sábado, 21 de agosto de 2010

A Grandeza Acreana

(ou Mutações II)

A vantagem de ter amigos é que quando lembramos algo, lembramos juntos. Por isso, nada mais adequado para honrar um amigo do que lembranças que não são minhas, de X, Y, ou Z, mas de muitos. Ainda mais quando esse amigo que parte era alguém com a importância de Hélio Koury. Por isso, em sua homenagem, o artigo de hoje foi feito pela colaboração de muitas mãos, mentes e corações.





Lembranças I
Na madrugada de domingo, 15 de agosto, o velho amigo Helio Kouri se foi.
Saudades e a imagem na memória de quem sabia,
com carinho, contar histórias.
A nossa história.
Foi uma dádiva conhecê-lo.
Ainda lembro que, alquebrado pela doença, cochilava entre um gole e outro de café,
perguntei - Helio você dorme mesmo nestes momentos?
E ele - ... e sonho!
Silvio Margarido

Lembranças II
Hoje, como faço todos os dias, abri os jornais do Acre para saber notícias da minha terra. Me surpreendi com a notícia da passagem do Hélio. Não porque era improvável, mas porque me trouxe lembranças muito boas. A memória, esse livro que muitas vezes se abre em páginas qualquer sem que percebamos. Lembrei do Seu Hélio sentado numa cadeira, dormindo (ou quase), e de vez em quando abria os olhos e dizia que, se precisássemos de alguma informação, era só lhe perguntar.Uma enciclopédia viva, era como se definia. Parte da história política do Acre, ao menos aquela que trabalhamos durante a época áurea do Departamento de Patrimônio Histórico, estavam ali, ao nosso alcance (bastava acordar-lhe).Também lembrei das vezes em que aceitei a sua carona, no velho Gol que o conduzia (aposto que o carro lhe conduzia), só para pedir para dirigir e, ao invés de ser levado em casa, levá-lo até a sua casa, em segurança, e depois pegar um ônibus até o centro da cidade. Afinal, aquele Gol branco tinha em sua lataria inúmeras marcas de outros carros, paredes e qualquer outro obstáculo. Consegui me tornar uma pessoa querida, e fico feliz com isso.Também não pude deixar de lembrar do Seu Agnaldo. Que figuras esses dois!! Inimigos no passado, pareciam compartilhar de um sentimento de amizade, afinal tinham muito em comum. Confesso que, por vezes, me escondi dos dois. Não por não querer escutar suas histórias, mas porque alguém tinha que trabalhar.Durante um tempo fizemos um revezamento para que alguém desse atenção aos dois.Lembro uma vez em que o Seu Hélio me contava a passagem em que foi definido que um prédio ia deixar de ser hotel para ser a sede da prefeitura de Rio Branco. Três horas depois do início da história ele sentenciou: "pegamos um helicóptero e sobrevoamos Porto Acre, eu e o Governador!!". Eu, sem entender o que Porto Acre, o helicóptero e o Governador tinham haver com a história, me concentrei na narrativa buscando respostas. Ele então parou... me olhou.... e tascou a pergunta: "Eu tava falando sobre o que mesmo?". Rimos e ele prometeu lembrar pra me contar o resto.Sinto muito a passagem do Seu Hélio. Tenho muito carinho por ele, pelo Helinho, e por todo o período em que convivemos. Que ele descanse, que esteja bem, e que possamos levar uma vida tão sóbria e interessante quanto foi a sua.Grande abraço em todos.
Fernando Figali Moreira Jr

