sábado, 30 de abril de 2011

O Joca Escangota

(ou Entre a fome e a vontade de saber)

Quando a gente pensa que já viu de tudo nessa vida, sempre surge alguém revelando algo que foge de nossa compreensão. Há alguns dias passei por Mâncio Lima e a história que ouvi por lá, a respeito de um misterioso peixinho que só pode ser encontrado nos igarapés dessa região e que possui extraordinários efeitos afrodisíacos, me deixou de boca aberta e vazia...

Quando a fome aperta é difícil pensar em outra coisa, senão em comer. E este dia já andava pelo meio da tarde e nada de comida. Como eu já vinha, nos dois dias anteriores, comendo pouco e de forma irregular, estava particularmente faminto. Por esse motivo quando a bóia finalmente saiu, naquela bela chácara construída às margens do Igarapé Branco, eu tinha muito pouco interesse em qualquer outra coisa senão no lindo e cheio prato que estava diante de mim.
Assim, quando o senhor que estava ao meu lado começou a contar uma curiosa história, eu nem quis prestar atenção de início, mas aos poucos a história que ouvia se revelava tão surpreendente que não consegui mais manter a atenção exclusiva em matar aquilo que me matava e comecei a me concentrar, e o que é ainda pior: comecei a perguntar mais e mais sobre o tal estranho e misterioso peixe chamado JOCA.




Segundo ele, as autoridades locais começaram a perceber que poderia haver algo diferente em Mâncio Lima, quando, mesmo sabendo que o povo dali é tradicionalmente filhento, se percebeu que a maioria dos nascimentos de crianças nas famílias de baixa renda se dava de forma concentrada em uma determinada época do ano (fevereiro e março). Exatamente nove meses depois do período (maio e junho) em que se costumava pescar o tal peixinho chamado Joca.
Foram atrás de investigar se isso era apenas coincidência e descobriram aquilo que o povo que vive à margem dos muitos igarapés de Mâncio Lima já sabia há muito tempo. O tal peixe Joca é um poderoso afrodisíaco, talvez o mais poderoso e efetivo de que já se tenha tido noticia na história da humanidade.
Neste ponto da narrativa, contada com um irônico e curioso sorriso nos lábios, é bom que se diga, eu já tinha quase esquecido do prato que ainda estava pela metade diante de mim. E me pus a perguntar: E esse peixinho é fácil de pegar? Tem muito dele por aqui? Ao que recebi uma desconsoladora resposta: Mais ou menos. Acontece que o Joca tem hábitos estranhos. Passa a maior parte do ano sumido pra dentro das locas, mas depois da época da cheia ele vem pros poços que se formam em quase todas as curvas dos igarapés para se reproduzir. Mas, é preciso atenção! Ele não tem paradeiro certo. De repente ele aparece em algum poço, mas é preciso aproveitar na hora, se você voltar no dia seguinte, já não tem mais nenhum pra contar história, eles somem tão rapidamente quanto aparecem.
Por outro lado, tem uma vantagem no Joca. Se você acertar o lugar onde ele está, pega o bando todinho. Um atrás do outro, vão mordendo a isca e você vai pegando tudinho, até não restar mais nenhum. Ou o Joca é muito guloso, ou é muito burro. Pode até ser que seja excesso de confiança já que ele é muito difícil de morrer. Passa o dia todinho no fundo da canoa se debatendo, correndo de um lado pra outro, mas não morre. Enquanto tu não põe ele pra fritar na panela, fica lá vivo.
Além disso, o bicho é tão poderoso que, quando a gente frita, ele vai aos poucos ficando cada vez mais ereto, chegando a escangotar o corpo assim pra cima (e neste ponto nosso narrador faz um gesto com o braço pra mostrar como o Joca vai torcendo o corpo pra cima até ficar totalmente ereto). Acho que nem preciso falar que neste ponto da conversa de meu parceiro de mesa, eu já tinha esquecido totalmente o prato ainda cheio e mesmo a fome que me corroia as entranhas. A curiosidade humana é realmente uma força extraordinariamente poderosa.
Mas ainda tinha mais e sorrindo, agora escancaradamente, diante de meu olhar de desconfiança, o vizinho evocou o testemunho do cidadão que estava na outra ponta da longa mesa, montada ao ar livre, em que nós almoçávamos. Ei fulano, conta pra ele do Joca Escangota! Ao que o outro respondeu sem titubear. É verdade, o Joca é fantástico, funciona mesmo. Mas só se você comer a cabeça dele. Nem adianta comer só a carne do corpo porque não dá nada. Todo o poder afrodisíaco do Joca está num óleo que ele tem só na cabeça.
Neste ponto eu já estava decidido a questionar aquela história, pela absoluta desconfiança de que eles estavam tirando uma onda com a minha cara. Mas, ignorando solenemente minha descrença, ele prosseguiram. Rapaz é verdade. Teve aqui um pessoal da Unicamp que levou alguns Jocas pra analisar no laboratório e confirmaram que o óleo da cabeça dele é mesmo afrodisíaco. O mais potente tipo de afrodisíaco já encontrado e estudado. Ao que eu respondi: então este peixe é uma mina de ouro!
Pois é. Concordaram comigo meus interlocutores. O problema é que não adianta criar ele em cativeiro que não dá nada. Não foi possível disfarçar, então, meu completo espanto. Ué??? Mas, como assim???



