Recebi o convite de Paulo e Edward para escrever esta apresentação como um imenso desafio. Afinal, como veremos adiante, a tarefa a que se impuseram estes excepcionais pesquisadores é das mais complexas e difíceis de realizar.
Dizer que o Acre, como de resto a própria Amazônia, é muito pouco conhecido ou compreendido pelos brasileiros em geral, seria apenas repetir uma idéia que já se tornou lugar comum no imaginário nacional. Uma idéia que está na origem das muitas brincadeiras e piadas como aquela que afirmava categoricamente que: “O Acre não existe”.
Mas o que diferenciaria o Acre tanto assim? Não deixa de ser curioso constatar que essas mesmas brincadeiras não são tão recorrentes em relação à outras regiões ainda mais distantes dos grandes centros do país. Isso nos faz refletir sobre o fato de que talvez o Acre possa ser realmente mais difícil de ser conhecido e/ou compreendido do que outras regiões da Amazônia.
Sem dúvida foi algo diferente, inusitado, singular, o que atraiu irresistivelmente ao Acre um de nossos maiores escritores, Euclides da Cunha, logo após o estrondoso sucesso do grandiloquente “Os Sertões”, sobre a Guerra de Canudos. Uma marcante experiência que o levou a afirmar, há mais de um século, que o Acre ainda estava “À Margem da História” brasileira.
Olhando sob essa perspectiva, não seriam, então, as piadas e as brincadeiras sobre o Acre, apenas reflexos de temores inconscientes despertados por um lugar que não só é distante e desconhecido, mas que, sobretudo, possui uma aura misteriosa, quase indecifrável e, por isso mesmo, pode parecer, de alguma forma, temível?
Para o leitor que pode estar achando isso tudo certo exagero de minha parte, talvez seja esclarecedor saber que, no início do século XX, este sentido se tornou tão comum e corrente que deu origem a uma expressão popular que usava o termo “Ir para o Acre” como sinônimo de “morrer”.
Mas, fiz toda essa digressão apenas para explicar porque, no dia em que conheci os autores do livro “Eu venho de longe” fiquei muito preocupado ao saber que o tema que os havia trazido até o Acre era a vida de uma das mais significativas e complexas personagens da trajetória acreana: o Mestre Irineu. Não consegui, então, evitar o pensamento: Isso não vai dar certo!
Afinal, se tentar compreender o Acre é um desafio colossal. O que dizer então sobre a tentativa de sistematizar a história de vida de um homem que foi capaz de criar uma nova e original religião, surpreendentemente originada nos mais profundos confins da floresta amazônica para se espalhar por todo o mundo, mobilizando milhares de pessoas das mais diferentes origens e culturas. Ou seja, Paulo e Edward, tinham, a meu ver, enormes chances de serem devorados por nossa particular esfinge amazônica.
É certo que, por aqui, muita coisa se conta sobre o Santo Daime. Ou sobre o enorme negro maranhense que comandava uma comunidade lá pras bandas da Colônia Custódio Freire e tinha fama de curador. Mas, escrito mesmo, em relação à vida do homem que promoveu uma verdadeira revolução espiritual neste pedaço perdido de floresta, sem que quase ninguém percebesse, muito pouca coisa.
Existe, isso sim, uma vasta bibliografia desenvolvida a partir do novo contexto que envolveu o Santo Daime desde que este começou a se expandir por outras regiões fora do Acre e da Amazônia. O que só aconteceu efetivamente após a morte de Irineu. Mas não custa ressaltar que são publicações e abordagens que não são aceitas ou difundidas, sendo muitas vezes repudiadas, pelos tradicionais seguidores de Mestre Irineu.
Por isso, quando, há cerca de dez anos, estive no Maranhão, participando de um encontro promovido pela Fundação Palmares. Fui tomado pelo impulso avassalador de procurar os caminhos por onde Raimundo Irineu Serra teria passado antes de vir para o Acre. Logo após o término do encontro do qual estava participando, visitei a Casa das Minas, as ruas do velho centro histórico de São Luis, com suas fontes públicas e túneis subterrâneos, nas quais tive encontros totalmente inesperados. Mas, como o instinto do pesquisador, às vezes, é irresistível, consegui ir até São Vicente de Ferre, cidade natal de Irineu.
Lá conheci o lugar vazio onde antes havia existido uma tapera de adobe e palha, na qual, segundo os moradores locais, teria nascido Irineu. Pouco depois, encontrei com um sobrinho de Irineu que conhecia bem a história do jovem que partiu pra ganhar o mundo e voltou, décadas depois, como um homem feito e dono de seu mundo, já que havia se tornado importante líder de uma comunidade. E, finalmente, fui ao pequeno e improvisado arquivo da paróquia da cidade onde encontrei o livro de registro de batismos no qual me deparei com uma informação nova. Ao invés de nascido em 1892, como difundido no Alto Santo e por todos seus demais seguidores, constava que Irineu havia nascido em 1890.
Esta, portanto, deveria ser uma informação importante para toda a comunidade daimista. Trouxe, então, a fotografia do registro onde constavam os nomes do pai e da mãe de Irineu, ou seja, sem margem a duvida de que se tratava dele mesmo. E, assim que cheguei, fui ao Alto Santo dar conta à Madrinha Peregrina do que havia encontrado. Ao que ouvi surpreso. “Que Bom! Você encontrou um documento sobre ‘Meu Velho’. Mas, se ele disse pra nós que nasceu em 1892, então nasceu em 1892 mesmo. Obrigada!”
Desde então a breve história acima descrita encerra para mim o inquestionável paradigma, ou paradoxo, da comunidade originalmente fundada por Mestre Irineu.
Obs: Sobre o processo de registro da Ayahuasca como Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira que está em curso, e é correlato ao tema que estou tratando neste artigo, recomendo a leitura do excelente artigo de Edson Lodi publicado neste mesmo jornal ontem, sábado.