sábado, 31 de março de 2012

Mestre Irineu e a Esfinge Amazônica

Tem algum tempo que tenho vontade de escrever sobre os cem anos da chegada de Raimundo Irineu Serra ao Acre. Mas, enquanto recolho mais informações sobre o tema, trago para a coluna, a partir de hoje, um resumo do texto de apresentação que escrevi ano passado para o importante livro de Paulo Moreira e Edward MacRae: “Eu venho de longe - Mestre Irineu e seus companheiros”.



Recebi o convite de Paulo e Edward para escrever esta apresentação como um imenso desafio. Afinal, como veremos adiante, a tarefa a que se impuseram estes excepcionais pesquisadores é das mais complexas e difíceis de realizar.
Dizer que o Acre, como de resto a própria Amazônia, é muito pouco conhecido ou compreendido pelos brasileiros em geral, seria apenas repetir uma idéia que já se tornou lugar comum no imaginário nacional. Uma idéia que está na origem das muitas brincadeiras e piadas como aquela que afirmava categoricamente que: “O Acre não existe”.
Mas o que diferenciaria o Acre tanto assim? Não deixa de ser curioso constatar que essas mesmas brincadeiras não são tão recorrentes em relação à outras regiões ainda mais distantes dos grandes centros do país. Isso nos faz refletir sobre o fato de que talvez o Acre possa ser realmente mais difícil de ser conhecido e/ou compreendido do que outras regiões da Amazônia.
Sem dúvida foi algo diferente, inusitado, singular, o que atraiu irresistivelmente ao Acre um de nossos maiores escritores, Euclides da Cunha, logo após o estrondoso sucesso do grandiloquente “Os Sertões”, sobre a Guerra de Canudos. Uma marcante experiência que o levou a afirmar, há mais de um século, que o Acre ainda estava “À Margem da História” brasileira.
Olhando sob essa perspectiva, não seriam, então, as piadas e as brincadeiras sobre o Acre, apenas reflexos de temores inconscientes despertados por um lugar que não só é distante e desconhecido, mas que, sobretudo, possui uma aura misteriosa, quase indecifrável e, por isso mesmo, pode parecer, de alguma forma, temível?
Para o leitor que pode estar achando isso tudo certo exagero de minha parte, talvez seja esclarecedor saber que, no início do século XX, este sentido se tornou tão comum e corrente que deu origem a uma expressão popular que usava o termo “Ir para o Acre” como sinônimo de “morrer”.
Mas, fiz toda essa digressão apenas para explicar porque, no dia em que conheci os autores do livro “Eu venho de longe” fiquei muito preocupado ao saber que o tema que os havia trazido até o Acre era a vida de uma das mais significativas e complexas personagens da trajetória acreana: o Mestre Irineu. Não consegui, então, evitar o pensamento: Isso não vai dar certo!


Afinal, se tentar compreender o Acre é um desafio colossal. O que dizer então sobre a tentativa de sistematizar a história de vida de um homem que foi capaz de criar uma nova e original religião, surpreendentemente originada nos mais profundos confins da floresta amazônica para se espalhar por todo o mundo, mobilizando milhares de pessoas das mais diferentes origens e culturas. Ou seja, Paulo e Edward, tinham, a meu ver, enormes chances de serem devorados por nossa particular esfinge amazônica.
É certo que, por aqui, muita coisa se conta sobre o Santo Daime. Ou sobre o enorme negro maranhense que comandava uma comunidade lá pras bandas da Colônia Custódio Freire e tinha fama de curador. Mas, escrito mesmo, em relação à vida do homem que promoveu uma verdadeira revolução espiritual neste pedaço perdido de floresta, sem que quase ninguém percebesse, muito pouca coisa.
Existe, isso sim, uma vasta bibliografia desenvolvida a partir do novo contexto que envolveu o Santo Daime desde que este começou a se expandir por outras regiões fora do Acre e da Amazônia. O que só aconteceu efetivamente após a morte de Irineu. Mas não custa ressaltar que são publicações e abordagens que não são aceitas ou difundidas, sendo muitas vezes repudiadas, pelos tradicionais seguidores de Mestre Irineu.
Por isso, quando, há cerca de dez anos, estive no Maranhão, participando de um encontro promovido pela Fundação Palmares. Fui tomado pelo impulso avassalador de procurar os caminhos por onde Raimundo Irineu Serra teria passado antes de vir para o Acre. Logo após o término do encontro do qual estava participando, visitei a Casa das Minas, as ruas do velho centro histórico de São Luis, com suas fontes públicas e túneis subterrâneos, nas quais tive encontros totalmente inesperados. Mas, como o instinto do pesquisador, às vezes, é irresistível, consegui ir até São Vicente de Ferre, cidade natal de Irineu.