E do alto de um, agora, grande e largo sorriso meus interlocutores prosseguiram em sua explicação. Estamos falando porque nós já tentamos. Pegamos algumas matrizes e jogamos num açude. Eles até se criaram bem, mas quando comemos, não tinha nenhum efeito, era só mais um peixinho comum. E prosseguiram.
É que parece que o segredo não está no Joca em si, mas no que ele come na mata. O pessoal da Unicamp não soube explicar, mas o povo que vive nessas beiras daqui nos contou o mistério deste peixinho. É que na época da cheia as águas invadem boa parte da floresta. Durante este período o Joca se espalha na mata alagada e come as frutas que caem na água. E é de uma dessas frutinhas o óleo, que se concentra na cabeça do Joca, que possui um imenso poder afrodisíaco. Portanto, quando o criamos no açude, ele não come da fruta e não tem poder nenhum.
E que fruta é essa, afinal??? (perguntei desconcertado) E eles, já gargalhando, me concederam ainda essa ultima resposta: Isso é o que ninguém sabe!!! E é provável que nunca fiquemos sabendo, faz parte dos mistérios do Joca Escangota que só nós de Mâncio Lima temos.
Neste ponto eu tinha chegado à fatídica conclusão. Eles estavam mesmo me enganando. Mas a história toda tinha sido tão bem construída e tão cheia de detalhes e respostas já prontas, que eu mesmo tentava me convencer que havia algum fundo de verdade em tudo isso. Assim, quando duvidei abertamente de meus interlocutores, eles sabiam que eu já tinha mordido a isca (faminto com o tal Joca). Rapaz! Isso é mentira!!! Vocês estão me enganando!!! Mas era tarde. Eles juraram que era tudo verdade e que bastava perguntar pro Deputado tal, pro Governador, pro Bispo, enfim, pra quem eu quisesse, porque todos eles sabiam da extraordinária história do Joca Escangota.
Só me restou então, engolir minha descrença (e, de quebra, minha fome de um almoço não totalmente concluído) e me render, no mínimo, às maravilhas da criatividade humana. Pois ainda que essa história toda seja mentira, não deixa de ser uma história muito da sua boa e, além disso, muito bem contada por meus simpáticos companheiros de quase-almoço. Era hora de, com ou sem fome, prosseguir viagem.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

O poder do pequeno

(Ou segredos de polichinelo...)

Esta semana a grande imprensa brasileira voltou a usar o Acre como tema para mais uma polêmica nacional. Desta vez a questão esteve relacionada à liberação de documentos ultra-secretos do governo brasileiro, contra a vontade do Itamaraty. Que misteriosas tramóias estariam relacionadas à anexação do Acre ao Brasil, a ponto de fazer a diplomacia brasileira temer tanto a revelação do conteúdo de documentos de um século atrás?

