segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

História política recente da Ayahuasca (II)

Qual a imagem que o uso da Ayahuasca tem para o povo brasileiro? Não apenas a imagem superficial, aquela imediatamente acessível a todos os olhos, todas as bocas, mas também a que ocupa um lugar muito mais profundo em nosso imaginário.

Eis o calendário...

Inesperadamente, a oportunidade. Já estávamos no meio de 2008, mas o aviso de que o Ministro da Cultura, Gilberto Gil, viria visitar mais uma vez o Acre, a última como dublê de Ministro e Músico, provocou nova reunião, na mesma Assembléia Legislativa, com a mesma composição que um ano antes.




Autoridades religiosas e políticas presentes no Alto Santo durante a cerimônia de entrega ao Ministro do pedido de registro da Ayahuasca como patrimônio cultural brasileiro. (fonte: blog do Altino).





E a luz se fez... O consenso aconteceu espontaneamente em torno de um novo arranjo, tão surpreendente quanto longamente cultivado. O pedido de reconhecimento do uso ritual da Ayahuasca como Patrimônio Cultural Brasileiro implicava, e todos tinham consciência disso, que ninguém poderia ser impedido de participar do processo.
Ou seja, provavelmente poderia, novamente, ocorrer uma mistura indistinta de grupos muito desiguais sob o imenso guarda-chuva da “Ayahuasca”, como já havia acontecido em outros fóruns e deliberações do estado brasileiro, como certas conflituosas reuniões do CONFEN. Em alguns casos, isso soava como inaceitável para os centros “tradicionais” do Acre.
Seria necessário, portanto, propor um processo de registro que, ao tratar dos fenômenos e manifestações sociais e culturais das comunidades ayahuasqueiras, tratasse e compreendesse, de forma distinta, os diferentes. E fazer isso sem se afastar do objetivo central, que é ver as culturas ayahuasqueiras reconhecidas como parte indissociável do tecido social do país, conquistando, assim, o deslocamento da questão da Ayahuasca do Gabinete da Presidência da República/CONFEN, para o Ministério da Cultura.
Sabendo, de antemão, que o reconhecimento da dimensão sócio-cultural do uso ritual da Ayahuasca não responderá, automaticamente, a todas as questões relacionadas ao uso recreativo da ayahuasca, ou as suas possíveis aplicações terapêuticas, ou a sua exploração turística e comercial, ou às possíveis abordagens jurídicas, etc. Por conseguinte, trata-se de estabelecer um novo e importante parâmetro de análise para que essas questões possam ser respondidas com mais coerência. Sem resultar, como acontece em tantos casos, em mais preconceito, intolerância ou discriminação de milhares de cidadãos brasileiros que fazem da Ayahuasca um sacramento religioso secular, milenar, amazônico, muito anterior, inclusive, ao próprio estado brasileiro.
Aproveitar a presença do Ministro da Cultura, Gilberto Gil, histórico representante artístico de nossa cultura tropical, florestal, tupiniquim, passou a ser, então, a possibilidade concreta de promover um acontecimento chave, e estabelecer um novo marco na história das comunidades ayahuasqueiras.




Ministro Gilberto Gil recebe o pedido de reconhecimento da Ayahuasca como patrimônio cultural brasileiro (fonte: blog do Altino).






Essa insuspeita conspiração do tempo possibilitou, assim, que fosse realizada uma singela solenidade (extra à “agenda oficial”) de entrega, ao Sr. Ministro, de um documento assinado por boa parte dos mais tradicionais centros daimistas e do vegetal (já que a UDV também participou de todo o processo), ligados aos três “mestres fundadores”: Irineu, Daniel e Gabriel.
Naquela noite especial, ali no antigo Alto Santo, de Mestre Irineu e Madrinha Peregrina, o nosso Gil (desculpando-me pela intimidade com o então Ministro, mas guiado pela força do costume de fã), recebeu mais que um pedido de abertura de um processo burocrático pelo paquidérmico estado brasileiro. Ele recebeu um documento que atesta o acordo/pacto celebrado pelas “Comunidades tradicionais da Ayahuasca” para, junto com os outros campos ayahuasqueiros da sociedade brasileira, lutar pelo pleno reconhecimento de seus legítimos direitos culturais e religiosos.




Ministro da Cultura Gilberto Gil cumprimentando a Dignatária do Alto Santo Madrinha Peregrina Gomes Serra em 30 de abril de 2008 (fonte: blog do Altino).