Lá conheci o lugar vazio onde antes havia existido uma tapera de adobe e palha, na qual, segundo os moradores locais, teria nascido Irineu. Pouco depois, encontrei com um sobrinho de Irineu que conhecia bem a história do jovem que partiu pra ganhar o mundo e voltou, décadas depois, como um homem feito e dono de seu mundo, já que havia se tornado importante líder de uma comunidade. E, finalmente, fui ao pequeno e improvisado arquivo da paróquia da cidade onde encontrei o livro de registro de batismos no qual me deparei com uma informação nova. Ao invés de nascido em 1892, como difundido no Alto Santo e por todos seus demais seguidores, constava que Irineu havia nascido em 1890.
Esta, portanto, deveria ser uma informação importante para toda a comunidade daimista. Trouxe, então, a fotografia do registro onde constavam os nomes do pai e da mãe de Irineu, ou seja, sem margem a duvida de que se tratava dele mesmo. E, assim que cheguei, fui ao Alto Santo dar conta à Madrinha Peregrina do que havia encontrado. Ao que ouvi surpreso. “Que Bom! Você encontrou um documento sobre ‘Meu Velho’. Mas, se ele disse pra nós que nasceu em 1892, então nasceu em 1892 mesmo. Obrigada!”
Desde então a breve história acima descrita encerra para mim o inquestionável paradigma, ou paradoxo, da comunidade originalmente fundada por Mestre Irineu.


Obs: Sobre o processo de registro da Ayahuasca como Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira que está em curso, e é correlato ao tema que estou tratando neste artigo, recomendo a leitura do excelente artigo de Edson Lodi publicado neste mesmo jornal ontem, sábado.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Não dividam meu coração na curva do rio*

Ninguém duvida que esta alagação foi uma das maiores de todos os tempos. Como ninguém duvida também que Brasiléia foi uma das cidades que mais sofreu com ela. O que eu não esperava era encontrar nesta cidade uma situação tão inusitada quanto surpreendente.


Todo mundo sabe que Brasiléia é uma cidade de fronteira. Afinal, poucos são os acreanos que nunca visitaram Cobija, do outro lado do rio, e seu comércio de mil e uma utilidades. Como quase todo mundo sabe também que ambas as cidades (Brasiléia e Cobija) surgiram de um acontecimento que marcou nossa história comum.

Mas pra quem não se lembra bem, não custa esclarecer que estou falando do famoso combate do Igarapé Bahia em que, nos idos de 1902, revolucionários brasileiros tomaram o barracão do seringal situado à margem desse igarapé. Com isso provocaram a reação de campesinos e gomales organizados na Coluna Porvenir que, a mando de Nicolas Suarez, promoveram a maior vitória dos bolivianos e o maior massacre de brasileiros ocorrido durante toda a "Guerra do Acre".

Pois foi esse combate que delimitou definitivamente que a fronteira "real" (e não apenas a "legal" dos Tratados) entre brasileiros e bolivianos estava demarcada nesta região pelas margens do Rio Acre. Do lado de lá do rio Bolívia, do lado de cá Brasil. Assim surgiria a premente necessidade de ocupar essa área, fazendo com que o General Pando ali fundasse a cidade de Cobija, ainda em 1906, e provocasse, em contrapartida, a fundação da Vila Brasília, em 1910, posteriormente renomeada Brasiléia.

E foi esta origem histórica - aparentemente tão antiga quanto pouco importante para nós outros que aqui vivemos, 110 anos depois, em 2012 - que deu origem a um problema concreto que atualmente está afligindo os moradores de parte de Brasiléia, apesar de ser ainda desconhecido pela maioria dos acreanos.

Eu mesmo não tinha a menor noção deste novo problema de fronteira até participar de uma missão de trabalho, organizada pelo Senador Jorge Viana, com o objetivo de documentar os estragos causados pela recente alagação, que praticamente destruiu o centro e outros bairros de Brasiléia, e assim auxiliar na captação de recursos para sua reconstrução.

Acontece que uma das áreas mais atingidas na cidade foi o bairro Leonardo Barbosa que, por estar totalmente situado na beira do rio, ficou 100% alagado. E, o pior, viu se agravar o desbarrancamento que há tempos provoca grande temor de seus moradores pelo risco de repentinamente ver suas casas deixarem de fazer parte do Acre e do dia pra noite se tornarem novamente território boliviano!