Lembranças III
Acho que era 1996, 97, ou 98, já não me lembro mais ao certo. O fato é que há muito eu ouvia falar de um homem chamado Hélio Koury que havia sido um dos primeiros e mais importantes comunistas da história acreana. E por saber que os varadouros da política local costumam ser muito mais tortuosos do que o mais intrincado dos varadouros da floresta, passei a cultivar imensa curiosidade de conhecer aquele intrigante personagem.
Certo dia, inesperadamente, ao entrar numa padaria da Av. Ceará, que já nem existe mais, alguém me disse, olha lá o Seu Hélio Koury, você não queria conhecê-lo? Fiz, então, algo que nunca faço. Entre as prateleiras de pão e biscoito abordei diretamente aquele homem que revelava carregar o peso de muitos anos nas costas. Entretanto, na hora em que ele me olhou, tomei um susto tal a jovialidade daqueles olhos tão azuis como o céu acreano de julho. Por alguns segundos me pareceu estar diante de um menino e não diante de um senhor já idoso.
Nem bem refeito da surpresa inicial tratei de me apresentar como um historiador muito interessado em conhecer a história de sua vida. E tenho que confessar que ele não se mostrou muito empolgado por meu interesse. Antes, pelo contrário, demonstrou até certa desconfiança em relação às minhas reais intenções. Mas como eu estava sendo sincero, e acho que ele percebeu isso, combinamos de acertar uma hora para conversarmos com calma.
Os anos se passaram sem que voltássemos a nos encontrar. Até que tive a necessidade de fazer uma pesquisa sobre Xapuri e voltei a procurar Seu Hélio pra conhecer seu vasto arsenal de histórias, interpretações perspicazes e causos hilários. Era uma figura mesmo Seu Hélio. Um homem brilhante e raro daqueles que não se limitavam a contar o que seus olhos viram, mas aquilo que sua inteligência rápida desconfiava ter de fato acontecido. E ai pronto!!!! Desde essa primeira conversa, na qual ele desvendou pra mim muitos dos segredos da extraordinária Xapury, onde nasceu, nunca mais deixamos de nos gostar e de trabalhar juntos.
Assim, em longas discussões, permeadas por muitas interrupções de toda a turma do Patrimônio Histórico, ele me provou por A + B que a famosa “Casa Branca” nunca poderia ter sido a Intendência Boliviana do fatídico dia 06 de agosto de 1902, pelo simples fato de que o barranco ali não dá porto. Fiquei sabendo também que, boa parte da prosperidade da antiga vila do Xapury, que a fez ficar conhecida como a “Princesinha do Acre”, não veio apenas da borracha, mas em grande parte da fabrica de castanha de Sadala Koury, seu pai emigrado do Líbano como tantos outros, que exportava diretamente para os EUA as famosas “brasilian nuts”, nos anos 20 e 30. Exatamente os piores anos da crise econômica e social vivida pelo Acre que padecia com estagnação e desesperança. Informações muito preciosas porque não estão escritas em nenhum livro de história e só as lembranças repletas de cheiros e cores são capazes de revelar.
Na verdade, desde muito jovem Seu Hélio era desembaraçado. Tanto que foi um dos pioneiros do teatro em Xapury ao encenar a peça “Príncipe Valente” representando o papel principal. E nada mais apropriado, diga-se de passagem, dada suas qualidades na arte do galanteio e da sedução do belo sexo, como se dizia na época. Ah !!! Aqueles olhos azuis eram mesmo muito convincentes, pelo pouco que pude presenciar!!! Seu Hélio sempre tratava as mulheres com uma gentileza respeitosa que simplesmente as derretia. O que, aliás, me faz lembrar do seu outro ponto fraco: sorvete.
Me contou, essa semana, Marcio, um de seus filhos, que ele tinha uma clássica pra falar no carro toda vez que dava carona pra alguma formosa dama. “Só existem duas grandes invenções no mundo. Uma feita por Deus e outra feita pelos homens. Deus fez as mulheres e o homem inventou o sorvete.” Era a senha do sorriso necessário pra desfechar o convite: “E por falar nisso. Vamos tomar um sorvete?” Era danado, Seu Hélio.
Soube fazer sua vida valer a pena como poucos. Porque, mesmo encantador, era contestador e tinhoso. Depois de passar por Belém e pelo Rio de Janeiro, Seu Hélio assumiu uma postura política radical que lhe valeu muitos problemas e dissabores naquele velho Acre conservador e moralista.
A ousadia de se assumir como comunista e de tentar aplicar o método Paulo Freire para alfabetizar trabalhadores acreanos secularmente explorados como mão de obra desqualificada lhe valeu uma pecha social duradoura e muitas, muitas, prisões. Havia mesmo um governante que toda vez que chegava de viagem, logo exigia: “Prende o Hélio!” Mas, se eu fosse tentar desfiar aqui todas as histórias desse multi-pioneiro revolucionário e encantador, haja miolo de pote. O certo é que ele acabou se tornando um dos sócios do Departamento de Patrimônio Histórico onde trabalhávamos eu e uma grande turma (em ambos os sentidos).
Aliás, dava gosto de receber Seu Hélio com o brado: “Meu Mestre!”. E vê-lo responder com aquele sorriso traquino nos olhos. É isso mesmo... traquino, porque Seu Hélio sorria com os olhos de um menino, sempre. O doce menino do Xapury, Príncipe Valente, ousado e idealista, expressão completa da grandeza acreana.
Assim, por mais que eu quisesse me despedir de Seu Hélio com um sorriso nos olhos, não consegui conter as lágrimas quando, na hora da despedida de sua matéria, me lembrei de uma musica que resumia tudo o que sentia naquele momento.
“Chorou, chorou
Nas matas de Xapuri.
Fogo queimou,
Ardeu em meu coração.”
(Keilah Diniz)