Um movimento em direção ao estado brasileiro, iniciado em 1991, com a elaboração da primeira carta de princípios das comunidades ayahuasqueiras ou, antes ainda, quando, em meados dos anos 70, chegou, por vias transversas, a certos novos baianos tropicalistas, uma garrafa do Daime de Mestre Irineu. Vai saber?!?! Um momento apenas, mas longo e profundo, como a própria noite dos tempos. Uma ocasião pra não esquecer.

(continua semana que vem).

Obs: Esta série de artigos integra o texto que será publicado, muito em breve, no livro do Seminário das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca, realizado em 2010.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

História política recente da Ayahuasca (I)

A Ayahuasca não existe na natureza, ela é um produto da cultura. Diferente do Peyote, do Tabaco, da folha de Coca e de outras tantas plantas que se tornaram sagradas e parte da elaboração de diversas e importantes formações sociais ao longo da história da humanidade.



A Ayahuasca, Daime, Vegetal, Huni, Kamarãpi - a “liana das almas” de tantas culturas e tantos diferentes nomes - é feita com a mistura de duas plantas diferentes: o cipó Jagube e a folha Chacrona, o que pressupõe, não apenas o conhecimento das propriedades de cada uma, como também a percepção da interação entre ambas. É, pois, marca cultural da Amazônia, impressa no tecido do mundo. Conhecimento antigo, engendrado durante milhares de anos... Presente da floresta à humanidade...
Ainda que assim seja, é imprescindível perguntar: qual a imagem que o uso da Ayahuasca tem para o povo brasileiro? Não apenas a imagem superficial, aquela imediatamente acessível a todos os olhos, todas as bocas, mas também a que ocupa um lugar muito mais profundo em nosso imaginário.
Uma possível resposta não pode ser obtida de forma breve ou superficial. Só a compreensão da história cultural e política, que tem sido construída pelas comunidades ayahuasqueiras na Amazônia e no Brasil, no último século, pode ser capaz de nos dar uma explicação minimamente confiável.

Eis o Breviário...
Foram muitas reuniões, mas não conseguimos construir um consenso válido e satisfatório, mesmo havendo boa vontade de todos ali reunidos e tendo um objetivo comum, esse sim, consensual.
Estávamos em 2007. As reuniões aconteciam na Assembléia Legislativa do Estado do Acre, com a presença de várias das principais lideranças “políticas” das maiores e mais antigas comunidades ayahuasqueiras do Acre, alguns gestores públicos e a coordenação da Deputada Federal Perpétua Almeida.
Discutíamos uma nova tomada de posição em relação à postura do estado brasileiro, que ainda insiste em discutir as questões relativas à Ayahuasca, sob a ótica de uma política nacional antidrogas. Parecia óbvia, então, para todos, a incapacidade do governo em encontrar um eixo de discussão que contemplasse, de forma integral, as necessidades das comunidades ayahuasqueiras, tendo em vista os aspectos históricos peculiares do Acre e a liberdade religiosa garantida na constituição brasileira.
O fato é que, nos últimos cinco anos, tanto o Governo do Estado do Acre quanto a Prefeitura de Rio Branco, impelidos pelas comunidades, têm buscado desenvolver uma nova abordagem, com caráter prioritariamente cultural e ambiental. Por conta disso, por exemplo, foram abertos diversos processos de tombamento no Alto Santo e no sítio histórico de Rio Branco, foi criada a APA Irineu Serra, foram realizadas ações de fortalecimento do Centro de Memória Daniel Mattos - criado por iniciativa da própria comunidade herdeira da doutrina desse Mestre Fundador - além da criação de outros centros e salas-memória.
Ainda assim, foi muito difícil encontrar uma ação consensual que servisse para estender este novo eixo de diálogo também ao Governo Federal. Embora a possível solução já parecesse bastante evidente: propor o reconhecimento do uso da Ayahuasca como patrimônio cultural amazônico e brasileiro, simplesmente ainda não estávamos prontos e, além disso, não tínhamos respostas satisfatórias para as diversas perguntas e questões que se colocavam.


