sábado, 14 de agosto de 2010

Mutações (I)

(ou Daqui se pode ver, ao longe,
as novas fronteiras do horizonte)

O céu é alto, a terra, baixa, assim o Criativo e o Receptivo se determinam. As posições inferiores e superiores se estabelecem de acordo com essa diferença entre o baixo e o alto.
O movimento e o repouso têm suas leis definidas de acordo com as quais distinguem-se as linhas firmes e maleáveis. Os acontecimentos seguem seus rumos próprios, cada qual segundo sua natureza. As coisas distinguem-se umas das outras de acordo com classes específicas. Desse modo tem origem a boa fortuna e o infortúnio. Os fenômenos surgem no céu, as formas surgem na terra. Assim a mutação e a transformação se manifestam.(I Ching, O Livro das Mutações)












Semana passada meus filhos foram ao Parque Capitão Ciriaco. Por acaso chegaram lá na hora em que Seu Aldenor e Seu Manoel estavam defumando mais uma pela de borracha. Fruto do leite abundante das 400 seringueiras que nos sombreiam nos dias de sol abrasador e nos assombram nos dias de ventania, porque aqui e acolá uma resolve se mostrar ocada pelo tempo e vem ao chão.
Eu não estava na hora, mas vi no computador as imagens que a mãe deles gravou. E não pude evitar a sensação de estar diante de um paradoxo. Duas gerações de acreanos distantes e diante uma da outra. Meus meninos entre 4 e 6 anos e Aldenor e Manoel entre 60 e 70. Duas gerações de acreanos que conhecem mundos muito distintos se encontrando sob ordem do acaso e da brevidade.
No meio a Duy, que do alto de seus vinte e tantos a tudo filmava, inocente testemunha de um reencontro que também era dela. Quantos meninos acreanos ainda vão ter a chance de ver um seringueiro defumando uma pela de borracha? Uma arte em extinção, leite branco denso se derramando na grande bola que gira, fumaça branca espessa subindo, conversa branca comprida, tapiri de palha e pau roliço, o encontro do leite e da fumaça, o encontro da conversa e do cheiro de coquinho ouricuri queimado, o encontro de novos e velhos acreanos, uma arte, um jeito de viver, um mundo que aos poucos desaparece, se desvanece como fumaça, se endurece como borracha, diante de nós, lentamente, naturalmente, quase imperceptivelmente, para que um novo jeito e novas artes possam chegar.
Já não consigo evitar a pergunta quase resposta... Terão os filhos dos meus filhos igual oportunidade de tal encontro???

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Vejo, no jornal deste sábado, fotos e notícias da formatura nos novos agentes agro-florestais indígenas no Palácio Rio Branco. E não pude evitar a sensação de estar diante de um outro e intrigante paradoxo. Quem poderia supor que o todo poderoso governo um dia receberia em Palácio tantos jovens indígenas das diversas e distintas etnias acreanas para celebrar sua formatura? Mas não eram esses mesmos jovens indígenas, que apenas antedonte, eram os principais inimigos a serem caçados nas tantas correrias realizadas pelas matas densas das cabeceiras???
Como sobreviveram estes jovens, então, passa ser um mistério menor diante de tamanha e improvável conquista que é a formatura desses guerreiros de novos tempos... Porque não reconheço, por nome, os rostos que vejo nas fotos. Porque, mesmo que por fotos, sinto o cheiro de uma nova e saudável geração de lideranças indígenas assumindo um outro papel, diferente daquele das atuais lideranças que conseguiram muito, conseguiram criar organizações, defender seus direitos, demarcar suas terras, afirmar sua existência e sua presença entre nós, os cariús, os não-indios, como eles costumam dizer.
Porque já faz algum tempo que o Acre era tido como território sem índios, limpo, daquilo que era considerado uma chaga social, como que um empecilho à chegada de um pretenso progresso. Porque foi preciso muito tempo e trabalho para alcançar as primeiras conquistas e superar seus tantos tropeços. Como foi preciso se juntar com muitos outros pareceiros: indigenístas, seringueiros, educadores, ambientalistas, políticos, jornalistas, cientistas; para através de um longo e denso processo de educação diferenciada, se tornarem professores de suas próprias escolas, agentes de saúde de suas terras, e, agora, agentes de gestão de seus recursos, sua economia, agora liberta do patrão e do marreteiro de apenas antedonte.
Já não consigo evitar a pergunta quase totalmente sem resposta... Qual será o Acre dos filhos desses novos índios do Acre, pra que rumo eles nos levarão???

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Faz apenas alguns meses que tive a inesperada oportunidade de conhecer mais de perto um jovem fazendeiro. Dessa moçada nova que curte sertanejo e preenche todos os espaços de nossas novas/velhas Expoacres.
E, como de praxe para um historiador, sentado na rede da varanda, tive ocasião de ouvi-lo contar a história de seus pais, que como outros tantos sulistas pra cá vieram nos já distantes tempos da Ditadura Militar, pra transformar a floresta em pasto de boi, com a esperança de que as terras fartas e fáceis então prometidas lhes seriam mesmo destinadas como se um promissor futuro de fato fossem. Não consegui evitar a sensação de estar de novo defronte ao paradoxo.
Esse jovem fazendeiro, filho de paranaenses, criado solto nos campos revirados pela pata do boi, versado no oficio de tanger a floresta para cada vez mais distante, curtido na dura lida que começa antes do sol sair e prossegue sob o calor inclemente, misturando o suor de seu cavalo, o latido dos cães, o cheiro prenhe das novilhas, ao seu próprio suor e cheiro que escorre da testa sob o chapéu de vaqueiro.
Um cara inteligente e correto que, além de inesgotável disposição pra trabalhar, legada por seus pais, ainda sabe fazer inseminação artificial e trabalha com planilhas e contratos, com a mesma facilidade com que responde e-mails por celular. Tão jovem e acreano quanto aquele jovem índio Kaxinauá do rio Jordão, agora formado e diplomado como agente agroflorestal. Ambos igualmente filhos do Acre, iguais perante a lei dos homens e a sentença da Rainha da Floresta, diante de uma mesma terra tão prometida, quanto igualmente nunca alcançada.
E, diante de tão surpreendente tempo, já não consigo evitar a vontade de nem mais perguntar.

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