentro nascem o prazer e a euforia que o chocolate dá.
Os deuses tinham o monopólio do espesso elixir, lá nas alturas, e nós, os humanos, estávamos condenados a ignorá-lo.
Quetzacóatl roubou-o para os toltecas. Enquanto os outros deuses dormiam, ele pegou umas sementes de cacau e as escondeu em sua barba e por um longo fio de aranha desceu até a terra e as deu de presente à cidade de Tula.
A oferenda de Quetzalcóatl foi usurpada pelos príncipes, pelos sacerdotes e pelos chefes guerreiros.
Apenas os seus paladares foram dignos de recebê-la.
Os deuses do céu tinham proibido o chocolate aos mortais, e os donos da terra o proibiram para as pessoas comuns e correntes.
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