Irmandade do Alto Santo - Ao centro Mestre Irineu e à esquerda (o 5º) Daniel Mattos – década de 30

Eis o plenário...
Nesse meio tempo, teve início o fértil processo de construção do Sistema Municipal de Cultura de Rio Branco. Pela primeira vez, pessoas das comunidades ayahuasqueiras participavam diretamente do movimento cultural acreano, da mesma forma que muitos outros segmentos que, até então estavam excluídos, se auto-excluíam ou, simplesmente, não participavam mesmo, também se integraram.
Foi muito interessante ver daimistas, artistas, líderes comunitários, filhos e mães de santo, militantes, esportistas, turismólogos, roqueiros, metaleiros e forrozeiros, juntos, discutindo um mesmo princípio. Assim nasceu a diversidade, que é mãe desse conselho de cultura municipal de tantos pais e de configuração tão particular.
O funcionamento de trinta e cinco câmaras temáticas, somado ao seu diferenciado modelo de auto-representação, possibilitou que as diferenças, apenas recentemente afloradas, se aprofundassem. Sob esse signo, começou a funcionar a Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras, experiência que pode ser conhecida, com maiores detalhes, em muitos dos textos do livro do Seminário realizado no ano passado e que está em vias de imediata publicação.
É importante explicitar que as discussões ocorridas, desde então, nesta Câmara, não só proporcionaram um aprofundamento de temas, conteúdos e conceitos da área cultural, como se tornaram uma referência avançada para outras câmaras menos articuladas ou ativas. Uma surpresa. Afinal, não havia como prever, durante a construção do Sistema de Cultura de Rio Branco, quais das Câmaras Temáticas iriam avançar, quais iriam ter dificuldades, e quais nem chegariam a funcionar plenamente.
Logo, a partir de diversos trabalhos coletivos - não sem muita discussão, divergências e contratempos - a Câmara de Culturas Ayahuasqueiras se tornou uma das mais inovadoras e consistentes desse nosso instigante Conselho de Cultura.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Na carreira...

Nesta semana estamos reabrindo os trabalhos anuais da coluna Miolo de Pote. E, mesmo sabendo que fazer esse tipo de coisa não é lá muito comum, quero, já no primeiro artigo do ano, confessar de público um dos meus mais antigos e arraigados vícios: corridas de Fórmula 1.


Abrindo o verbo

Parece que foi ontem, mas o tempo passa cada vez mais ligeiro e avexado. Assim estamos iniciando hoje o quinto ano da coluna Miolo de Pote. Uma coluna semanal que não tem nenhum compromisso estrito com temas ou formatos. Apenas a vã tentativa de, a cada ano, encontrar novos caminhos para manter alguma motivação para esse que vos escreve e para quem, por ventura, venha a ler os, normalmente, muito longos artigos desta coluna.
E, talvez seja bom ressaltar já neste ponto, que desde o ano passado tenho procurado atender à solicitações e sugestões de leitores enviadas através de e-mail, da área de comentários do jornal, ou, ainda, através do blog-espelho da coluna (colunamiolodepote.blogspot.com). O que pretendo continuar fazendo esse ano.
A idéia inicial é continuar trazendo para cá textos sobre aspectos diversos da história e da cultura acreana, arqueologia, questões indígenas e amazônicas, etc. Novidade mesmo, pelo menos por enquanto, é a nova “arte” da coluna, generosamente criada e doada por Ulisses Lima, grande parceiro que pode ser encontrado no blog da Confraria dos Últimos Românticos (confrur.blogspot.com).
Além disso, estou propondo ter uma pequena coluneta sobre Fórmula 1, sem periodicidade definida, agregada à coluna. Uma vez que conheço alguns poucos, mas bons, viciados como eu, que não tem nenhum espaço nos jornais locais pra poder jogar conversa fora. Ou, dito de outra forma, conversar “miolo de pote” sobre esse esporte completamente irrelevante do ponto de vista social, mas imensamente fascinante no que diz respeito à necessidade humana de desafiar continuamente seus próprios limites físicos, tecnológicos, etc...
E, já de saída, convido a todos aqueles que gostam de corridas a enviar artigos, comentários ou críticas que poderão ser aqui publicados na medida do possível.
Por isso esse primeiro artigo é dedicado às ultimas novidades da temporada 2011 da fórmula 1. Imagino que com isso, estarei decepcionando alguns dos leitores usuais da coluna, aos quais peço desculpas, mas, vícios são vícios, e costumam ter razões que a própria razão desconhece.


