A vantagem de ter amigos é que quando lembramos algo, lembramos juntos. Por isso, nada mais adequado para honrar um amigo do que lembranças que não são minhas, de X, Y, ou Z, mas de muitos. Ainda mais quando esse amigo que parte era alguém com a importância de Hélio Koury. Por isso, em sua homenagem, o artigo de hoje foi feito pela colaboração de muitas mãos, mentes e corações.
Lembranças I
Na madrugada de domingo, 15 de agosto, o velho amigo Helio Kouri se foi.
Saudades e a imagem na memória de quem sabia,
com carinho, contar histórias.
A nossa história.
Foi uma dádiva conhecê-lo.
Ainda lembro que, alquebrado pela doença, cochilava entre um gole e outro de café,
perguntei - Helio você dorme mesmo nestes momentos?
E ele - ... e sonho!
Silvio Margarido
Lembranças II
Hoje, como faço todos os dias, abri os jornais do Acre para saber notícias da minha terra. Me surpreendi com a notícia da passagem do Hélio. Não porque era improvável, mas porque me trouxe lembranças muito boas. A memória, esse livro que muitas vezes se abre em páginas qualquer sem que percebamos. Lembrei do Seu Hélio sentado numa cadeira, dormindo (ou quase), e de vez em quando abria os olhos e dizia que, se precisássemos de alguma informação, era só lhe perguntar.Uma enciclopédia viva, era como se definia. Parte da história política do Acre, ao menos aquela que trabalhamos durante a época áurea do Departamento de Patrimônio Histórico, estavam ali, ao nosso alcance (bastava acordar-lhe).Também lembrei das vezes em que aceitei a sua carona, no velho Gol que o conduzia (aposto que o carro lhe conduzia), só para pedir para dirigir e, ao invés de ser levado em casa, levá-lo até a sua casa, em segurança, e depois pegar um ônibus até o centro da cidade. Afinal, aquele Gol branco tinha em sua lataria inúmeras marcas de outros carros, paredes e qualquer outro obstáculo. Consegui me tornar uma pessoa querida, e fico feliz com isso.Também não pude deixar de lembrar do Seu Agnaldo. Que figuras esses dois!! Inimigos no passado, pareciam compartilhar de um sentimento de amizade, afinal tinham muito em comum. Confesso que, por vezes, me escondi dos dois. Não por não querer escutar suas histórias, mas porque alguém tinha que trabalhar.Durante um tempo fizemos um revezamento para que alguém desse atenção aos dois.Lembro uma vez em que o Seu Hélio me contava a passagem em que foi definido que um prédio ia deixar de ser hotel para ser a sede da prefeitura de Rio Branco. Três horas depois do início da história ele sentenciou: "pegamos um helicóptero e sobrevoamos Porto Acre, eu e o Governador!!". Eu, sem entender o que Porto Acre, o helicóptero e o Governador tinham haver com a história, me concentrei na narrativa buscando respostas. Ele então parou... me olhou.... e tascou a pergunta: "Eu tava falando sobre o que mesmo?". Rimos e ele prometeu lembrar pra me contar o resto.Sinto muito a passagem do Seu Hélio. Tenho muito carinho por ele, pelo Helinho, e por todo o período em que convivemos. Que ele descanse, que esteja bem, e que possamos levar uma vida tão sóbria e interessante quanto foi a sua.Grande abraço em todos.
Fernando Figali Moreira Jr
Lembranças III
Acho que era 1996, 97, ou 98, já não me lembro mais ao certo. O fato é que há muito eu ouvia falar de um homem chamado Hélio Koury que havia sido um dos primeiros e mais importantes comunistas da história acreana. E por saber que os varadouros da política local costumam ser muito mais tortuosos do que o mais intrincado dos varadouros da floresta, passei a cultivar imensa curiosidade de conhecer aquele intrigante personagem.
Certo dia, inesperadamente, ao entrar numa padaria da Av. Ceará, que já nem existe mais, alguém me disse, olha lá o Seu Hélio Koury, você não queria conhecê-lo? Fiz, então, algo que nunca faço. Entre as prateleiras de pão e biscoito abordei diretamente aquele homem que revelava carregar o peso de muitos anos nas costas. Entretanto, na hora em que ele me olhou, tomei um susto tal a jovialidade daqueles olhos tão azuis como o céu acreano de julho. Por alguns segundos me pareceu estar diante de um menino e não diante de um senhor já idoso.
Nem bem refeito da surpresa inicial tratei de me apresentar como um historiador muito interessado em conhecer a história de sua vida. E tenho que confessar que ele não se mostrou muito empolgado por meu interesse. Antes, pelo contrário, demonstrou até certa desconfiança em relação às minhas reais intenções. Mas como eu estava sendo sincero, e acho que ele percebeu isso, combinamos de acertar uma hora para conversarmos com calma.