É isso mesmo. Uma parte de Brasiléia, do Acre, que poderia voltar a ser da Bolivia. O que seria de seus moradores então? Na hora tomei um susto e achei que era brincadeira. Mas, não é. Então fiz a unica pergunta óbvia e cabível nesta situação: mas como assim? Vamos até lá, que voce mesmo vai ver. Respondeu-me o funcionário que participava do atendimento dos alagados.

Acontece que o rio Acre é reconhecidamente um rio jovem e por isso seu leito definitivo ainda não está consolidado. Dai ele fazer tantas curvas ao longo de todo o seu percurso. Com o tempo essas curvas vão sendo desgastadas pela correnteza do rio até serem cortadas. Formam-se assim lagos, conhecidos por alguns como "sacados", que se tornam ótimos locais de pesca até serem recobertos pela vegetação e o tempo se encarregar de aterrá-los.

E não é que parte do bairro Leonardo Barbosa é constituida exatamente por uma dessas pronunciadas curvas do rio? E que o alto barranco onde foi construída a rua asfaltada que dá acesso a essa área do bairro está quebrando rapidamente, estando prestes a apartar? Dai a dúvida que assola seus moradores. Caso o rio aparte essa área, suas casas ficarão do lado de lá do rio e, portanto, passarão a fazer parte das terras bolivianas. Afinal, o que está do lado de lá do rio não é Bolívia?

O que fazer neste caso? Sinceramente... sei não! Só sei que se trata de um problema real, palpável, que deve ser encarado com seriedade porque poderá afetar dezenas de casas e centenas de moradores... Seria importante cuidar disso de forma preventiva para depois do problema efetivado não ter que agir emergencialmente. Porque, certamente o rio continuará a seguir seu curso e sua natureza, como acabou de nos mostrar inequívocamente.

Vai que de repente, surge um outro Galvez para de novo proclamar: Já que nossa pátria não nos quer e estrangeiros não queremos ser, criamos outra! E assistimos ao surgimento de um novo micropaís encravado entre o lado de lá e o de cá de nossa fronteira que, ninguem duvide, é viva.

Obs: Desculpem-me por esta conclusão/brincadeira final, não estou de nenhuma forma fazendo pouco da situação, mas simplesmente não resisti...

Obs 2: Só no momento em que estava diagramando essa página na redação do jornal, é que fui avisado que o professor Evandro Ferreira, também tratou deste assunto em seu blog Ambiente Acreano. Conhecendo a qualidade de seu trabalho, sugiro que interessados no tema o leiam.

* O título deste artigo é vagamente inspirado em um dos titulos de livros mais lindos que já vi: "Enterrem meu coração na curva do rio"

sábado, 17 de março de 2012

A história nos tempos do breve*

(Um calendário aos pedaços)

Mesmo nestes tempos de informação rápida e superficial, não podemos deixar de parar um pouco e olhar melhor pr'aquilo que passou. Quando não fosse por outro motivo, porque continua passando.


Varias pessoas ultimamente andam me cobrando textos mais curtos, sob pena de ser pouco lido. Não consigo deixar de achar que isso é sintoma dos Twiteres, Faces, Gtalks, etc. que nos assolam atualmente. Entretanto, vou fingir que não é nada disso e tentar seguir as lições de Eduardo Galeano (do qual falamos nessa coluna bem recentemente) mestre em contar histórias breves, mas com sentido.

Era uma vez um seringal (que não chegou a ser)
Há 130 anos surgia à beira do rio Acre um seringal com destino de cidade. Na verdade o que deveria ser mais um seringal, como tantos outros que surgiam do dia pra noite naquele distante ano de 1882, logo se tornou um porto pra vender, aviar, comprar, trocar, negociar um pouco de tudo, inclusive amores fugidios com que escapar da solidão das florestas, colocações e seringais.
E foram tantas as casas comerciais, os hotéis, os restaurantes, os cassinos e todos os demais tipos de serviços que se possa imaginar, que não teve alternativa. O porto cresceu, criou ruas, ganhou casas, esquinas, moradores, praças, gentes e jeitos de cidade, até se tornar a maior de todo esse lugar. Mas nunca deixou de ser meio seringal, meio porto, meio floresta, meio cidade, meio rua, meio rio... E é por isso que, em certas ocasiões, tudo se mistura de novo, como neste ano de 2012.