Semana passada tratamos aqui de questões relacionadas às eleições presidenciais do Peru e suas conseqüências para o Acre. Tratamos, portanto, dos problemas e desafios impostos por nossa condição de tríplice fronteira internacional. E não é que, nesta semana, coincidentemente, uma nova polêmica se instalou no Congresso Nacional exatamente por conta do Acre e suas fronteiras?
Explico. Está em tramitação no Senado o Projeto de Lei nº 41/2010 que trata da liberação de uma série de documentos ultra-secretos do governo brasileiro, ao limitar o tempo máximo de guarda confidencial (atualmente sob sigilo eterno) de toda sorte de documentação oficial.
Entretanto, curiosamente, o Itamaraty tem resistido o quanto pode à divulgação de alguns de seus documentos. Segundo o que noticiou o Portal de notícias R7, sob a alegação de que a revelação de certos episódios da Guerra do Paraguai e da Anexação do Acre ao Brasil poderia trazer enormes prejuízos às atuais relações internacionais do Brasil na América Latina. Ainda, de acordo com a notícia publicada, nossos diplomatas temem que, neste momento em que o Brasil assume uma condição de liderança continental e global, nosso país passe a ter uma imagem Imperialista frente aos nossos vizinhos mais pobres.
Com todo respeito aos nossos diplomatas, esta é uma das idéias mais absurdas que já ouvi em toda minha vida. Desde quando o Brasil precisa de mais algum documento para comprovar aquilo que já está escrito em todos os nossos livros de história? Afinal, uma das maiores e mais significativas características de nossa história diplomática, desde os portugueses, é exatamente a utilização das mais diversas formas de engodos e simulações para nos garantir o máximo de vantagens territoriais, políticas e econômicas. Um tipo de atuação que foi, muitas e muitas vezes, classificada pelos outros países latino-americanos como um comportamento imperialista de nosso país?
Peguemos apenas alguns poucos e bons exemplos para tirar quaisquer duvidas que possamos ter a esse respeito.
Ou alguém desconhece que o português Alexandre de Gusmão, tido como o fundador de nossa diplomacia, mandou confeccionar um mapa completamente distorcido com o objetivo de enganar os espanhóis? O famoso “Mapa das Côrtes” – que foi essencial para a negociação que resultou no Tratado de Madrid, assinado em 1750 – retratava diversos rios, especialmente o Paraguai e o Madeira, posicionados muito mais a leste do que eles realmente são. E, graças a esse estratagema, expropriou a Espanha de uma imensa área de terras em benefício de Portugal (e por conseqüência do Brasil), ampliando muito o território que lhe pertencia desde o Tratado de Tordesilhas. Nesta época o Acre ainda nem existia, mas já começava a poder vir a ser graças à “malandragem” (precursor do “jeitinho” brasileiro, quem sabe?) da diplomacia Lusa.




Ou, ainda, o tão famoso, quanto mal-conhecido, episódio da troca do “Acre por um cavalo branco”. Quando, em meio às negociações que resultariam na assinatura do Tratado de Ayacucho (1867), o cônsul brasileiro ofereceu ao “Loco” Mariano Melgarejo, então presidente da Bolívia, um lindo casal de cavalos de raça, que de tão feliz ofertou ao Brasil dois dedos de um território demarcado nos, ainda imprecisos, mapas da Amazônia Ocidental. Ganhamos assim um enorme triangulo de terras que, diga-se de passagem, estava situado ao norte da linha de limites oblíqua – que seria mais tarde conhecida como Linha Cunha Gomes - e por isso constitui parte do atual estado do Amazonas e não do Acre, jogando por terra a lenda de que o Acre foi trocado por um cavalo.
E, para terminar a série de “pequenos” exemplos, e não dizer que deixamos de mencionar o “Deus Terminus” das fronteiras brasileiras, como é chamado orgulhosamente pela diplomacia brasileira, o Barão do Rio Branco. Não nos custa lembrar que foi este “genial” diplomata quem mandou sumir com o famoso “Mapa da Linha Verde”, durante as negociações que culminaram com a assinatura do Tratado de Petrópolis (1903), pondo fim à “Guerra do Acre”. Um mapa que comprovava “incontestavelmente” o direito da Bolívia sobre o Acre e que, tão misteriosamente quanto havia sumido, reapareceu algum tempo depois de concluídas as negociações diplomáticas.
Por outro lado, é preciso considerar que a liberação para consulta desses documentos que ainda permanecem secretos pode ser essencial para explicar muitos outros episódios ainda obscuros da história do Acre e do Brasil. Não só os mais antigos, como também aqueles, mais recentes, relacionados à Ditadura Militar. O que é muito bom.
Para nos mantermos apenas nas questões relacionadas ao Acre. Podemos esperar que – com a aprovação desta lei pelo Senado, prevista para o dia 3 de maio, em homenagem ao “Dia Mundial da Liberdade de Imprensa” – finalmente tenhamos acesso ao inquérito militar que apurou as circunstancias da morte de Plácido de Castro, alguns anos após o termino da Revolução. Misteriosos documentos que até hoje não puderam ser consultados nem por pesquisadores do próprio exército. Talvez porque envolvam diretamente o Coronel Gabino Besouro, mais um dentre os muitos militares que foram nomeados para governar o Acre.
Quem sabe, possamos enfim saber se a poderosa Casa Rothschild de Londres, principal credora estrangeira do Brasil, subornou ou não o Presidente Campos Sales para que este reconhecesse que o Acre era da Bolívia e se negasse a atender aos reclames da população brasileira que aqui residia em 1898. O que acabou provocando a Revolução Acreana, segundo me contava meu saudoso amigo Seu Hélio Koury.
Ou, ainda, talvez, nos seja dado o direito de descobrir em que circunstancias o Barão do Rio Branco teve a nefasta idéia de transformar o Acre no primeiro Território Federal da história brasileira, negando aos acreanos o direito a uma cidadania plena, numa maldição que perdurou por quase seis décadas.
Afinal, deveria ser um direito básico de todo e qualquer cidadão brasileiro ter acesso à sua própria história, sob pena do Brasil, mesmo querendo, nunca conseguir ser grande o suficiente para poder ao menos ser suspeito de Imperialista.Nessas horas em que vejo o Acre, um dos menores estados brasileiros, suscitando os mais inesperados e surpreendentes debates na grande imprensa é que me vejo obrigado a concordar com um dos bordões prediletos do jornalista Silvio Martinello: “O Acre é pobre, mas é enjoado.”