MV Neves

sábado, 14 de agosto de 2010

Mutações (I)

(ou Daqui se pode ver, ao longe,
as novas fronteiras do horizonte)

O céu é alto, a terra, baixa, assim o Criativo e o Receptivo se determinam. As posições inferiores e superiores se estabelecem de acordo com essa diferença entre o baixo e o alto.
O movimento e o repouso têm suas leis definidas de acordo com as quais distinguem-se as linhas firmes e maleáveis. Os acontecimentos seguem seus rumos próprios, cada qual segundo sua natureza. As coisas distinguem-se umas das outras de acordo com classes específicas. Desse modo tem origem a boa fortuna e o infortúnio. Os fenômenos surgem no céu, as formas surgem na terra. Assim a mutação e a transformação se manifestam.(I Ching, O Livro das Mutações)












Semana passada meus filhos foram ao Parque Capitão Ciriaco. Por acaso chegaram lá na hora em que Seu Aldenor e Seu Manoel estavam defumando mais uma pela de borracha. Fruto do leite abundante das 400 seringueiras que nos sombreiam nos dias de sol abrasador e nos assombram nos dias de ventania, porque aqui e acolá uma resolve se mostrar ocada pelo tempo e vem ao chão.
Eu não estava na hora, mas vi no computador as imagens que a mãe deles gravou. E não pude evitar a sensação de estar diante de um paradoxo. Duas gerações de acreanos distantes e diante uma da outra. Meus meninos entre 4 e 6 anos e Aldenor e Manoel entre 60 e 70. Duas gerações de acreanos que conhecem mundos muito distintos se encontrando sob ordem do acaso e da brevidade.
No meio a Duy, que do alto de seus vinte e tantos a tudo filmava, inocente testemunha de um reencontro que também era dela. Quantos meninos acreanos ainda vão ter a chance de ver um seringueiro defumando uma pela de borracha? Uma arte em extinção, leite branco denso se derramando na grande bola que gira, fumaça branca espessa subindo, conversa branca comprida, tapiri de palha e pau roliço, o encontro do leite e da fumaça, o encontro da conversa e do cheiro de coquinho ouricuri queimado, o encontro de novos e velhos acreanos, uma arte, um jeito de viver, um mundo que aos poucos desaparece, se desvanece como fumaça, se endurece como borracha, diante de nós, lentamente, naturalmente, quase imperceptivelmente, para que um novo jeito e novas artes possam chegar.
Já não consigo evitar a pergunta quase resposta... Terão os filhos dos meus filhos igual oportunidade de tal encontro???