Os ossos do Barão
Há 100 anos morria o Barão do Rio Branco, em cuja homenagem se nomeou essa cidade - que não tem nenhum rio "branco", mas sim um rio "acre" - porque não foi por questão de cor, mas de gosto que as pessoas fizeram questão de aqui permanecer, mesmo contra todas as evidencias e consequencias.
O que me lembra aquela musica: "Quem parte, quem fica! O que significa". Porque neste mesmo ano de 1912 em que partiu o Barão, chegava às terras acreanas outro homem que haveria de também mudar boa parte de nossa história: Mestre Raimundo Irineu Serra.

Cidadãos, enfim!
Há 50 anos os cidadãos acreanos deixavam de ser apenas aqueles que moravam nas cidades e seringais para se tornarem seres políticos de fato, como deveriam ter sido por direito desde sempre. Assim, em 15 de junho de 1962 terminava a maldição do Território Federal do Acre.
Uma praga bem rogada que, desde 1904, não permitiu que os acreanos comandassem seu próprio destino, forçando-os a engolir governantes desconhecidos, autoritariamente impostos pelo governo federal. E o pior é que nem o fato da maioria destes governantes não demonstrar nenhum outro compromisso com o Acre a não ser o de enricar o máximo possivel no menor tempo possível, fez com que o governo brasileiro reconhecesse o absurdo da situação.
Foi necessária uma longa batalha no Congresso Nacional - que se arrastou por cinco anos, entre 1957-1962 - e uma intensa mobilização (através dos comitês Pró-autonomia) para que os acreanos pudessem enfim desfrutar de uma cidadania plena. Nada demais, enfim, apenas os mesmos direitos básicos de todos os outros brasileiros.




O que alguns não querem lembrar
Há 35 anos, em 1977, tinham início as primeiras pesquisas arqueologicas a serem feitas no Acre. Um trabalho extraordinário realizado pela equipe do Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB) que - mesmo sem as facilidades tecnológicas com que contamos atualmente, tipo: gps, google earth, etc. - conseguiu revelar dezenas de sítios arqueológicos. De barco, de jipe, de pés, a partir das informações generosamente dadas pelo moradores destas terras e florestas, começava a se descortinar nosso passado profundo nas margens do Purus, do Iaco, do Iquiri, do Acre, do Juruá, do Tarauacá, do Muru.
Não podemos esquecer que, até então, a história do Acre começava em meados do século XIX e que, desde então, passou a ser contada em milhares de anos. Um grande salto para o conhecimento da trajetória humana nos altos rios desta Amazônia ainda incompreendida.

O que alguns querem que se esqueça
Há 20 anos, tão generosamente quanto havia recebido quinze anos antes, o Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB) deu à Célinha, uma acreana do pé rachado, a oportunidade de realizar a primeira escavação arqueológica sistemática no Acre.
Financiado pelo Smithsonian Institution, graças aos esforços de Ondemar Dias e Betty Meggers, o trabalho realizado no extraordinário Sítio Los Angeles, que atualmente seria genérica e pobremente reduzido à condição de "geoglífo", foi um marco na pesquisa arqueológica no Acre porque nos forneceu inéditas e fundamentais informações deste sítio que é um dos principais e mais ricos já descobertos na Amazônia Ocidental.
Pena que aqueles que praticam uma propaganda sensacionalista de sí próprios, mal disfarçando seus evidentes interesses financeiros, insistam em querer apagar esse pioneiro e importante trabalho. Só mais um exemplo daquela velha história já cantada por Caetano: "Narciso acha feio o que não é espelho". Mas não adianta, porque há verdades que nunca poderão ser apagadas, quando não fosse por mais nada, apenas porque são simples e incorruptíveis verdades e assim, quando menos se espera, sempre haverão de voltar à tona.


Geografia de nós
Há apenas tres dias nos deixou esse grande brasileiro chamado Aziz Ab'Saber. Um homem que fez da ciencia e do Brasil as causas de sua vida. Este geógrafo que amava sua profissão, como poucos atualmente, nos fez ver e pensar a Floresta Amazônica, a Caatinga, a Mata Atlantica, o Cerrado, como nenhum outro antes. O Brasil perde assim um intransigente defensor e uma referencia, não só científica, mas principalmente ética. Enfim, deixamos de contar com a presença deste homem íntegro que carregava o "saber" em seu próprio nome, mas não com seu exemplo. E este haverá de permanecer como motivação para todos os que não aceitam as iniquidades cometidas em nome da vaidade ou de uma falsa idéia de "ciência" em nosso país.