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Vizinhos, pero no mucho

(ou Notícias de além fronteira, ou Nós não vizinhamos com eles...)

Ainda não sei o que é pior: uma enorme manchete escandalosa e sensacionalista, ou uma completa ausência de manchetes e opiniões.

Nos últimos anos tenho tido a felicidade de conhecer grandes e variados contadores de histórias nesse Acre de meu Deus. Desde aqueles que falam sem cessar e ninguém consegue encaixar uma pergunta sequer e por isso mesmo possuem um certo encanto de alagação. Passando por aqueles que do alto de insuspeita simplicidade inundam de sabedoria cada palavra dita e cada sentido traçado. Ou, ainda, por aqueles outros que completam sua imensa profundidade de pensamento com imagens inesperadas, singulares e surpreendentes pelas ricas interpretações que oferecem acerca de seu tempo de vida nesse mundo. Tantos que nem vou tentar relacioná-los aqui, pelo risco imperdoável de esquecer alguém.
Mas entre tantos, devo confessar que um de meus preferidos é o Toinho Alves. Me lembro bem que quase todas as vezes (e foram muitas nos últimos anos) em que lhe perguntavam: Mas o que é “Florestania” mesmo? Ele sacava de seu surrado bisaco, uma história que me encantava profundamente. E que, ainda por cima, tinha enorme eficácia ao revelar um outro olhar sobre a vida na floresta que é muito pouco compreendido pelos seres “urbanos”.
Diz Toinho que entre as famílias do Juruá é muito comum o povo dizer que “vizinha” com a casa de fulano de tal que fica a três horas de caminhada, mas não vizinha com o beltrano que mora a apenas meia hora. Ficamos sabendo que é assim porque vizinhar com alguém é muito mais do que apenas estar próximo. Vizinhar é guardar a melhor parte da caça, o quarto traseiro, para presentear seus vizinhos, mesmo que acabe sobrando só algum pedaço de quarto dianteiro para sua própria família.
O povo do Juruá, portanto, nos ensina que vizinhar é não só contar com o outro diante de alguma eventual dificuldade, mas cultivar por ele um comportamento ético, repleto de respeito e de estima verdadeira. Completamente diferente do que acontece em nossas grandes-mega-cidades onde os vizinhos de andar, de prédio ou de rua, mal se olham quando estão no mesmo elevador. Constrangedora solidão daqueles que vivem nessa massa amorfa de milhões de rostos desconhecidos.
Ou seja, o povo urbano não sabe mais o que é vizinhar, esqueceu. Mas aqui na floresta, a vida às vezes é tão difícil, tão trabalhosa, que pra se ter tranqüilidade é preciso cultivar a solidariedade e a generosidade. Afinal, nunca se sabe se um dia não será preciso tirar alguém doente numa rede durante horas de caminhada ou de navegação. Por isso, ao chegar a qualquer casa da floresta, sempre se pode pedir abrigo e um prato de comida que será certamente atendido, com o que houver de melhor. Isso é “florestania”. Viver em função de uma lógica distinta da maioria dos cidadãos deste vasto e repleto planeta em permanente estado de guerra e destruição.
Preciso admitir que muitas vezes eu mesmo contei essa história pra explicar um dos possíveis sentidos do conceito de “florestania” que tanto foi discutido nos últimos anos como explicação fundante e estrutural de um novo momento político da história do Acre. Mas, dessa vez, eu não estou contando essa história pra falar de “florestania”. É que me lembrei dela ao deparar com o absurdo silencio da imprensa acreana, ao longo desta semana, acerca da recente eleição presidencial de nosso país vizinho: o Peru.



