domingo, 13 de fevereiro de 2011

História política recente da Ayahuasca (I)

A Ayahuasca não existe na natureza, ela é um produto da cultura. Diferente do Peyote, do Tabaco, da folha de Coca e de outras tantas plantas que se tornaram sagradas e parte da elaboração de diversas e importantes formações sociais ao longo da história da humanidade.



A Ayahuasca, Daime, Vegetal, Huni, Kamarãpi - a “liana das almas” de tantas culturas e tantos diferentes nomes - é feita com a mistura de duas plantas diferentes: o cipó Jagube e a folha Chacrona, o que pressupõe, não apenas o conhecimento das propriedades de cada uma, como também a percepção da interação entre ambas. É, pois, marca cultural da Amazônia, impressa no tecido do mundo. Conhecimento antigo, engendrado durante milhares de anos... Presente da floresta à humanidade...
Ainda que assim seja, é imprescindível perguntar: qual a imagem que o uso da Ayahuasca tem para o povo brasileiro? Não apenas a imagem superficial, aquela imediatamente acessível a todos os olhos, todas as bocas, mas também a que ocupa um lugar muito mais profundo em nosso imaginário.
Uma possível resposta não pode ser obtida de forma breve ou superficial. Só a compreensão da história cultural e política, que tem sido construída pelas comunidades ayahuasqueiras na Amazônia e no Brasil, no último século, pode ser capaz de nos dar uma explicação minimamente confiável.

Eis o Breviário...
Foram muitas reuniões, mas não conseguimos construir um consenso válido e satisfatório, mesmo havendo boa vontade de todos ali reunidos e tendo um objetivo comum, esse sim, consensual.
Estávamos em 2007. As reuniões aconteciam na Assembléia Legislativa do Estado do Acre, com a presença de várias das principais lideranças “políticas” das maiores e mais antigas comunidades ayahuasqueiras do Acre, alguns gestores públicos e a coordenação da Deputada Federal Perpétua Almeida.
Discutíamos uma nova tomada de posição em relação à postura do estado brasileiro, que ainda insiste em discutir as questões relativas à Ayahuasca, sob a ótica de uma política nacional antidrogas. Parecia óbvia, então, para todos, a incapacidade do governo em encontrar um eixo de discussão que contemplasse, de forma integral, as necessidades das comunidades ayahuasqueiras, tendo em vista os aspectos históricos peculiares do Acre e a liberdade religiosa garantida na constituição brasileira.
O fato é que, nos últimos cinco anos, tanto o Governo do Estado do Acre quanto a Prefeitura de Rio Branco, impelidos pelas comunidades, têm buscado desenvolver uma nova abordagem, com caráter prioritariamente cultural e ambiental. Por conta disso, por exemplo, foram abertos diversos processos de tombamento no Alto Santo e no sítio histórico de Rio Branco, foi criada a APA Irineu Serra, foram realizadas ações de fortalecimento do Centro de Memória Daniel Mattos - criado por iniciativa da própria comunidade herdeira da doutrina desse Mestre Fundador - além da criação de outros centros e salas-memória.
Ainda assim, foi muito difícil encontrar uma ação consensual que servisse para estender este novo eixo de diálogo também ao Governo Federal. Embora a possível solução já parecesse bastante evidente: propor o reconhecimento do uso da Ayahuasca como patrimônio cultural amazônico e brasileiro, simplesmente ainda não estávamos prontos e, além disso, não tínhamos respostas satisfatórias para as diversas perguntas e questões que se colocavam.


Irmandade do Alto Santo - Ao centro Mestre Irineu e à esquerda (o 5º) Daniel Mattos – década de 30

Eis o plenário...
Nesse meio tempo, teve início o fértil processo de construção do Sistema Municipal de Cultura de Rio Branco. Pela primeira vez, pessoas das comunidades ayahuasqueiras participavam diretamente do movimento cultural acreano, da mesma forma que muitos outros segmentos que, até então estavam excluídos, se auto-excluíam ou, simplesmente, não participavam mesmo, também se integraram.
Foi muito interessante ver daimistas, artistas, líderes comunitários, filhos e mães de santo, militantes, esportistas, turismólogos, roqueiros, metaleiros e forrozeiros, juntos, discutindo um mesmo princípio. Assim nasceu a diversidade, que é mãe desse conselho de cultura municipal de tantos pais e de configuração tão particular.
O funcionamento de trinta e cinco câmaras temáticas, somado ao seu diferenciado modelo de auto-representação, possibilitou que as diferenças, apenas recentemente afloradas, se aprofundassem. Sob esse signo, começou a funcionar a Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras, experiência que pode ser conhecida, com maiores detalhes, em muitos dos textos do livro do Seminário realizado no ano passado e que está em vias de imediata publicação.
É importante explicitar que as discussões ocorridas, desde então, nesta Câmara, não só proporcionaram um aprofundamento de temas, conteúdos e conceitos da área cultural, como se tornaram uma referência avançada para outras câmaras menos articuladas ou ativas. Uma surpresa. Afinal, não havia como prever, durante a construção do Sistema de Cultura de Rio Branco, quais das Câmaras Temáticas iriam avançar, quais iriam ter dificuldades, e quais nem chegariam a funcionar plenamente.
Logo, a partir de diversos trabalhos coletivos - não sem muita discussão, divergências e contratempos - a Câmara de Culturas Ayahuasqueiras se tornou uma das mais inovadoras e consistentes desse nosso instigante Conselho de Cultura.

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