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Vejo, no jornal deste sábado, fotos e notícias da formatura nos novos agentes agro-florestais indígenas no Palácio Rio Branco. E não pude evitar a sensação de estar diante de um outro e intrigante paradoxo. Quem poderia supor que o todo poderoso governo um dia receberia em Palácio tantos jovens indígenas das diversas e distintas etnias acreanas para celebrar sua formatura? Mas não eram esses mesmos jovens indígenas, que apenas antedonte, eram os principais inimigos a serem caçados nas tantas correrias realizadas pelas matas densas das cabeceiras???
Como sobreviveram estes jovens, então, passa ser um mistério menor diante de tamanha e improvável conquista que é a formatura desses guerreiros de novos tempos... Porque não reconheço, por nome, os rostos que vejo nas fotos. Porque, mesmo que por fotos, sinto o cheiro de uma nova e saudável geração de lideranças indígenas assumindo um outro papel, diferente daquele das atuais lideranças que conseguiram muito, conseguiram criar organizações, defender seus direitos, demarcar suas terras, afirmar sua existência e sua presença entre nós, os cariús, os não-indios, como eles costumam dizer.
Porque já faz algum tempo que o Acre era tido como território sem índios, limpo, daquilo que era considerado uma chaga social, como que um empecilho à chegada de um pretenso progresso. Porque foi preciso muito tempo e trabalho para alcançar as primeiras conquistas e superar seus tantos tropeços. Como foi preciso se juntar com muitos outros pareceiros: indigenístas, seringueiros, educadores, ambientalistas, políticos, jornalistas, cientistas; para através de um longo e denso processo de educação diferenciada, se tornarem professores de suas próprias escolas, agentes de saúde de suas terras, e, agora, agentes de gestão de seus recursos, sua economia, agora liberta do patrão e do marreteiro de apenas antedonte.
Já não consigo evitar a pergunta quase totalmente sem resposta... Qual será o Acre dos filhos desses novos índios do Acre, pra que rumo eles nos levarão???

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Faz apenas alguns meses que tive a inesperada oportunidade de conhecer mais de perto um jovem fazendeiro. Dessa moçada nova que curte sertanejo e preenche todos os espaços de nossas novas/velhas Expoacres.
E, como de praxe para um historiador, sentado na rede da varanda, tive ocasião de ouvi-lo contar a história de seus pais, que como outros tantos sulistas pra cá vieram nos já distantes tempos da Ditadura Militar, pra transformar a floresta em pasto de boi, com a esperança de que as terras fartas e fáceis então prometidas lhes seriam mesmo destinadas como se um promissor futuro de fato fossem. Não consegui evitar a sensação de estar de novo defronte ao paradoxo.
Esse jovem fazendeiro, filho de paranaenses, criado solto nos campos revirados pela pata do boi, versado no oficio de tanger a floresta para cada vez mais distante, curtido na dura lida que começa antes do sol sair e prossegue sob o calor inclemente, misturando o suor de seu cavalo, o latido dos cães, o cheiro prenhe das novilhas, ao seu próprio suor e cheiro que escorre da testa sob o chapéu de vaqueiro.
Um cara inteligente e correto que, além de inesgotável disposição pra trabalhar, legada por seus pais, ainda sabe fazer inseminação artificial e trabalha com planilhas e contratos, com a mesma facilidade com que responde e-mails por celular. Tão jovem e acreano quanto aquele jovem índio Kaxinauá do rio Jordão, agora formado e diplomado como agente agroflorestal. Ambos igualmente filhos do Acre, iguais perante a lei dos homens e a sentença da Rainha da Floresta, diante de uma mesma terra tão prometida, quanto igualmente nunca alcançada.
E, diante de tão surpreendente tempo, já não consigo evitar a vontade de nem mais perguntar.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

És Temprano para la Fiesta*

Dia seis de agosto, dia de festa. Faz cento e oito anos que Plácido de Castro à frente de trinta e três seringueiros iniciava a ultima e vitoriosa fase da Revolução Acreana em Xapuri. Porém antes mesmo de tentar entender o significado desta data para os atuais acreanos, é preciso voltar mais um pouco no tempo.

