segunda-feira, 26 de março de 2012

Não dividam meu coração na curva do rio*

Ninguém duvida que esta alagação foi uma das maiores de todos os tempos. Como ninguém duvida também que Brasiléia foi uma das cidades que mais sofreu com ela. O que eu não esperava era encontrar nesta cidade uma situação tão inusitada quanto surpreendente.


Todo mundo sabe que Brasiléia é uma cidade de fronteira. Afinal, poucos são os acreanos que nunca visitaram Cobija, do outro lado do rio, e seu comércio de mil e uma utilidades. Como quase todo mundo sabe também que ambas as cidades (Brasiléia e Cobija) surgiram de um acontecimento que marcou nossa história comum.

Mas pra quem não se lembra bem, não custa esclarecer que estou falando do famoso combate do Igarapé Bahia em que, nos idos de 1902, revolucionários brasileiros tomaram o barracão do seringal situado à margem desse igarapé. Com isso provocaram a reação de campesinos e gomales organizados na Coluna Porvenir que, a mando de Nicolas Suarez, promoveram a maior vitória dos bolivianos e o maior massacre de brasileiros ocorrido durante toda a "Guerra do Acre".

Pois foi esse combate que delimitou definitivamente que a fronteira "real" (e não apenas a "legal" dos Tratados) entre brasileiros e bolivianos estava demarcada nesta região pelas margens do Rio Acre. Do lado de lá do rio Bolívia, do lado de cá Brasil. Assim surgiria a premente necessidade de ocupar essa área, fazendo com que o General Pando ali fundasse a cidade de Cobija, ainda em 1906, e provocasse, em contrapartida, a fundação da Vila Brasília, em 1910, posteriormente renomeada Brasiléia.

E foi esta origem histórica - aparentemente tão antiga quanto pouco importante para nós outros que aqui vivemos, 110 anos depois, em 2012 - que deu origem a um problema concreto que atualmente está afligindo os moradores de parte de Brasiléia, apesar de ser ainda desconhecido pela maioria dos acreanos.

Eu mesmo não tinha a menor noção deste novo problema de fronteira até participar de uma missão de trabalho, organizada pelo Senador Jorge Viana, com o objetivo de documentar os estragos causados pela recente alagação, que praticamente destruiu o centro e outros bairros de Brasiléia, e assim auxiliar na captação de recursos para sua reconstrução.

Acontece que uma das áreas mais atingidas na cidade foi o bairro Leonardo Barbosa que, por estar totalmente situado na beira do rio, ficou 100% alagado. E, o pior, viu se agravar o desbarrancamento que há tempos provoca grande temor de seus moradores pelo risco de repentinamente ver suas casas deixarem de fazer parte do Acre e do dia pra noite se tornarem novamente território boliviano!

É isso mesmo. Uma parte de Brasiléia, do Acre, que poderia voltar a ser da Bolivia. O que seria de seus moradores então? Na hora tomei um susto e achei que era brincadeira. Mas, não é. Então fiz a unica pergunta óbvia e cabível nesta situação: mas como assim? Vamos até lá, que voce mesmo vai ver. Respondeu-me o funcionário que participava do atendimento dos alagados.

Acontece que o rio Acre é reconhecidamente um rio jovem e por isso seu leito definitivo ainda não está consolidado. Dai ele fazer tantas curvas ao longo de todo o seu percurso. Com o tempo essas curvas vão sendo desgastadas pela correnteza do rio até serem cortadas. Formam-se assim lagos, conhecidos por alguns como "sacados", que se tornam ótimos locais de pesca até serem recobertos pela vegetação e o tempo se encarregar de aterrá-los.

E não é que parte do bairro Leonardo Barbosa é constituida exatamente por uma dessas pronunciadas curvas do rio? E que o alto barranco onde foi construída a rua asfaltada que dá acesso a essa área do bairro está quebrando rapidamente, estando prestes a apartar? Dai a dúvida que assola seus moradores. Caso o rio aparte essa área, suas casas ficarão do lado de lá do rio e, portanto, passarão a fazer parte das terras bolivianas. Afinal, o que está do lado de lá do rio não é Bolívia?

O que fazer neste caso? Sinceramente... sei não! Só sei que se trata de um problema real, palpável, que deve ser encarado com seriedade porque poderá afetar dezenas de casas e centenas de moradores... Seria importante cuidar disso de forma preventiva para depois do problema efetivado não ter que agir emergencialmente. Porque, certamente o rio continuará a seguir seu curso e sua natureza, como acabou de nos mostrar inequívocamente.

Vai que de repente, surge um outro Galvez para de novo proclamar: Já que nossa pátria não nos quer e estrangeiros não queremos ser, criamos outra! E assistimos ao surgimento de um novo micropaís encravado entre o lado de lá e o de cá de nossa fronteira que, ninguem duvide, é viva.

Obs: Desculpem-me por esta conclusão/brincadeira final, não estou de nenhuma forma fazendo pouco da situação, mas simplesmente não resisti...

Obs 2: Só no momento em que estava diagramando essa página na redação do jornal, é que fui avisado que o professor Evandro Ferreira, também tratou deste assunto em seu blog Ambiente Acreano. Conhecendo a qualidade de seu trabalho, sugiro que interessados no tema o leiam.

* O título deste artigo é vagamente inspirado em um dos titulos de livros mais lindos que já vi: "Enterrem meu coração na curva do rio"

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