Obs: Como muitos devem ter percebido, este artigo é, na verdade, introdução e roteiro de alguns dos temas que iremos tratar na coluna "Miolo de Pote" deste ano. Além do que, sob a desculpa de escrever pouco, acabei, como sempre, escrevendo demais. Tenho jeito mesmo não!

* O título deste artigo é vagamente inspirado no titulo do celebre romance de Gabriel Garcia Marques: "O amor nos tempos do cólera."

sábado, 10 de março de 2012

O Mundo é dela!

Em homenagem ao dia da Mulher, tenho o prazer de anunciar que, depois de uma acirrada votação popular (aqui em casa), por unanimidade foi eleita a mulher do ano de 2012.



Ela chega assim, dia 06 de março, sem avisar. Tres dias antes da lua cheia, quando eu tinha certeza que haveria de vir. Dois dias antes do dia internacional da mulher, quando era de se desejar que viesse. Mas são assim mesmo as pessoas, ainda que seja apenas uma pessoinha ainda, não costumam obedecer as regras ou as convenções sociais, sejam elas da natureza, sejam humanas.
Ainda bem. Nem ouso imaginar o que seria da humanidade sem essa infinita capacidade de desobedecer. Talvez ainda estivéssemos vivendo em cavernas fazendo as mesmas coisas todos os dias: caçando, pescando, colhendo frutas e sementes, incapazes de desafiar o medo do escuro da noite, o pavor do calor do fogo, o terror do abismo oculto pra lá do horizonte.
Não tenho duvida. A capacidade humana de criar é a filha primeira da desobediencia. Mas, além disso, eu seria capaz de jurar que a desobediencia é uma criação feminina. Uma qualidade forjada e fortalecida ao longo de milenios de opressão masculina, pela força bruta em estado bruto, uma qualidade indubitavelmente inata dos homens.
Pois foi assim que ela chegou, desobedecendo. Mas, ao mesmo tempo preenchendo nossas maiores e melhores expectativas de que ela pudesse vir linda e perfeita. E é assim que é: perfeitamente linda. Apesar de ser só bochechas. Enormes, fofas e rosadas bochechas.



Ainda não fala, mal abre os olhos, mas imediatamente se tornou o centro e o motivo maior da vida de todos aqui em casa. A mãe parida e lenta, o pai atento e avexado, as avós derretidas e ligadas, as tias prestativas, os primos divertidos e barulhentos (como sempre, aliás), as amigas observadoras e animadas e faladeiras. Todos girando em torno desse pedacinho de sol em figura de pedacinho de gente.
E eu cá assim, me limito a olhar e gostar. Afinal, o que posso eu desastrado, desajeitado, agoniado pelo menor choro ou gemido, só atrapalhar. Dai que me limito a olhar e amar. Aliás, como é bom olhar ela dormindo com toda essa paz que transborda e contagia. Uma paz que eu também devo ter sentido um dia, há muitos anos atrás, mas havia esquecido completamente, até tornar a lembrar que existia quando nasceram os meninos.
De tanto olhar, não consigo evitar a pergunta: será que ela sonha? Ou melhor ainda, com que será que ela sonha? Não conhece nada da vida. Ainda não viu a luz, o mar, as flores, o céu, as montanhas, as cores. Mas, de algum modo que não sei explicar, sei que sim: ela sonha. Talvez sonhe ainda com o calor da barriga de onde veio, com as vozes que escutava abafadas lá dentro e que agora estão mais fortes, talvez sonhe com a própria vida que sente pulsando dentro dela cada vez mais intensa. Pode até ser que já tenha começado a sonhar com esse mundo estranho, recem-descoberto e que já lhe provoca dores, medos, desconfortos, fome, frio e um monte de coisas que desconhecia.



Mas não precisa ter medo menininha. Sonhe também com o amor que todos nós, que estamos a sua volta, sentimos. E saiba... Pra voce só sonhamos com o melhor da vida... Siga desobedecendo (acho que sua mãe não vai gostar muito dessa parte) e sonhando pois sua luz já é tanta que inundou por inteiro nossas vidas... e que o espirito feminino que rege o mundo (felizmente) lhe guie e proteja. Seja muito bem vinda Maria Isabel!

Obs: E assim a Sociedade secreta das irmãs Araujo ganha mais uma integrante. O que explica ela ter sido a premiada do ano: ainda não teve tempo de revelar o forte genio que deu origem à Assomau - Associação dos sofredores maridos das Araujo.