Povoado do Xapury, que em 1902 era chamado de Mariscal Sucre pelos bolivianos – Álbum do Rio Acre 1906-1907

O movimento revolucionário que afligiu os altos rios acreanos havia sido iniciado três anos antes, quando ao tentar dominar definitivamente os vales do Acre, do Iaco e do Purus, as autoridades bolivianas haviam causado profundo descontentamento na população brasileira que habitava a região. Por isso, em 1º de maio de 1899 foi deflagrada a “Primeira Insurreição Acreana” quando foram expulsos de Puerto Alonso, local escolhido para instalar a alfândega boliviana, todos os bolivianos que dali cobravam impostos sobre a borracha e tentavam instalar o governo da Bolívia sobre a região.
Poucos meses depois, os revolucionários decidiram avançar mais em seu movimento, já que o governo federal brasileiro continuava reconhecendo a posse boliviana sobre os vales acreanos. Para tanto, em 14 de julho de 1899, foi proclamado o “Estado Independente do Acre” e o espanhol Luiz Galvez foi aclamado como seu presidente. Com isso, os habitantes do Acre pretendiam tornar a região um território litigioso o que provocaria, inevitavelmente, a revisão da posição oficial do governo federal. Porém essa tentativa foi infrutífera e as forças armadas brasileiras dirigiram-se ao Acre para depor o cidadão Galvez e devolver à Bolívia a posse daquelas terras tão ricas e ambicionadas.
É preciso lembrar, também, que a república brasileira do fim do século passado não era nenhum primor de desenvolvimento ou de integração entre os diversos estados. Tanto assim, que o governo do Estado do Amazonas, insatisfeito com a posição do governo federal, que só beneficiava os cafeicultores do sul, resolveu financiar uma nova expedição revolucionária ao Acre. E para isso contou com o apoio de diversos proprietários que haviam participado dos eventos anteriores. Porém, a “Expedição dos Poetas” fracassou completamente devido às profundas divergências que dividiam seus integrantes.
Mais uma vez o Acre ficava sob domínio total da Bolívia. Quando chegou a notícia de que haviam sido concluídas as negociações entre um sindicato formado por capitalistas ingleses e norte-americanos e o governo boliviano. O Bolivian Syndicate iria arrendar e explorar as terras acreanas, inclusive com poder militar sobre elas. Isso causou um profundo temor em toda a população do Acre que via surgir agora a ameaça da intervenção de fortes países desenvolvidos contra os quais a luta seria quase impossível. Foi nesse contexto que a região do Alto Acre resolveu aderir definitivamente ao movimento revolucionário, já que até aqui, o principal palco dos acontecimentos havia sido o Baixo Acre. Tornava-se, então, possível deflagrar a luta armada.
Curiosamente Plácido de Castro, convidado para comandar a campanha militar, já que possuía experiência anterior, não queria começar a campanha por Mariscal Sucre (como era chamada a atual Xapuri), mas sim por Puerto Alonso (ver box), mas foi convencido do contrário pelos líderes da revolução, especialmente Joaquim Vitor e Rodrigo de Carvalho. Do mesmo modo, Plácido pretendia deflagrar o movimento no dia 14 de julho, mesma data escolhida por Galvez para a proclamação do Estado Independente, três anos antes. Porém, o atraso na chegada das armas que seriam utilizadas na luta, levou ao adiamento da iniciativa. Foi escolhida então a data comemorativa, também por seu simbolismo, da Independência da Bolívia, dia 06 de agosto.
Conta nossa história oficial que no dia marcado, antes do raiar do dia, Plácido de Castro à frente de seu pelotão de seringueiros postados estrategicamente em frente das três casas que serviam como abrigo às forças bolivianas, acordou o comandante D. Juan de Dios Barrientos, que atordoado pensou tratar-se já do início das festas pela passagem do dia da independência boliviana e abrindo a porta exclamou:
- Es Temprano para la fiesta.
Ao que respondeu Plácido com determinação:
- Não é festa, Sr. Intendente, é Revolução !
Começava assim, sem o disparo de nenhum tiro, a fase mais sangrenta da Revolução Acreana.
Hoje, passados cento e oito anos, daquele memorável dia seis de agosto, devemos refletir sobre a herança que recebemos dessa história de lutas, derrotas e vitórias, que mobilizou homens de todos os tipos e classes sociais com o objetivo de não perder suas nacionalidades.Mais do que conseguir manter sua cidadania brasileira, os revolucionários, criaram uma nova identidade. Foi a partir da Revolução Acreana que aqueles brasileiros tornaram-se acreanos e passaram a defender essa condição ao longo dos cem anos posteriores.