Carreras son Carreras

É triste, mas é verdade. Sou totalmente viciado em Fórmula 1. A ponto de dar nó em pingo d’água pra não perder uma corrida, ou ficar acordado a madrugada inteira só pra assistir os treinos de classificação que antecedem as corridas, afinal de contas, na atual Fórmula 1, usualmente são os treinos que definem quem vai vencer a corrida.
Na verdade, esse é um vicio antigo... Começou há muito com Fittipaldi e se estendeu pelos últimos trinta anos de minha vida. Mas sobre o vício em si e as motivações que me levam a não ingressar no VCA (viciados em corridas anônimos), conversaremos outro dia. Hoje não resisti à tentação de dar meus palpites sobre a temporada que apenas iniciou seus trabalhos, nesta semana, em Valência.
Começando pelo lançamento, ocorrido ontem, do novo modelo da Mclaren. Foi com grande surpresa, que li a declaração de Jenson Button de que o estranhíssimo carro desse ano foi feito sob medida para o seu estilo de pilotagem. Será que Jenson está dizendo que a Mclaren dará prioridade a ele ao invés de Hamilton - que, sabidamente, sempre foi o queridinho da equipe de Wocking a ponto de obrigar o mimado Fernando Alonso a ter que sair da equipe inglesa, para um ano quase sabático na sofrível Renault, enquanto esperava uma vaga pra correr na Ferrari?
Porque, ou eu sou muito burro, ou está subentendido que se a Mclaren priorizou o estilo de Button, o fez em detrimento do estilo bem mais agressivo de Hamilton. E se assim foi feito, porque Hamilton até aqui não falou nada sobre esse improvável favorecimento de Button no projeto do novo carro? Prefiro achar que isso é conversa fiada do Button e o novo carro será muito mais eficiente para o estilo de Hamilton do que o contrário, quem viver verá...
Aliás, esse tem sido um dos principais argumentos para o discurso pré-temporada de vários pilotos. Começando pelo heptacampeão Schumacher, cujo retorno foi uma das maiores decepções do ano passado. Enquanto todo mundo esperava que ele fosse rivalizar com Vettel, Alonso, Hamilton, Kubica, etc. se limitou a comer poeira de seu jovem companheiro de equipe Niko Rosberg. E, é claro, a culpa pelo desempenho pífio de Schumacher foi atribuída ao carro, que não favorecia o “estilo” de pilotagem do alemão. Da mesma forma que a culpa pelos pobres resultados de Felipe Massa foram dos pneus que não favoreciam o “estilo” do brasileiro.


E como se essa fosse a fórmula mágica da nova Fórmula 1 (repaginada por uma série de mudanças no regulamento) muitos foram os pilotos que - justificando suas fracas atuações na temporada passada ou plantando novas e grandes expectativas para a atual temporada - fizeram suas análises baseados na relação entre as características dos carros, seus pneus, especificações de certos componentes (como o renascido Kers), e seus “estilos” de pilotagem. Acho engraçado porque não me lembro de Piquet, Prost, Senna, Mansell e tantos outros mitos do automobilismo, justificando seus fracassos em razão de uma pretensa incompatibilidade entre modelo do carro e seu “estilo” de pilotagem. Ainda assim alguém pode argumentar que era outra Fórmula 1 e os tempos são outros. Mas é assim mesmo, na pré-temporada todos os argumentos são válidos e incontestáveis.
E, pra finalizar esta coluna de reestréia, não posso deixar de falar da apresentação de quase todos os novos carros de 2011. Como primeiras impressões gerais (já que dos testes de Valência em si é quase impossível tirar qualquer conclusão porque ninguém sabe qual programa foi executado por cada equipe e/ou piloto) posso, ao menos, observar que: a Ferrari, de novo teve medo de inovar em qualquer coisa e continuou sendo conservadora como no ano passado, o que fez com que só passasse a disputar vitórias a partir da segunda metade da temporada com a evolução do modelo; a Williams é a equipe com o carro mais bonito (com sua pintura retro), já que a nova Lotus Renault nem de longe lembra a mitológica lótus preta guiada por Fittipaldi e Senna e acabou ficando meio brega e exagerada; a Redbull parece bem na fita ao lançar um carro que é uma evolução do vitorioso carro do ano passado; mas a surpresa do ano, pelo menos até aqui, é mesmo o novo carro da Mclaren que ainda não foi pra pista, mas já foi revelado ao publico causando espanto geral por suas formas inovadoras, que eu, particularmente, achei muito do seu feio... ao contrário de boa parte da crônica especializada que está se derramando em elogios à ousadia dos ingleses e à beleza do novo carro (argh!!), eu só quero é ver se essa joça anda mesmo.. Vamos esperar... Afinal, como já dizia o lendário Juan Manuel Fangio: “Carreras, son carreras, y terminan cuando se baja la bandera de cuadros”.
Mas que a temporada 2011 promete... isso promete. E lá vamos nós, madrugada a dentro, de novo...