Se fossemos depender apenas das informações dos jornais locais pareceria que o Peru não esta decidindo o desenrolar de sua realidade nos próximos anos. Poderíamos até achar isso normal. Outro país, outra língua. Não estivéssemos passando por um processo de interligação política e econômica completamente novo entre o Acre e o Peru. Seria completamente normal, se não estivéssemos diante de enormes problemas sociais na fronteira graças à extração madeireira indiscriminada, à exploração de hidrocarburetos e aos projetos neoliberais do Presidente Alan Garcia. Um processo recente e particularmente intenso de expropriação dos povos indígenas e tradicionais do lado de lá e de devastação das regiões de cabeceiras dos nossos principais rios, que já vem causando inúmeros conflitos e problemas ambientais, que precisam ser efetivamente encarados em toda sua gravidade.
Como se não fizesse nenhuma diferença para nós no Acre se o vencedor da eleição peruana for Humala ou Fugimori. Como se não significasse nada as diferenças entre um nacionalista - meio Chavez, meio Evo, meio Lula - e uma conservadora - meio pai, meio filha, meio pior do que o atual Alan. Como se tudo isso não nos pudesse afetar de forma alguma. Mas, nesse momento em especial. Não olhar pro Peru é deixar de olhar para uma parte importante de nós, que é nossa vasta fronteira com eles, através da qual compartilhamos muito mais do simples marcos de limites. Impressionante a falta de perspicácia e senso de atualidade da imprensa acreana. Aqui do lado uma importante eleição presidencial rolando e não vemos nada. Mas é fácil apenas criticar a imprensa. No fundo o problema não é dela, mas da própria sociedade. Como cobrar da imprensa local uma cobertura interessante, responsável, profunda sobre um vizinho tão próximo se os próprios acreanos não tão nem aí pro que acontece acolá. Não tenho duvida que se os acreanos tivessem consciência da atual situação de nossas fronteiras, a imprensa fatalmente estaria dando muito mais atenção ao outro lado das notícias...




Mas nada, nem um editorialzinho, nem uma análise mais embazada. Só recortes da grande imprensa através do, sempre mais confortável, “Ctrl+Z/Ctrl+C”. O que a gente precisa mesmo é de uma profunda mudança cultural, que nos faça observar o mundo circundante em outra perspectiva. Enquanto a integração com o Peru for traduzida apenas por obras de infra-estrutura, nenhuma inter-relação será real. A ligação física entre as cidades do Acre e do Peru pode vir a ser muito importante se não estiver restrita a interesses econômicos, mas atender aos interesses e expectativas sociais dos acreanos.
Afinal, isolamento é muito mais que uma questão meramente física. Poderíamos estar mais longe uns dos outros e ainda assim estarmos mais juntos. Da mesma forma que podemos estar muito próximos uns dos outros, como vizinhos lado a lado, e nos encontrarmos completamente sós diante da tal pós-modernidade e seus paradoxos. Aqui no Acre ainda não padecemos da mesma esquizofrenia “urbana” da solidão na multidão. Mas, certamente ainda temos outros tipos de síndromes. Como esse estranho gosto por se considerar uma ilha em relação ao mundo, a enigmática ilha Acre que alguns ainda insistem em dizer que não existe.De um jeito ou de outro é preciso concluir que, infelizmente, ainda não vizinhamos com los hermanos peruanos, como também nunca o fizemos com os patrícios de la Bolívia. Até quando?