“É interessante notar as profundas semelhanças entre a revolução de Galvez e a de Plácido de Castro. Veja-se o paralelo em quase todos os atos administrativos do Estado do Acre de um e do outro. Plácido escolheu a data de 14 de julho para o início do movimento. Na mesma data Galvez iniciava a sua república. Plácido queria primeiro atacar Puerto Alonso, onde Galvez irrompeu seu motim, sem um tiro, para aí instalar o seu governo. Os limites geográficos de um e de outro Estado são quase os mesmos. A bandeira decretada por Galvez foi integralmente adotada por Plácido. A estrutura administrativa do governo de Galvez serviu de modelo a Plácido, para instalar o seu. Os dois instituem com o mesmo nome o “Estado Independente do Acre”. A capital do Estado, Cidade do Acre, nomenclatura emprestada por Galvez a Puerto Alonso, é mantida por Plácido de Castro. A intenção de pedir ao Governo brasileiro a anexação do Acre foi uma constante nos dois chefes.”
(Tocantins, Formação Histórica do Acre, 1979, pág. 102)

* Texto publicado originalmente em 2002

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Entre o antigo e o presente, o local e o global

(ou “Eu vejo o futuro repetir o passado.”)

Há quem possa pensar que pesquisas arqueológicas na Amazônia tratam apenas de ciência e só interessa à Academia ou às publicações especializadas. Ledo engano, apesar das aparências, a realidade revela que, através da arqueologia, estamos tratando de importantes questões sociais e políticas.