Os anos se passaram sem que voltássemos a nos encontrar. Até que tive a necessidade de fazer uma pesquisa sobre Xapuri e voltei a procurar Seu Hélio pra conhecer seu vasto arsenal de histórias, interpretações perspicazes e causos hilários. Era uma figura mesmo Seu Hélio. Um homem brilhante e raro daqueles que não se limitavam a contar o que seus olhos viram, mas aquilo que sua inteligência rápida desconfiava ter de fato acontecido. E ai pronto!!!! Desde essa primeira conversa, na qual ele desvendou pra mim muitos dos segredos da extraordinária Xapury, onde nasceu, nunca mais deixamos de nos gostar e de trabalhar juntos.
Assim, em longas discussões, permeadas por muitas interrupções de toda a turma do Patrimônio Histórico, ele me provou por A + B que a famosa “Casa Branca” nunca poderia ter sido a Intendência Boliviana do fatídico dia 06 de agosto de 1902, pelo simples fato de que o barranco ali não dá porto. Fiquei sabendo também que, boa parte da prosperidade da antiga vila do Xapury, que a fez ficar conhecida como a “Princesinha do Acre”, não veio apenas da borracha, mas em grande parte da fabrica de castanha de Sadala Koury, seu pai emigrado do Líbano como tantos outros, que exportava diretamente para os EUA as famosas “brasilian nuts”, nos anos 20 e 30. Exatamente os piores anos da crise econômica e social vivida pelo Acre que padecia com estagnação e desesperança. Informações muito preciosas porque não estão escritas em nenhum livro de história e só as lembranças repletas de cheiros e cores são capazes de revelar.
Na verdade, desde muito jovem Seu Hélio era desembaraçado. Tanto que foi um dos pioneiros do teatro em Xapury ao encenar a peça “Príncipe Valente” representando o papel principal. E nada mais apropriado, diga-se de passagem, dada suas qualidades na arte do galanteio e da sedução do belo sexo, como se dizia na época. Ah !!! Aqueles olhos azuis eram mesmo muito convincentes, pelo pouco que pude presenciar!!! Seu Hélio sempre tratava as mulheres com uma gentileza respeitosa que simplesmente as derretia. O que, aliás, me faz lembrar do seu outro ponto fraco: sorvete.
Me contou, essa semana, Marcio, um de seus filhos, que ele tinha uma clássica pra falar no carro toda vez que dava carona pra alguma formosa dama. “Só existem duas grandes invenções no mundo. Uma feita por Deus e outra feita pelos homens. Deus fez as mulheres e o homem inventou o sorvete.” Era a senha do sorriso necessário pra desfechar o convite: “E por falar nisso. Vamos tomar um sorvete?” Era danado, Seu Hélio.
Soube fazer sua vida valer a pena como poucos. Porque, mesmo encantador, era contestador e tinhoso. Depois de passar por Belém e pelo Rio de Janeiro, Seu Hélio assumiu uma postura política radical que lhe valeu muitos problemas e dissabores naquele velho Acre conservador e moralista.
A ousadia de se assumir como comunista e de tentar aplicar o método Paulo Freire para alfabetizar trabalhadores acreanos secularmente explorados como mão de obra desqualificada lhe valeu uma pecha social duradoura e muitas, muitas, prisões. Havia mesmo um governante que toda vez que chegava de viagem, logo exigia: “Prende o Hélio!” Mas, se eu fosse tentar desfiar aqui todas as histórias desse multi-pioneiro revolucionário e encantador, haja miolo de pote. O certo é que ele acabou se tornando um dos sócios do Departamento de Patrimônio Histórico onde trabalhávamos eu e uma grande turma (em ambos os sentidos).
Aliás, dava gosto de receber Seu Hélio com o brado: “Meu Mestre!”. E vê-lo responder com aquele sorriso traquino nos olhos. É isso mesmo... traquino, porque Seu Hélio sorria com os olhos de um menino, sempre. O doce menino do Xapury, Príncipe Valente, ousado e idealista, expressão completa da grandeza acreana.
Assim, por mais que eu quisesse me despedir de Seu Hélio com um sorriso nos olhos, não consegui conter as lágrimas quando, na hora da despedida de sua matéria, me lembrei de uma musica que resumia tudo o que sentia naquele momento.
“Chorou, chorou
Nas matas de Xapuri.
Fogo queimou,
Ardeu em meu coração.”
(Keilah Diniz)
MV Neves