Nossa Senhora do Acre

Ainda tratando da espiritualidade acreana, uma mudança radical de tema nos leva a perguntar: Como o quadro de Nossa Senhora da Seringueira pintado por um boliviano veio parar no Acre? Porque não há notícias sobre esse quadro e sua captura nos documentos da Revolução Acreana? De que forma o quadro foi levado ao Rio de Janeiro, de onde seria contrabandeado para os EUA? Mistérios há que, talvez, seja melhor não desvendar...

O Pintor desconhecido
“O Coronel João Rola, o Major Brandão e o Coronel Hipólito Braga diziam que, conforme afirmavam os antigos, a imagem fora pintada por um índio boliviano que alegava ter visto Nossa Senhora segurando na mão um ramo de seringueira. O céu realmente foi pintado por um artista. Quem foi ele? No pé esquerdo do quadro, apenas as iniciais L.P.”
Fragmento de texto do Padre José

A Captura da Santa
“Disseram também que este quadro surgiu quando os bolivianos, para enganar os brasileiros de Plácido, fizeram uma procissão com o quadro, ali por perto da Gameleira e, de surpresa, iriam atirar por detrás da imagem e pegar nossos patrícios católicos de surpresa. Mas Plácido não acreditou na súbita religiosidade dos adversários e pedindo perdão à Mãe de Jesus mandou balas para lá, atingindo a tela, como se pode verificar olhando a pintura. Tudo acabou numa vitória dos nossos, sem quase perdas de vidas e com a posse do quadro.”
Fragmento de texto do Padre José

Outra versão - Fronteiras em Guerra
Logo depois da grande vitória da Volta da Empreza (atual Rio Branco), em 15 de outubro de 1902, Plácido recebeu noticias sobre movimentações de tropas bolivianas nos rios Órton, Thauamano e no Abunã. Ousado, decidiu então se internar na Bolívia para cortar as linhas de abastecimento do inimigo.
Assim, em 18 de novembro, Plácido e seu exército de seringueiros atacou Santa Rosa, importante ponto de abastecimento boliviano no Abunã. Depois marchou para Costa Rica onde atacou os bolivianos no dia 08 de dezembro de 1902, dia de N. S. Senhora da Conceição. E é o próprio Plácido que conta que: “A 8 contramarchamos conduzindo armas, munições, archivos, etc. da guarnição tomada e a 10 chegamos novamente em Xapury.”
Teria sido nessa ocasião, e não em Rio Branco, que o quadro de N. S. da Seringueira foi aprisionado? Ainda não foram encontrados registros seguros nem de uma, nem de outra versão...

Frei Peregrino e o Contrabando da Santa
“O coronel João Donato de Oliveira, um dia nos revelou que na Embaixada dos Estados Unidos, no Rio de Janeiro, havia uma imagem de Nossa Senhora, que fora tomada na Revolução Acreana, e que estava sendo desviada para aquele país por um funcionário da embaixada.
Frei Peregrino tomou ciência do fato e dirigiu-se à embaixada onde tratou da historia do quadro. O embaixador admirou-se que pessoal da embaixada estivesse envolvida com isso e mandou que a pintura fosse entregue ao missionário reclamante. Foi cedido o avião do próprio embaixador, e o adido naval dos Estados Unidos veio pessoalmente a Rio Branco trazer a preciosa carga.
Fragmento de texto do Padre José

Nossa primeira padroeira
A história de Rio Branco com Nossa Senhora da Conceição começou muito cedo. Nem bem o Acre se tornara Território Federal e a Villa Rio Branco sede do governo do Alto Acre, os moradores da cidade se reuniram para construir nossa primeira igreja. Foi assim erguida a Capela de N. S. da Conceição, que passou a ser considerada a padroeira de Rio Branco.
Não se sabe ao certo a data de sua construção. Os documentos acerca deste acontecimento nos dão duas informações contraditórias. A publicação de uma foto da fixação do primeiro esteio da Capela no Álbum de Rio Acre, editado em 1907, faz pensar em 1905 ou 06. Entretanto um registro do livro de tombo da Prelazia dá notícia que ela teria sido erguida em 1908. O certo é que até a construção da Igreja de São Sebastião na rua Epaminondas Jácome (1º Distrito), ela permaneceu sendo o lugar da fé acreana.