Recentemente a mídia carioca foi assaltada por um fato inusitado. Em plena Região Oceânica de Niterói, Estado do Rio de Janeiro, uma das regiões mais valorizadas do litoral carioca, um grupo de índios Guarani Mbyá ocupou um antigo sítio arqueológico na praia de Camboinhas, com a alegação de que se tratava de milenar território tradicional indígena.
O problema é que os moradores do chicoso condomínio de classe média que ocupa a faixa de areia entre a lagoa de Itaipu e a praia não gostou nada nada de ver aqueles índios maltrapilhos ocupando sua praia. Por diversos motivos.
Em primeiro lugar porque o sítio arqueológico Duna Pequena de Camboinhas não é único da região. Do outro lado do canal o grandioso sítio da Duna Grande de Itaipu, um dos mais importantes e menos estudados sítios pré-históricos e nosso litoral, segue sendo lentamente degradado pela intervenção humana diante da completa inércia dos órgãos municipal, estadual e nacional de proteção de nosso patrimônio cultural.
Em segundo lugar porque a presença indígena na área do sítio arqueológico passou a atrair a atenção de um novo publico indesejável, sob a ótica dos moradores e especuladores imobiliários da Região Oceânica, é claro. Um público constituído por antropólogos, pesquisadores, jornalistas, militantes da causa indígena e/ou dos direitos humanos e curiosos em geral.
E, em terceiro e mais importante lugar, porque uma possível retomada indígena, ainda que muito lenta e pouco numerosa, de um trecho qualquer do litoral carioca, por menor que seja, se constitui numa séria ameaça ao enlouquecido e acelerado processo de urbanização de uma das áreas mais valorizadas de Niterói. Território fértil para grileiros e especuladores que, por exemplo, não tem o menor escrúpulo em aterrar as margens da bela lagoa de Itaipu em sua ânsia incontida de construir mais e mais casas da noite para o dia.
O resultado não poderia ser outro. Conflito entre os moradores, autoridades e indígenas. Até que depois de diversas ameaças feitas por homens armados, supostamente a mando dos “donos do pedaço”, a aldeia foi criminosamente incendiada ferindo um homem e uma criança Guarani.Neste ponto da crise foi necessária a intervenção qualificada de pesquisadores de diversas universidades e, especialmente, do historiador Bessa Freire (um bom e antigo amigo do Acre, e que de quebra ainda colabora com o Blog do Altino semanalmente) da UFF.E ele, com sua reconhecida competência, lembrou às autoridades que as terras de Niterói foram legadas à Araribóia, grande cacique da Confederação dos Tamoios, como prêmio pela expulsão dos franceses do Rio de Janeiro. Episódio ocorrido ainda no século XVI em benefício dos portugueses, que levaram a fama e o Brasil pela vitória dos índios. Um fato facilmente comprovado pelos Laudêmios (imposto especial pago pelos moradores de Niterói por estarem ocupando terras indígenas.) arrecadados pela Prefeitura de Niterói até muito pouco tempo.
E apesar disso tudo ter acontecido em 2008, ainda hoje a situação permanece pendente. Os Guarani fundaram na Duna Pequena de Camboinhas a Aldeia Tekoá Mboy Ty e tocam sua vida, mesmo contra quase todos. Como revela notícia recentemente publicada.
“A permanência em Niterói é controversa. É alvo de ações na Justiça, explicou o técnico da Funai. Há uma pressão enorme para que os índios saiam. Estamos lidando contra a especulação imobiliária, a Procuradoria da União e o Ministério Público, que quer a desocupação do terreno, área de Marinha”.Com esse pequeno exemplo, tomado de outra região do Brasil, para evitar análises e opiniões por demais apaixonadas, resta evidenciado o absurdo da afirmação feita na imprensa local, por ocasião do anuncio das ultimas pesquisas arqueológicas no Acre, de que a discussão dos chamados “geoglífos” agora não é mais local e sim mundial.
O caso dos Guarani de Camboinhas é apenas reflexo do desenvolvimento extremo de uma condição histórica em uma região na qual os índios foram exterminados e o que sobrou desses povos continua estigmatizado e destituído de seus direitos legais. Se tomarmos a realidade acreana, vamos ver que esta é ainda muito mais complexa devido ao fato de termos quinze diferentes etnias indígenas, sem contar as três ou quatro etnias dos isolados. Fica evidente assim que, aqui no Acre, a questão da pesquisa arqueológica ou é local por princípio, ou não será nada, porque estará condenada a apenas repetir esse triste padrão histórico de desprezo e massacre de povos indígenas que assola a consciência brasileira e mundial. Além do que é óbvio que estou abordando apenas um dos aspectos dentre os muitos outros relacionados à pesquisa científica na Amazônia.
Nesse nosso conturbado tempo não cabem mais arcaicas idéias de neutralidade científica ou de predomínio dos interesses mundiais sobre os locais. Se dependesse dessa lógica a Amazônia já tinha sido internacionalizada, discussão aqui mencionada sem nenhum traço de xenofobia barata. Da mesma forma que é inaceitável que, mesmo em tempos de pretensa e dúbia globalização, qualquer pesquisa ignore a produção científica local, porque será totalmente dissociada das especificidades acreanas, já que o Acre, felizmente, não é igual a nenhum outro lugar no mundo.Que fique bem claro. Não estou aqui advogando que qualquer pesquisador seja obrigado a exercer uma militância política em relação à questão indígena, ou à qualquer outra causa social acreana. Mas não posso deixar de esperar que toda e qualquer pesquisa científica aqui realizada tenha, no mínimo, compromisso com a sociedade local.
Ou, dito de outra forma, ainda que os geoglífos sejam manchete todas as semanas nas principais revistas e publicações nacionais e estrangeiras, nada resultará de bom se essa ação não incluir preocupação e responsabilidade com as questões locais. Até porque a história acreana já provou inequivocamente que se divulgação na mídia internacional fosse garantia de alguma coisa, certamente Chico Mendes e outros acreanos não teriam sido assassinados ao longo de nossa história.

Observação especial:
Sem querer misturar as coisas, mas já misturando. Não posso deixar passar em branco esse dia dois de agosto, aniversário da mulher com quem compartilho todos os meus dias e os bens mais preciosos que tenho nesta vida: João, Yago e Vinicius.

E se todas as forças do universo
Conspiram a nosso favor
Há dez anos...
Não há porque duvidar
Que irão ainda conspirar
pelos próximos dez, cem, mil anos...
E se existe amor assim tão amplo
que nos contenha por inteiro,
Então dez dias serão suficientes
Para fazer uma revolução em mim...
Pra ti...