Nossa Senhora do Acre
A devoção do povo de Rio Branco à N. S. da Conceição era tanta que as festas realizadas anualmente logo se tornaram o mais importante evento religioso de todo o vale do rio Acre. Não demorou muito e Nossa Senhora da Conceição passou a ser considerada padroeira de todo o Departamento e, já a partir de 1910, chegou mesmo a ser tratada como Padroeira de todo o Acre.
Ainda assim, a antiga capela de madeira, construída espontaneamente pelos moradores de Rio Branco, foi mantida por muitos anos, só sendo substituída pela atual Igreja da Imaculada da Conceição, em 1948. E com a construção da Catedral no 1º Distrito, a padroeira da cidade passou a ser Nossa Senhora de Nazaré.

Obs: Estes textos integram a exposição montada na capela de madeira do Parque Capitão Ciriaco onde está exposto para visitação pública o histórico quadro da Nossa Senhora da Seringueira.


Obs: Não consegui hoje postar as fotos deste artigo, vou tentar de novo mais tarde, mas como já to atrasado por demais com as postagens, vai assim mesmo...

quarta-feira, 6 de abril de 2011

História política recente da Ayahuasca (VI)

Todo o movimento até aqui descrito me faz acreditar que o reconhecimento das grandes diferenças existentes entre os três “campos ayahuasqueiros” – originário, tradicional e eclético - é capaz de possibilitar a pacificação, a união e uma construção coletiva que contemple a todos.


“Padrinho Sebastião da Colônia Cinco Mil

Do Santo Daime, da Santa Maria...

Em Corrente com Antonio Conselheiro

Esta anunciando

Que o Acre vai virar pasto de boi...”

(Pia Vila)




3 - O “Campo Neo-Ayahuasqueiro” (ou Eclético) é o mais recente, tem cerca de 40 anos de desenvolvimento. Mas é, talvez, o mais numeroso de todos, já que está, hoje, presente tanto no Brasil quanto em diversos outros países da América e da Europa. Ao passo que é, também, muito provavelmente, o campo de expansão mais acelerada.

Este campo foi iniciado por um outro “Mestre Fundador”, o Padrinho Sebastião Mota, também no Acre. De certa forma, essa expressão religiosa poderia até ser vista como parte do tronco do Alto Santo, porque, inicialmente, o Padrinho Sebastião também seguia estritamente a doutrina de Mestre Irineu. Entretanto, o processo social, histórico e político da Amazônia brasileira já era completamente diferente e exigiu, desta comunidade, novas e distintas respostas que resultaram numa outra configuração ritual e simbólica que, na prática, tornou-a fundadora deste novo “campo ayahuasqueiro”. Quando Padrinho Sebastião saiu do Alto Santo, após a morte de Mestre Irineu - fundando a colônia Cinco Mil e, mais tarde, o Céu do Mapiá - o Acre e Rondônia haviam se tornado regiões de grandes conflitos e crise social profunda. A ditadura militar transformou a Amazônia em área de expansão desenfreada da fronteira agrícola. Agora, o grande “negócio” era devastar a floresta, vender a madeira e plantar gado e soja. Resultado: grilagem de terras, expulsão de famílias da floresta, importação de trabalhadores sem terra do sul do país, assassinatos, corrupção, explosão populacional das cidades, convulsão social, etc.etc.etc. Entretanto, na Amazônia Ocidental e, em especial, no Acre, ocorreu uma forte resistência que, em grande medida, era eminentemente cultural e se expressou de diferentes formas. Enquanto seringueiros resistiam “empatando” a derrubada da floresta, índios rompiam com os “marreteiros”, intelectuais locais publicavam denúncias e faziam músicas de protesto, as comunidades tradicionais da ayahuasca se fecharam em si mesmas, sentindo-se, mais uma vez, ameaçadas pelo desconhecimento dos poderosos da hora, que eram “de fora”. Já o Padrinho Sebastião Mota e sua comunidade se abriram a uma parte dessa nova leva de migração das grandes cidades brasileiras do sul para a distante e exótica fronteira do Brasil. É bom lembrar que a década de 70 englobou os anos da contracultura, do amor livre, de Woodstok, do desbunde geral, e de um “renascimento” espiritual expresso através de novas formas de religiosidade “esotérica”. Enquanto ensinava o conhecimento amazônico da ayahuasca aos visitantes, Padrinho Sebastião também adquiria novas práticas e elementos culturais que, até então, não faziam parte das doutrinas tradicionais. Em especial, a decisão de utilizar outras “medicinas sagradas”, além da ayahuasca, em seus rituais e simbologia. Neste tempo, além dos fazendeiros e grileiros que invadiam o Acre e Rondônia, alguns integrantes das elites intelectuais e artísticas dos grandes centros urbanos começaram a peregrinar ao Acre e a professar o uso da ayahuasca no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Brasília, o que resultou numa radical expansão da agora chamada doutrina do “Santo Daime”. A partir dos anos 80 abriu-se, portanto, um canal de diálogo direto entre uma comunidade ayahuasqueira amazônica e segmentos das classes médias e altas urbanas que começaram a influir, não só na reconfiguração gradativa da doutrina de Padrinho Sebastião Mota, como também num fenômeno ainda mais recente: a proliferação de novas denominações e práticas religiosas, muito mais variadas, que passaram a incluir, de uma forma ou outra, o uso da Ayahuasca. Atualmente, existem centenas de igrejas espalhadas por todo o Brasil e diversos outros países. Elas têm as mais distintas configurações. Algumas seguem elementos doutrinários do Padrinho Sebastião, com o acréscimo de algumas novas características, outras dizem seguir os ensinamentos dos Mestres Irineu, Daniel ou Gabriel, mas divergem em seus rituais e práticas, enquanto outras fazem misturas completamente inusuais e dissociadas do que foi legado pelos “mestres fundadores”, mesclando yoga, meditação transcendental, esoterismos diversos, umbandaíme, taoísmo, medicina alternativa, etc., etc., etc. E, mesmo que estas novas configurações místicas ou religiosas constituam formas de expressão tão legitimas quanto quaisquer outras, são claramente distintas daquelas estabelecidas pelo campo dos ayahuasqueiros tradicionais. Torna-se, assim, evidente, que o reconhecimento das grandes diferenças existentes entre os três “campos ayahuasqueiros” podem possibilitar a união e uma construção coletiva que contemple a todos os ayahuasqueiros. Eis a sintaxe, uma proposta de vocabulário... Sinceramente falando, então. Hoje, os índios argumentam que a ayahuasca é deles, e que os não-índios deveriam pagar royaltis por sua cultura estar sendo usurpada. Os tradicionais, por conseguinte, acusam os neo-ayahuasqueiros de desvirtuar princípios fundamentais deixados pelos mestres fundadores. E os neo-ayahuasqueiros, por sua vez, criticam o governo brasileiro por tratá-los com preconceito e intolerância. Ou seja, todos reclamam de todos e pouco se conversa. E, é por isso que neste texto tanto insistimos sobre a necessidade de que a proposta de um arranjo específico para o inventário da ayahuasca seja, na prática, uma “pactuação política”. Um entendimento semelhante ao que, recentemente, ocorreu entre as comunidades tradicionais, como descrito nos artigos anteriores, e que resultou na iniciativa de propor um “olhar cultural” para as questões legais relacionadas à ayahuasca no Brasil. Uma pactuação política entre originários, tradicionais e neo-ayahuasqueiros que estabeleça, além de uma motivação comum, também o respeito pelas diferenças e pela necessidade de todos, um dia, falarem a mesma língua... a antiga linguagem (linhagem) cultural revelada pelo “vinho das almas”. Eis o Confessionário... Hora de voltar à pergunta: Qual mesmo a imagem do uso cultural da Ayahuasca para o povo brasileiro? Certamente, uma imagem ainda imprecisa, mas fruto de uma milenar mistura de ingredientes especiais: fogo, água, cipó Jagube cortado e batido, folhas limpas de Rainha, arte de quem faz, índios - muitos e diversos, negros fugidos ou desterrados, europeus e sua vasta descendência de mestiços, árabes e orientais de todas as cores, caboclos de tantas incertas origens. Misteriosa mistura de alquimias e rituais antigos... há muito curtidos em fervura branda para não desandar... Este é o trecho da história que tenho presenciado e o que compreendo dele... obs: Rapaz, acabei de me convencer que sou mesmo um analfabeto digital, pois como voces podem perceber desde o post passado que este blog resolveu por conta prórpria engolir todas as marcas de paragrafo e eu não sei o que fazer mais... Se alguem souber... Socorro!!!